terça-feira, 21 de abril de 2020

O RUMO DO NAUFRÁGIO





Bolsonaro fritou Mandetta durante semanas. Infernizou a vida do pajé para evitar o desgaste que certamente amargaria de uma exoneração a mando do morubixaba. Até aí, nenhuma surpresa. Nada muito diferente do que o presidente fez com Sérgio Moro e com outros auxiliares, começando pelo amigo de fé, irão e camarada Gustavo Bebianno, cuja articulação foi fundamental para a campanha do capitão das trevas decolar.

De nada adiantou forçar Mandetta a engolir todos os sapos e sorver até a última gota a água da lagoa. O ministro deixou claro que médico não abandona paciente e que só sairia: a) quando a crise sanitária fosse controlada e seu trabalho pudesse ser dado por encerrado; b) se e quando fosse riscado do organograma da Esplanada dos Ministérios pela poderosa Bic de dois merréis do dublê de presidente e napoleão de hospício.

Deu “b”, o que também não foi surpresa — não depois de o general Mourão dizer que o esculápio cruzara a linha (referindo-se à entrevista de Mandetta ao Fantástico no domingo 12).

Segundo o Datafolha, quase 70% dos pesquisados reprovaram a demissão de Mandetta, a exemplo dos presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo e dos parlamentares em geral. Noves fora o triunvirato de zeros e a claque de bolsomínions, ninguém ficou feliz com a maneira como essa novela terminou — nem mesmo o ex-ministro Osmar Terra, que se autoelegeu virtual herdeiro da pasta e incentivou Bolsonaro a exonerar o titular.

Ministro novo, “total alinhamento” com o novo chefe, certo? Não é o que parece. A falácia não foi além do discurso de posse, e se desintegrou depois que Teich, na reunião virtual com ministros da Saúde dos demais países do G-20, disse que “o Brasil reconhece o papel da Organização Mundial da Saúde” depois que Bolsonaro apareceu sem máscara numa aglomeração sanitariamente imprudente, no último domingo, e se misturou à multidão, cumprimentou apoiadores, tirou fotos e discursou, parecendo tão à vontade quanto um porco na merda.

Janaína Pascoal, co-signatária do pedido de impeachment da ex-presidanta Dilmanta, eleita deputada estadual por São Paulo com o maior número de votos da história e ex-apoiadora de primeira hora do presidente, assim se pronunciou:  

Muita gente diz para mim: ‘Janaína, você tem que entender que ele está fazendo isso para chegar não sei onde’. Muita gente vê assim, sei lá, algo de muito sábio [nas atitudes do presidente]. Eu não consigo ver. Para mim, é uma grande burrice. Porque ele poderia estar liderando esse momento, até para coordenar a reabertura em alguns locais. Reabrir alguns locais não é ruim: a gente pode avaliar a evolução dos números, pode comparar onde está tudo fechado. É uma experiência nova para o mundo todo. Todos nós estamos inseguros sobre quais passos dar. Agora, quando ele adota uma postura de birra — porque, para mim, ele faz birra —, ele perde todo esse potencial de liderança. É nesse sentido que eu não consigo ver estratégia. Eu não consigo ver inteligência. E a falta de estratégia e inteligência é tal que não dá para votar nele em 2022. Porque ninguém aguenta mais esse inferno. Cada hora é uma confusão que ele cria, que os filhos criam, que aquele núcleo cria. O país, para evoluir, precisa de um pouco de tranquilidade. E, agora sou em quem diz, um pouco menos de Bolsonaro.”

Volto a frisar que qualquer coisa pode ser dita de Bolsonaro, menos que ele tenha enganado alguém a respeito de quem realmente é. Mas isso não muda o fato de suas atitudes serem coisa de lunático, e lugar de psicopata é no sanatório. Cada vez que o doidivanas abre a boca, o prestígio desta banânia se encolhe como um rato acuado pelo gato. E para o falastrão palaciano não tem final de semana, ponto facultativo nem feriado; ele trabalha 27/7 e todo santo dia presta um novo desserviço à nação.

Bolsonaro tornou-se tristemente previsível. Empenhado em entregar ao Brasil o pior de si, consolida-se como uma dupla ameaça. Poe um lado, põe em risco a saúde pública; por outro, desafia a democracia às escâncaras. No discurso do último domingo, assim brindou os manifestantes subversivos: “(...)vocês estão aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil. Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil (...). Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder (...) Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro (...)”.

De volta ao Planalto, Bolsonaro subiu a rampa e apontou para a sede do STF, do outro lado da Praça dos Três Poderes, enquanto lamentava que a Corte tenha decidido que estados e municípios podem baixar medidas que considerem necessárias para conter a marcha do coronavírus.

Os únicos trechos do ramerrão presidencial que continham novidade genuína foram os onomatopaicos: "Coff, coff, coff. Tosse seca, do tipo que inferniza vítimas do coronavírus. Vale lembrar que Bolsonaro declarou ter testado negativo duas vezes para a doença, mas jamais exibiu os testes, e o Planalto se negou a divulgá-los, mesmo quando requisitados com base na Lei de Acesso à Informação. Entre uma tosse e outra, o "Mito" realçou sua opção preferencial pelo isolamento político: "Não queremos negociar nada." Em meio a faixas e gritos contra o Congresso e o STF, avalizou a insensatez golpista: "Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder." Antes de ser providencialmente interrompido por mais um acesso de tosse, reciclou a pose de novidade: "Chega —coff, coff...— da velha política. Agora, é Brasil acim... — coff, coff— ...agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todoscoff, coff, coff..."

Como o escorpião da fábula, Bolsonaro é incapaz de agir contra a própria natureza. Suas atitudes espelham seu passado, e à medida que se sente tolhido de praticar um enfrentamento sem base científica da epidemia da Covid-19, radicaliza. Como fez ao tomar parte da manifestação subversiva de domingo. “Tem prefeitos aí que cometeram barbaridades”, disse, referindo-se ao fechamento escolas, comércios, praias, visando impedir aglomerações e conter a propagação do vírus.

Até os ministros militares lamentaram o papel desempenhado pelo chefe. Mas o desatino pede reação mais eloquente. Algo mais palpável do que cara de nojo. O general Hamilton Mourão disse a interlocutores que se arrependeu de não ter se posicionado no mesmo dia, e a tendência era que ele se manifestasse ontem, segunda-feira. E certamente não seria em apoio ao presidente. Especula-se também que a videoconferência dos comandantes das Forças Armadas com o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, que vem discutido semanalmente assuntos relacionados à operação contra o coronavírus, desta vez trate de outras questões além da pandemia.

Desde o início de seu governo que Bolsonaro demonstra repúdio pelos freios e contrapesos de uma democracia representativa. Se não vir por si mesmo que Legislativo e Judiciário existem para atuar ao lado do Executivo de forma harmônica, e que existem barreiras institucionais para conter um poder que tente se sobrepor aos outros — caso do Executivo com ele na poltrona presidencial —, alguém precisa lhe abrir os olhos. Ou cegá-lo de vez.

Josias de Souza escreveu que o presidente vem assumindo aos poucos a incômoda aparência de um maestro da orquestra do Titanic. O excesso de confiança o impede de perceber que há uma fenda no casco do governo. Com a economia do país a caminho do fundo, a água logo estará invadindo as escotilhas. E menosprezando o fato de que o vírus desliza pelo convés, continua movimentando a batuta diante da claque da "volta à normalidade". Ou ele interrompe a charanga anticientífica e golpista, ou comprovará sua tese de que esta administração tem, sim um rumo. O rumo do naufrágio.