terça-feira, 24 de dezembro de 2019

UM CONTO DE NATAL



Por alguma razão incerta e não sabida, o Natal fica mais sem graça a cada ano que passa. Não muito tempo atrás, mal chegava novembro e já se viam miríades de luzinhas piscantes alegrando a cidade. Hoje, noves fora o comércio em geral e os shopping centers em particular — que têm interesse em ressuscitar o moribundo "Espírito do Natal" —, a data passaria em brancas nuvens para os cerca de 33% da população mundial que comemoram no dia 25 de dezembro o nascimento daquele que, acreditam eles, morreu na cruz para salvá-los (foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas, por via das dúvidas, livrai-nos, meu Deus, de todo o mal).

Na véspera do Natal de 2009, eu publiquei que Papai Noel era representado originalmente trajando uma roupa de inverno na cor marrom, que o cartunista alemão Thomas Nast repaginou a imagem, exibindo o bom velhinho com a indefectível roupa vermelha com detalhes em branco e cinto preto, e que o novo layout foi popularizado por uma campanha publicitária da Coca-Cola em 1931, já que o vermelho e o preto eram as cores do rótulo do refrigerante. Mas há controvérsias.

De acordo com alguns historiadores, Papai Noel é uma adaptação de São Nicolau. Na maioria das representações, ele é retratado como um velhote rechonchudo, com bochechas rosadas e barbas brancas. Mas Nicolau nasceu numa cidade portuária onde hoje é a Turquia, o que lhe assegura a tez cor de oliva dos mediterrâneos.

Entre 1931 e 1964, Haddon Sundblom pintou cenas encantadoras da casa de Papai Noel para a Coca-Cola, e Norman Rockwell o retratou como um idoso bonachão. Antes disso, Thomas Nast já havia desenhado o bom velhinho com seu tradicional casaco vermelho, barba branca, barriga redonda e cachimbo. 

O mais provável é que Nicolau vestisse uma simples túnica e um manto, assim como outros ministros cristãos de sua era. Até porque casacos de pele não eram necessários na costa mediterrânea. Ademais, é improvável que ele trajasse roupas bordadas de vermelho ou verde e usasse mitra, estola, luvas e anéis. Primeiro porque o cristianismo era uma religião minoritária, perseguida e proibida durante cerca de dois terços da vida de Nicolau. Segundo porque ele era pobre e, portanto, não tinha recursos para luxar — e ainda que os tivesse ele não sairia pela rua todo paramentado, pois a pobreza campeava solta e os assaltantes estavam sempre à espreita.

Tampouco se destacou Nicolau pela disposição e alegria com que foi posteriormente retratado. No que foi sem dúvida o incidente mais importante de sua vida, registrado pela primeira vez em meados do século VI, o santo interrompeu uma execução e confrontou o juiz que havia dado a sentença até que ele admitisse ter aceitado suborno.

Um artigo da revista National Geographic, que segue a transformação de Nicolau de santo a Papai Noel, cita um conto segundo o qual o bispo teria entregado secretamente três sacos de ouro para o pai de três moças pobres oferecer como dote, salvando-as de uma vida de prostituição

Ao descrever a metamorfose festiva de bispo, o site do History Channel menciona que o conto dos três dotes é "uma das mais conhecidas histórias de São Nicolau", e que, a despeito de essa lenda promover o santo a entregador de presentes, outra história mais sombria reza que em meados do século X, na Baixa Saxônia, o bom velhinho teria trazido de volta à vida três crianças que um criminoso esquartejara e colocara em barris de madeira, para com elas fazer compota. Artistas itinerantes encenaram esse drama em cidades e vilarejos de toda a Europa, e assim o santo se tornou padroeiro e protetor das crianças. 

Oportuno salientar que no final do século XIX os líderes cristãos dos Estados Unidos (em sua grande maioria protestantes) proibiram as celebrações natalinas por considerá-las pagãs. Mas as pessoas queriam comemorar, sobretudo os trabalhadores braçais, que ficavam ociosos durante o inverno. Assim, muitos deles se embriagavam e iam para as ruas farrear e saquear. E foi assim, de acordo com o historiador canadense Gerry Bowler, que a classe alta nova-iorquina criou a Sociedade São Nicolau de Nova York, que basicamente reescreveu a história do Natal.

A festa de São Nicolau era celebrada em 6 de dezembro (data da morte do religioso). No início de século XIX, no entanto, a Reforma Protestante acabou com os santos cristãos e o Natal também foi deixado de lado em grande parte da Europa. Na Holanda, porém, uma figura tradicional continuou viva: o Sinterklaas, que usava uma mitra (chapéu alto e pontudo) de cor vermelha, tinha uma longa barba branca e era baseado em São Nicolau. Foi ele que inspirou os nova-iorquinos a tirar os bêbados da rua e presentear as crianças.

Mais adiante, o escritor Washington Irving escreveu uma série de contos em que São Nicolau voava pelas casas fumando cachimbo e deixando presentes para as crianças bem-comportadas. Anos depois, um poema anônimo (The Children’s Friend) discorria sobre um personagem chamado Santeclaus, onde um velho gorducho dirigia um trenó puxado por renas e deixava presentes nas meias das crianças. Por fim, um estudioso episcopal chamado Clement Clarke Moore escreveu um poema conhecido como The Night Before Christmas, no qual São Nicolau entrava pelas chaminés. A história foi rapidamente difundida pelos Estados Unidos e, segundo Bowler, no início do século XIX São Nicolau foi padronizado como Santa Claus, o nosso Papai Noel.

Seja qual for a versão verdadeira, faço votos de que o bom velhinho se lembre de nós em mais este Natal "morno", contaminado pelo caos com e pela desgraceira com que vimos sendo bombardeados diuturnamente pelo noticiário, e coloque sob a árvore o nosso presentinho. Aliás, cumpre mencionar que os tradicionais "pinheirinhos de Natal" são na verdade tuias — coníferas pertencentes à família Cupressaceae, que têm formato, cor e cheiro característicos dos dias 24 e 25 de dezembro.

Havendo interesse e sobrando tempo, assista a este vídeo. E não deixe de assistir também ao clipe abaixo. Duvido que você não dê umas boas gargalhadas. Aliás, rir é o melhor remédio.