segunda-feira, 9 de março de 2020

AINDA SOBRE O CAPITÃO CAVERNA (CONTINUAÇÃO)



Cotação do dólar chega aos R$ 4,78 na manhã desta segunda-feira Fico imaginando – ou melhor, tenho até medo de imaginar – como se comportará a Bolsa ao longo do dia. Enfim, bola pra frente, é vida que segue, o show tem que continuar. Vamos à postagem do dia.
 
Nunca antes na história deste país — como diria o criminoso de Garanhuns e ex-presidiário de Curitiba — presidente algum demonstrou tanta competência em degradar a função presidencial quanto Jair Bolsonaro, mestre em adaptar os usos e costumes republicanos a seu modo de vida à margem das instituições e PhD em utilizar essas mesmas instituições para tentar destruí-las.

Considerado pelo general-ditador Ernesto Geisel como um homem anormal e “mau militar”, o hoje presidente teve sua carreira no Exército abreviada por planejar atos terroristas à guisa de reivindicação salarial nos quartéis. Em 1986, o então capitão publicou na revista VEJA um artigo em que reclamava do soldo (a  matéria lhe rendeu 15 dias de prisão e um processo por indisciplina), e no ano seguinte, também em protesto contra os baixos salários, planejou explodir bombas de baixa potência em quartéis e academias. O assunto foi resolvido discretamente, e o insurreto foi absolvido de todas as acusações. Mas sua carreira militar terminou ali.

Eleito por uma maioria de mais de 57 milhões de votos — uma resposta que as urnas deram aos anos de governo petista, marcados por escândalos de corrupção e pela maior crise econômica da história do país —, Bolsonaro representa um núcleo extremista da sociedade que incentiva a ir às ruas contra as mesmas instituições que jurou proteger. Não tem noção do que venha a ser decoro, seja na vida privada, seja na pública, e tampouco respeita a “liturgia do cargo”. Anda às voltas com denúncias de divisões salariais ilegais em seus gabinetes e nos de seus filhos — a chamada “rachadinha” — e em 27 anos como deputado federal só aprovou dois projetos, mas colecionou quase 30 processos, alguns dos quais ainda tramitam no STF (embora tenham sido suspensos quando ele vestiu a faixa, já que o presidente da República não pode ser processado por atos anteriores ao mandato).

Nu como o rei da fábula, o presidente revela-se uma patética versão de Lula com sinal trocado, um populista manipulador que, embora não tenha o dom da retórica do arquirrival, alimenta um discurso extremamente sectário, persegue adversários políticos, ataca a imprensa e atribui a inimigos imaginários a culpa por seus próprios fracassos.

Graças à péssima qualidade do nosso eleitorado, o embate no segundo turno das eleições passadas se deu entre os dois extremistas extremados do espectro político-ideológico. Com isso, para evitar o mal maior, a direita chegou ao poder encarnada num pseudo conservador, ferrenho defensor de uma política econômica nacionalista e intervencionista, e que sequer conhece o conceito de “direita”.

A exemplo do que fez Lula em 2002, ao assinar a Carta ao Povo Brasileiro para acalmar o mercado — consta que o texto, supostamente da lavra do então candidato, foi na verdade redigido por Antonio Palocci, já que o pseudo signatário mal sabia ler, quanto mais escrever —, Bolsonaro, por puro pragmatismo, escalou um economista liberal para chefiar o ministério da Economia, um ex-juiz federal implacável com a corrupção e com os corruptos e mas meia dúzia (se tanto) de notáveis. Dos demais, notadamente entre os que foram indicados pelo guru de Virgínia (como as duas “sumidades” que chefiaram a pasta da Educação até agora, certa pastora evangélica e um chanceler de araque), poucos valem o tempo que eu gastaria discorrendo sobre sua total inadequação ao cargo.

Um conservador, ensina o deputado federal Kim Kataguiri, respeita as boas tradições e os principais frutos delas: As Instituições. Isso inclui o Parlamento, o Judiciário, a Imprensa, a Polícia Federal etc. Mas Bolsonaro deixa claro que não tem o menor apreço por nenhum desses órgãos.

Durante a reforma da Previdência — principal bandeira do governo —, o maior interessado em sua aprovação não só não colaborou como fez o que pode para atrapalhar, até que sumiu do debate público — e se reapareceu no final, foi para defender o destaque que garantiu privilégios aos policiais federais (o que desidratou ainda mais a PEC). E depois estrilou quando os presidentes da Câmara e do Senado, que tomaram para si a responsabilidade pela aprovação da emenda, avisaram ela se daria nos termos dos parlamentares.

Em agosto do ano passado, numa entrevista à revista Veja, o ministro Dias Toffoli (cuja passagem inglória pela presidência do STF felizmente termina em setembro próximo, quando assumirá o posto o atual vice, ministro Luiz Fux) que o Brasil esteve à beira de uma crise institucional entre abril e maio, e que sua (dele, Toffoli) atuação foi fundamental para pôr panos quentes numa insatisfação que se avolumava. 

O ministro não deu muitos detalhes, mas a combinação explosiva envolvia uma rejeição dos setores político e empresarial e até de militares a Bolsonaro, e o cenário, de fato, era preocupante naquele momento. No Congresso, a reforma da Previdência — principal e mais importante bandeira econômica da atual administração — não avançava, e o governo acusava os deputados de querer trocar votos por cargos e verbas públicas. O impasse aumentou quando um grupo de parlamentares resolveu desengavetar um projeto que previa a implantação do parlamentarismo, que, se aprovado, transformaria Bolsonaro numa figura meramente decorativa, um lame duck — termo usado pelos americanos para se referir a políticos desgastados, que perdem o protagonismo e se limitam a cumprir compromissos protocolares, a quem os garçons palacianos servem a água sem gelo e o café, frio.

No ano passado, os conflitos com o Congresso e a truculência de Bolsonaro não impediram o avanço da agenda de reformas. Agora, porém, os agentes econômicos e o mercado financeiro veem com preocupação as constantes quedas de braço entre o Executivo e o Legislativo. Um exemplo recente foram o impasse com o Legislativo sobre o controle de cerca de R$ 30,1 bilhões do Orçamento deste ano, que levou duas semanas para ser resolvido. Finalmente, após acordo com o governo, o Congresso manteve os vetos de Bolsonaro ao Orçamento impositivo, que devolve ao Executivo o controle de R$ 30,8 bilhões. Mas novos embates virão, até porque temos uma disputa institucional em curso.

Após a crise do presidencialismo de coalizão na era Dilma, o Legislativo ampliou o controle sobre o Orçamento da União e criou dificuldades para a edição de medidas provisórias. Mais recentemente, o Executivo — ou a maneira de governar de Bolsonaro, melhor dizendo — acelerou um processo que, no limite, poderá resultar num semiparlamentarismo de coalizão, em vez do presidencialismo de coalizão (ou seria presidencialismo de cooptação?). O Judiciário, por seu turno, se afirmou com a judicialização da política a partir do julgamento do mensalão.

Para não estender ainda mais este texto, volto ao assunto numa próxima oportunidade.