Era uma vez um condenado que detestava a comida da prisão. Certo
dia, ao se recusar a tomar a sopa que lhe foi servida, ouviu do carcereiro: "o mangia la minestra o salta dalla finestra". Como a cela ficava no alto de uma torre, pular pela janela não era uma opção, e assim o infeliz tomou a sopa, mesmo achando-a repugnante.
Essa anedota italiana espelha o segundo turno das eleições presidenciais de 2018, quando reconduzir o criminoso de Garanhuns ao Planalto, mesmo que encarnado numa
patética e submissa marionete, estava fora de cogitação, restando-nos apoiar um ex-capitão do Exército que, depois de ser reformado compulsoriamente por insubordinação, ingressou na política e, em 27 anos como deputado federal, aprovou dois míseros projetos, mas colecionou dezenas de processos por injúria, apologia
ao estupro e racismo (movidos, é bom que se diga, por políticos de esquerda).
Dizem que o diabo nunca é tão feio quanto o pintam. Na esteira desse raciocínio, talvez Bolsonaro não seja tão ruim quanto parece, mas é inegável que esteja longe de ser o “mito” enxergado por seus sectários politicamente míopes — uma claque de toupeiras atávicas semelhante à militância lulopetista, só que, também nesse caso, com sinal trocado.
A imprensa não morre de amores pelo presidente (e a recíproca é verdadeira), daí os noticiários enfatizarem seus defeitos e relativizarem as conquistas (pífias, é verdade) alcançadas nestes 13 meses de governo. E tudo indicava que nau dos insensatos seguiria adiante, às vezes por águas turbulentas, até 2022, sendo possível até que o presidente se reelegesse. Mas não combinaram com a COVID-19, uma pandemia até então inimaginável e que nenhum país do mundo estava preparado para enfrentar.
Em que pese certo exagero por parte da mídia, a situação é séria, tanto do ponto de vista sanitário quanto do econômico. E situações desesperadoras requerem medidas desesperadas. Nessas horas, liderança é fundamental. Quem assistiu à trilogia The Godfather, baseada no livro homônimo do escritor ítalo-americano Mario Puzo e dirigida por Francis Ford Copolla, talvez se lembre que Michel Corleone rebaixou Tom Hagen de “consiglieri” a advogado dos negócios da família por não estar preparado para atuar como conselheiro de guerra.
Se Bolsonaro já não estava preparado para presidir o país (como comprova a profusão de estultices cometidas nos últimos 15 meses), que dirá agora, diante de uma pandemia causada por um vírus mutante sobre o qual o que se sabe ao certo é que esta produzindo uma crise sem precedentes na economia mundial, e o resto é pura especulação?
Na China, onde tudo começou, já surgem os primeiros sinais de que o pior já passou, mas na Itália, que concentra a população mais idosa da Europa, as ruas estão vazias e as lojas fechadas. 60 milhões de pessoas estão praticamente em prisão domiciliar. O país contabiliza o maior número de mortes depois da China, com 3.760 óbitos — só na última segunda-feira, mais de 300 pessoas morreram, e os corpos estão se acumulando na região norte da Lombardia, especialmente na província de Bergamo.
A chegada do SARS-CoV-2 (esse é o nome oficial do vírus; coronavírus e COVID-19 remetem à doença) ao Brasil nunca foi uma questão de “se”, mas de “quando”. Nesta terça-feira foi confirmada a primeira morte — de um morador de São Paulo de 62 anos, que era diabético e sofria de hipertensão. Infelizmente, outras virão. Ontem, dados oficiais informavam que já haviam sido registradas 234 pessoas infectadas e outras 2.064 aguardavam o resultado de exames.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tem feito um bom trabalho, a despeito das inúmeras limitações com que precisa lidar. Mas o que dizer de um chefe do Executivo que pode estar infectado — o primeiro teste deu negativo, mas outro foi realizado depois do aumento de integrantes de sua comitiva (na viagem aos Estados Unidos) que testaram positivo para a doença — e mesmo assim, ignorando a recomendação de permanecer em isolamento feita pelo ministro, sai às ruas para participar das manifestações do último domingo — que ele próprio convocou contra o Legislativo e o Judiciário — num momento em que, mais do que nunca, diferenças políticas, ideológicas e de visão do mundo deveriam ser postas de lado em prol do bem comum?
Janaína Paschoal, uma das signatárias do pedido de impeachment que depôs Dilma Rousseff e bolsonarista de primeira hora, afirmou em discurso na Alesp que se arrependeu de ter votado em Bolsonaro e que o presidente deve ser afastado de suas funções:
“O que ele [Bolsonaro] fez é inadmissível, é
injustificável, é indefensável. (...) Esse senhor tem que sair da Presidência
da República. Deixa o Mourão, que entende de defesa. Nosso país está
entrando numa guerra contra um inimigo invisível. Deixa o Mourão que é
treinado para a defesa conduzir a nação. (...) Como um homem que está
possivelmente infectado vai para o meio da multidão? Como um homem que
faz uma live na quinta e diz pra não ter protestos vai participar
desses mesmos protestos e manda as deputadas que são paus mandados dele chamar
o povo para a rua? Eu me arrependi do meu voto. Que país é esse? (...) As
autoridades têm que se unir e pedir para ele se afastar. Nós não temos tempo
para um processo de impeachment. Estamos sendo invadidos por um inimigo
invisível e precisamos de pessoas capazes e competentes para conduzir a nação.
Quero crer que o Mourão possa fazer esse trabalho por nós”, declarou
a deputada.
Criticado
por diversos parlamentares, entre os quais os presidentes da Câmara e
do Senado, Bolsonaro fez um desafio: “gostaria
que eles saíssem às ruas como eu”. E ainda reclamou do que afirma ser uma "histeria com o coronavírus", embora a pandemia
já tenha provocado a morte de mais de 6.000 pessoas em todo o mundo.
O capitão parece ter inaugurado uma novidade em matéria de política: a auto oposição.
Uma hora desaconselha manifestações de rua; noutra, atropela recomendações do ministério da Saúde e vai ao asfalto
abraçar apoiadores. Numa transmissão ao vivo pelas redes sociais, diz que,
juntos, os chefes dos Poderes farão um "Brasil melhor para 210 milhões
de pessoas". Depois, associa-se a atos “antidemocráticos” e se mete
numa guerra retórica com os presidentes da Câmara e do Senado. Num instante,
jacta-se de ter composto um ministério técnico. Noutro, dedica-se a desmoralizar
seus próprios ministros. Numa hora, avaliza acordo com o Congresso em torno do
Orçamento impositivo. Noutra, carboniza o general Luiz
Eduardo Ramos, dizendo que seu articulador político se perdeu por "imaturidade
e inocência".
Bolsonaro declarou-se candidato à reeleição dois
meses depois de tomar posse. Desde então, dedica-se a desconstruir eventuais
rivais — o que me faz lembrar de um trecho de uma velha modinha chamada Camelô (que você pode ouvir clicando aqui): “é vesgo, pois a profissão ensina a ter um olho na esquina e outro olho no freguês”. Sem espelho nem senso de ridículo, o capitão reclama que há políticos que colocam 2022 acima dos interesse da nação.
"É toda hora pancada em mim", queixa-se. "Mas vou
revidar". Que Deus nos ajude.
Às voltas com a maior crise do seu governo — diz Josias de Souza —, o presidente assiste ao derretimento da economia. Deveria presidir o país, mas decidiu
liderar a oposição.