segunda-feira, 21 de outubro de 2019

O SUPREMO SUSPENSE E O TEXTO DE J.R. GUZZO QUE A REVISTA VEJA NÃO QUIS PUBLICAR



A FILA ANDA… — O TEXTO DE J.R. GUZZO QUE A REVISTA VEJA NÃO QUIS PUBLICAR

Conforme eu compartilhei em minha página no Facebook, o jornalista J.R. Guzzo — integrante do conselho de administração do grupo Abril e colunista das revistas Exame e Veja —, por quem eu tenho a maior admiração, deixou Veja depois que a revista rejeitou a matéria que ele escreveu para publicar em sua coluna desta semana.

Guzzo e Roberto Pompeu de Toledo se revezavam na página final da Veja, e sua coluna, assim como a de Dora Kramer, é para mim o último bastião e a única razão de continuar lendo a revista, que assino há mais de uma década. Ou assinava, já que resolvi não renovar a assinatura quando sua equipe editorial se aliou à Folha, à BandNews et caterva para divulgar de maneira sensacionalista o material que o site panfletário The Intercept Brasil obteve de criminosos e vem vazando a conta-gotas, a pretexto uma pseudo cruzada moralizadora contra o ex-juiz Sérgio Moro e a Lava-Jato.

Veja sempre foi implacável com os crimes cometidos por Lula e pelo PT, como comprovam dúzias de reportagens de capa publicadas ao longo das últimas décadas, sem mencionar a famosa entrevista com Pedro Collor, em 1992, que foi determinante para o impeachment do ex-caçador de marajás de araque. Agora, a exemplo de certo togado supremo em relação à prisão em segunda instância e de certo presidente desta Banânia em relação a suas promessas de campanha de acabar com a reeleição e de dar carta branca ao ministro da Justiça e Segurança Pública no combate à corrupção, a revista virou a casaca.

Deixo claro que minha decisão nada tem a ver com revanchismo barato nem a descabida pretensão de alinhar o viés editorial do que leio às minhas convicções político-partidárias. Apenas me recuso a continuar prestigiando quem resolveu compactuar com o desserviço que Verdevaldo das Couves vem prestando ao país ao atacar de maneira leviana a maior operação anticrime e anticorrupção da história e denegrir a imagem do ex-juiz e dos procuradores que a simbolizam.

Se é esse o "novo projeto jornalístico de Veja", eu passo. E prevejo um debandar geral de assinantes. Esquerdistas de carteirinha e quem mais bebe as palavras emanadas do site oficial do PT e do igualmente abjeto Brasil 247 de Leonardo Attuch, e da revista Carta Capital de Mino Carta, para ficar nos exemplos mais emblemáticos. Esses certamente não comprarão Veja, pois não tem por que consumi requentada, em segunda-mão, nos pratos sujos do pseudo "jornalismo isento e independente" da moribunda Veja, toda essa merda sectária e fanática e sectária. Aliás, rima com "moribunda" o que se poderia limpar com as páginas daquela que um dia foi melhor revista semanal do Brasil, não fosse o fato se o papel em que ela é impressa não ser absorvente.

Dito isso, transcrevo o texto de Guzzo que Veja se recusou a publicar e, na sequência, a posto a matéria que havia programado para hoje.
   
Um dos grandes amigos do Brasil e dos brasileiros de hoje é o calendário. Só ele, e mais nenhum outro instrumento à disposição da República, pode resolver um problema que jamais deveria ter se transformado em problema, pois sua função é justamente resolver problemas — o Supremo Tribunal Federal. O STF deu um cavalo de pau nos seus deveres e, com isso, conseguiu promover a si próprio à condição de calamidade pública, como essas que são trazidas por enchentes, vendavais ou terremotos de primeira linha.

Aberrações malignas da natureza, como todo mundo sabe, podem ser resolvidas pela ação do Corpo de Bombeiros e demais serviços de salvamento. Mas o STF é outro bicho. Ali a chuva não para de cair, o vento não para de soprar e a terra não para de tremer – não enquanto os indivíduos que fabricam essas desgraças continuarem em ação.

Eles são os onze ministros que formam a nossa “corte suprema”, e não podem ser demitidos nunca de seus cargos, nem que matem, fritem e comam a própria mãe no plenário. Só há uma maneira da população se livrar legalmente deles: esperar que completem 75 anos de idade. Aí, em compensação, não podem ser salvos nem por seus próprios decretos. Têm de ir embora, no ato, e não podem voltar nunca mais. Glória a Deus.

