Conforme prometido no post anterior, segue o texto produzido pela pena elegante do articulista Roberto
Pompeu de Toledo, cuja coluna é publicada semana sim, semana não, na última página da edição impressa da revista Veja (nas "semanas não" quem ocupa o espaço é a igualmente brilhante Dora
Kramer, que assumiu o lugar depois que o não menos brilhante J.R. Guzzo deixou de colaborar com a revista, em outubro do ano passado, após um texto seu ter sido censurado). Sem mais delongas, passemos à coluna de Pompeu:
Como se sabe desde o segundo dia do governo Bolsonaro,
o presidente e o general Eduardo Villas Bôas guardam um segredo em
comum. Ao dar posse ao novo ministro da Defesa, em 2 de janeiro do ano passado,
Jair Bolsonaro disse, olhando para Villas Bôas, que ainda era o
comandante do Exército: “General Villas Bôas, o que já conversamos
morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”. De Bolsonaro
espera-se tudo — até mesmo, sem revelá-lo, contar que partilha com alguém
segredo tão comprometedor que só o segurando até o túmulo. Do general seria de
esperar que se mostrasse constrangido. Não. Emocionado, na cadeira de rodas a
que o prende uma perversa doença degenerativa, a custo conteve as lágrimas.
Se o segredo, em si, jamais será conhecido, em termos gerais
foi escancarado naquele momento mesmo: o comandante do Exército foi, no mínimo,
simpático à candidatura Bolsonaro, seja pelo que lhe ditava o coração,
seja pelo sentimento da tropa, seja pela soma dos dois fatores. Hoje a questão
que assola o Brasil é: que fazer dessa pessoa? Como conter esse desmiolado,
destrambelhado e desembestado ser que foi parar na Presidência da República? No
domingo 19, ao discursar a uma turba que, doidivanas como ele, pedia ditadura e
AI-5, além do fim da quarentena, ele desafiou ao mesmo tempo a Covid-19, as
instituições e, dado ter sido o ato realizado às portas do Q.G. do Exército, a
sacralidade do mais simbólico dos espaços militares.
Não dá para acreditar que os generais desejem uma ditadura.
Não fosse por fé na democracia, eles sabem o trabalhão que isso dá e o desgaste
que acarreta. Requer prender um monte de gente, cassar outras tantas. Se houver
resistência, torturar e matar. Também exige anular a Constituição e costurar
todo um novo ordenamento jurídico, além de, nesse meio-tempo, enfrentar o
opróbrio de países antes aliados e de personalidades e instituições
internacionais. Se censurar a imprensa, há cinquenta anos, era fácil, com a
internet tornou-se difícil, senão impossível. E chegará um tempo, como chegou à
ditadura de Getúlio e à dos militares, em que tudo o que foi feito deverá ser
desfeito, à custa de outro trabalhão, como o iniciado pelo general Geisel
com sua abertura “lenta, gradual e segura”.
Falta as Forças Armadas afirmarem com clareza que não
apoiarão delírios golpistas
E, no entanto, desde que Bolsonaro despontou no
horizonte, a reação militar a suas ignomínias tem primado pela contemporização.
O general Villas Bôas disse uma vez: “Ah, ele é incontrolável”, e
deu uma gargalhada, como faria um pai condescendente, até orgulhoso, diante das
estripulias do filhinho. Mesmo não sendo mais o comandante, Villas Bôas
é considerado um ícone no Exército. E foi a ele que Bolsonaro de novo
recorreu, na segunda-feira 30 de março, indo a sua casa para pedir socorro,
depois das críticas por ter encenado, no dia anterior, mais um de seus giros
pelo comércio de Brasília, em afronta ao isolamento imposto pela epidemia. Villas
Bôas não lhe faltou. Postou nas redes: “Pode-se discordar do presidente,
mas sua postura revela coragem e perseverança em suas convicções”.
De tapinha nas costas em tapinha nas costas, gestos em que a
suave repreensão se confunde com encorajamento, Bolsonaro avançou até
expor suas ambições ditatoriais ao modo escandaloso da performance entre
baderneiros e subversivos reunidos em frente ao Q.G. do Exército. Não dava para
deixar passar batido, e em nota o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e
Silva, declarou: “As Forças Armadas trabalham com o propósito de manter
a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal”.
A menção à Constituição foi um avanço, mas tímido, cheirando a mero cumprimento
de dever burocrático. Nas linhas seguintes a nota mudou de assunto, fixando-se
no combate à pandemia, quando devia berrar: “As Forças Armadas jamais se
envolverão em aventuras golpistas. Quem as defende merece o mais vigoroso
repúdio. Falar em ditadura e em AI-5 é um desvario. Nosso compromisso com a
democracia e a liberdade é inabalável”.
A confiança no respaldo militar é o colchão sobre o qual Bolsonaro
executa seus saltos mortais. Tire-se esse colchão e a ver se continuará o guri
“incontrolável” do general Villas Bôas. O impeachment é inaplicável a um
presidente com apoio de um terço do eleitorado. Resta, como recurso para
cortar-lhe as asas, a afirmação clara e eloquente de que não deve contar com as
Forças Armadas em seus delírios golpistas. Enquanto reinarem a timidez e a
ambiguidade, ele terá espaço para avançar, e as Forças Armadas seguirão sob uma
nuvem de suspeitas.