Demora? Demora, sem dúvida, e muita coisa realmente ruim pode acontecer enquanto o tempo não passa, mas há duas considerações básicas a se fazer antes de abandonar a alma ao desespero a cada vez que se reúne a apavorante “Segunda Turma” do STF — o símbolo, hoje, da maioria de ministros que transformou o Supremo, possivelmente, no pior tribunal superior em funcionamento em todo o mundo civilizado e em toda a nossa história.

A primeira consideração é que não se pode eliminar o STF sem um golpe de Estado, e isso não é uma opção válida dos pontos de vista político, moral ou prático. A segunda é que o calendário não para. Anda na base das 24 horas a cada dia e dos 365 dias a cada ano, é verdade, mas não há força neste mundo capaz de impedir que ele continue a andar. Levará embora para sempre, um dia, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski. Antes deles, já em novembro do ano que vem e em julho de 2021, irão para casa Celso de Mello e Marco Aurélio — será a maior contribuição que terão dado ao país desde sua entrada no serviço público, como acontecerá no caso dos colegas citados acima. E assim, um por um, todos irão embora — os bons, os ruins e os horríveis.

Faz diferença, é claro. Só os dois que irão para a rua a curto prazo já ajudam a mudar o equilíbrio aritmético entre o pouco de bom e o muitíssimo de ruim que existe hoje no tribunal. Como é praticamente impossível que sejam nomeados dois ministros piores do que eles, o resultado é uma soma no polo positivo e uma subtração no polo negativo — o que vai acabar influindo na formação da maioria nas votações em plenário e nas “turmas”.

Com mais algum tempo, em maio de 2023, o Brasil se livra de Lewandowski. A menos que o presidente da época seja Lula, ou coisa parecida, o ministro a ser nomeado para seu lugar tende a ser o seu exato contrário — e o STF, enfim, estará com uma cara bem diferente da que tem hoje.

O fato, em suma, é que o calendário não perdoa. O ministro Gilmar Mendes pode, por exemplo, proibir que o filho do presidente da República seja investigado criminalmente, ou que provas ilegais, obtidas através da prática de crime, sejam válidas numa corte de justiça. Mas não pode obrigar ninguém a fazer aniversário por ele. Gilmar e os seus colegas podem rasgar a Constituição todos os dias, mas não podem fugir da velhice.

O Brasil que vem aí à frente, por esse único fato, será um país melhor. Se você tem menos de 25 ou 30 anos de idade, pode ter certeza de que vai viver numa sociedade com outro conceito do que é justiça. Não estará sujeito, como acontece hoje, à ditadura de um STF que inventa leis, censura órgãos de imprensa e assina despachos em favor de seus próprios membros.

Se tiver mais do que isso, ainda pode pegar um bom período longe do pesadelo de insegurança, desordem e injustiça que existe hoje. Só não há jeito, mesmo, para quem já está na sala de espera da vida, aguardando a chamada para o último voo.

Para estes, paciência. (Poderiam contar, no papel, com o Senado — o único instrumento capaz de encurtar a espera, já que só ele tem o poder de decretar o impeachment de ministros do STF, mas isso não vai acontecer nunca; o Senado brasileiro é algo geneticamente programado para fazer o mal).
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Retomando a conversa do ponto onde paremos na postagem anterior, em fevereiro de 2016 o plenário do Supremo igualou o Brasil aos países desenvolvidos e decidiu pelo início do cumprimento da pena criminal após a decisão condenatória de tribunal em segunda instância (HC 126.292, relator ministro Teori Zavascki). Entendeu a maioria que o início da execução da pena não fere o princípio da presunção de inocência, pois no julgamento da apelação faz-se o completo reexame dos fatos e provas, garantindo o direito ao duplo grau de jurisdição previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos.

Às instâncias superiores (STJ e STF) cabe apenas apreciar questões de Direito, sem análise das provas. À primeira poderão ser arguidas eventuais ofensas à legislação e à segunda, matérias constitucionais cuja relevância transcenda os interesses particulares da causa. Assim, a condenação em segunda instância esgota a presunção de inocência, e como o recurso sobre matéria de Direito não tem efeito suspensivo, é razoável o início do cumprimento da pena criminal pelo condenado.

Excepcionalmente, em casos de flagrante afronta à jurisprudência do STJ e do STF ou de manifestos erros e constrangimentos ilegais — que poderão ensejar a anulação do processo ou a absolvição do réu — será cabível medida cautelar para suspender a execução da pena ou, ainda, a impetração de habeas corpus, que tem trâmite mais célere. Trata-se, todavia, de exceções, conforme pesquisas de coordenadorias de gestão do STJ e do STF, divulgadas pelo ministro Roberto Barroso (O Globo, 2/2/2018 e 5/4/2018). No STJ, entre setembro de 2015 e agosto de 2017, a Corte reverteu apenas 0,62% das condenações em segunda instância. No STF, no período de janeiro de 2009 a abril de 2016, as absolvições corresponderam a menos de 0,1% dos recursos.

Em 2016, como referido, o STF reverteu posição firmada em 2009, quando a maioria conferiu caráter absoluto ao princípio da presunção de inocência e admitiu o início do cumprimento da pena criminal somente após o julgamento de recursos pendentes no STJ e no STF (HC 84.078). Essa posição era atípica no plano internacional, não tinha coerência com o sistema normativo e a organização da Justiça estabelecidos pela Constituição, tinha impacto estatisticamente irrelevante no resguardo da liberdade de réus inocentes e ignorava que penas decorrentes de condenações com ilegalidade manifesta podem sempre ser remediadas por meios excepcionais. Mas o mais importante é que permitia que os processos perdurassem por longo tempo nas instâncias superiores e motivassem a interposição de sucessivos recursos internos, favorecendo a ocorrência significativa da prescrição de ações penais.

Nas mencionadas pesquisas, no período de setembro de 2015 a agosto de 2017, verificou-se que 830 ações penais prescreveram no STJ e 116 no STF. A referida posição favorecia a não punição expressiva de condenados, em prejuízo da efetividade do dever de punir do Estado. A proteção da liberdade individual não pode ser realizada a ponto de comprometer a finalidade e a efetividade da ordem jurídica na prevenção e repressão de condutas danosas à convivência humana. A prisão somente após trânsito em julgado favorece até mesmo a não punição de crimes contra a ordem econômica e a administração pública, o que, consequentemente, acaba por incentivar a perpetuação dos delitos de corrupção. Isso contribui para a perda de confiança da população no próprio Direito e no Poder Judiciário, desestimulando o respeito à lei e às instituições públicas, que passam a ser vistas como seletivas e complacentes com privilégios oligárquicos.

A dignidade humana só é verdadeiramente respeitada num Estado Democrático de Direito quando a lei é seguida e cumprida de forma isonômica e proporcional, de modo a contribuir para a responsabilização de quem descumpre seus deveres e abusa de sua liberdade, assegurando-se o bem comum e a legitimidade da ordem jurídica. E, mais grave, a posição propicia fator impeditivo do desenvolvimento do País: a corrupção endêmica (cf. Índice de percepção da corrupção em 2018, Transparência Internacional). O principal incentivo ao boom de colaborações premiadas no âmbito da Operação Lava-Jato foi exatamente a posição do STF a favor do cumprimento da pena criminal após a condenação em segunda instância. Agora a matéria volta a ser analisada pelo plenário do STF, onde se discute a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, cuja redação foi alterada em 2011 e se limitou a reproduzir a então posição que o STF adotou em 2009.

Esse dispositivo é inconstitucional, pelos motivos já expostos: o princípio da presunção de inocência não tem caráter absoluto e não pode tornar inviável a efetivação razoável do dever de punir do Estado, a ponto de enfraquecer a legitimidade da ordem jurídica. O exemplo da corrupção, dentre os graves crimes que não podem ficar sem pena, é bastante significativo: o Brasil jamais será um país desenvolvido se não diminuir seus intoleráveis índices de corrupção, cuja não punição incentiva pactos oligárquicos contrários à maioria da população, impondo-lhe condições de vida indignas e perda de confiança nas leis e nas instituições. Portanto, espera-se que o STF cumpra o seu papel de defender a Constituição e confirme o seu entendimento de prisão após condenação em segunda instância. Trata-se de interpretação imprescindível para a permanência do nosso contrato social democrático, fundado nas leis sempre voltadas para o bem comum, o que é incompatível com a impunidade dos criminosos.

Com Modesto Carvalhosa.