Jair e Luiz Inácio tomam
sol no jardim do hospício. O primeiro mantém a mão esquerda sob o roupão, na
altura do estômago. O segundo mastiga preguiçosamente um raminho de capim. Um
alienista do corpo clínico se aproxima e pergunta a Jair:
— Quem é você?
— Napoleão Bonaparte.
— E de onde você tirou essa ideia?
— Foi Deus que me disse.
Luiz Inácio retruca:
— É mentira dele, doutor. Eu nunca falei isso pra ele!
Piadas à parte, seria improvável que um beócio se elegesse
presidente da República, mesmo numa banânia como a nossa. Mas dois
beócios conseguirem essa proeza seria virtualmente impossível.
Ou não. Ainda que o mascador de capim megalomaníaco da anedota seja
um desculturado exótico que, segundo ele próprio, jamais leu um livro na vida,
e o napoleão de hospício seja um
caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar — como
o definiu o general ditador Ernesto Geisel numa entrevista a
historiadores da FGV em 1993 —, nem um nem o outro é burro ou
doido de pedra. Até porque doido de pedra que se preza rasga dinheiro e come
merda, e nenhum dos dois faz isso. Muito pelo contrário.
O retirante nordestino, que sempre ambicionou a vida fácil,
trocou a pinga vagabunda e os cigarros Hollywood por vinhos premiados, uísques
20 anos e charutos de US$ 100 quando encontrou quem pagasse a conta. Após
decepar o dedo mindinho esquerdo num “acidente de trabalho” pra lá de
suspeito, deixou de ser torneiro mecânico e iniciou uma profícua
carreira de sindicalista predador e malandro, que traía os “cumpanhêros”
começando e encerrando greves para ganhar dinheiro em acordos espúrios (como
disse o ex-engenheiro sênior da CSN e especialista em
metalurgia de produção Lewton Verri, que conheceu os ex-metalúrgico
na década de 70).
Em 1980, valendo-se de seu extraordinário carisma e do dom
inato de encantador de burros, o desempregado que deu certo — que já não sabia
o que era chão de fábrica desde 1972 — fundou o PT e passou a
se dedicar em tempo integral à “arte da política”. O general Golbery do
Couto e Silva, ex-chefe da Casa Civil em dois governos da
ditadura militar e arquiteto da “abertura lenta e gradual”, disse certa vez a Emílio
Odebrecht que o
pseudo militante comunista nada tinha de esquerda, que ele não passava de um
“bon-vivant”. E o tempo provou quão acurada foi sua avaliação. O deus
pai da Petelândia jamais foi o que a construção de sua imagem pretendia, mas
sim alguém avesso ao trabalho, que vivia de privilégios e mordomias
conquistados através de contatos proveitosos e a poder da total ausência do
conjunto de valores éticos e morais que permitem distinguir o aceitável do
inaceitável.
Voltando agora a Bebianno, faltou dizer que,
oficialmente, sua demissão se deveu às
folclóricas candidaturas-laranjas no PSL — esquema do qual ele
não só negou
ter participado como disse ter alertado o presidente. Bolsonaro
e seu triunvirato procuraram
desmenti-lo, mas áudios divulgados pela revista Veja comprovaram
a versão do ex-ministro.
Em entrevista à Jovem Pan, o advogado disse que não sairia
do governo atirando, que foi convidado a assumir uma direção em Itaipu, mas que
recusou por
uma questão de dignidade). Sobre os motivos de seu desligamento, ele assim
se pronunciou: "Fui demitido pelo Carlos Bolsonaro, simples assim.
Não era nem para ter assumido, nunca pedi nada ao presidente desde o primeiro
dia que comecei a ajudá-lo, não queria nada". Na mesma entrevista, comentou
a “agressividade acima do normal de zero dois, que é conhecido como ‘destruidor
de reputações’ e já atacou criou atritos com vários colegas de partido sem
qualquer motivo”.
Mas Bebianno passou
de aliado a desafeto e se tornou um dos maiores críticos do governo.
Quatro meses após deixar o governo, desligou-se oficialmente do PSL e
filiou-se ao PSDB. Em dezembro, também em entrevista à Jovem Pan,
ele não só chamou
o presidente de psicopata como disse sentir-se “vulnerável e sob
risco constante" por ter entrado em choque direto com ele. No evento
que marcou sua filiação ao PSDB, declarou que “a
democracia estava em risco devido à postura de Bolsonaro” e atribuiu o
ambiente de “instabilidade política e econômica ao grau de loucura e
irresponsabilidade capitaneado pelo próprio presidente”.
No dia 5 do mês passado, Bebianno anunciou sua pré-candidatura
à Prefeitura do Rio, cujo lançamento oficial estava marcado para o último dia 4.
Também vinha costurando com o governador tucano João Dória um acerto
para coordenar sua campanha em 2022, assim como fez com a de Bolsonaro
em 2018. Mas não houve tempo para nada disso. Bebianno morreu dia 14 do
mês passado, em Teresópolis, devido a um infarte agudo do miocárdio
seguido da queda que provocou uma lesão na cabeça, o que deu margem a diversas
teorias da conspiração, já que ele havia aventado mais de uma vez a possibilidade
de revelar detalhes sórdidos da campanha presidencial e estava escrevendo um
livro ("Uma eleição improvável") sobre o assunto.
No sábado, 7 de março, Bebianno gravou imagens para
um documentário sobre as eleições — dirigido por Bruno Barreto — que
estava na fase de coleta de depoimentos, e dispunha de muitas imagens de
bastidores que havia colecionado durante a campanha, que pretendia agregar ao
documentário. Na noite em que morreu, ele acordou por volta das 3 horas,
com dores em um dos braços e no peito. Foi socorrido pelo filho, que estava com
ele no sítio — a esposa e a filha haviam ficado no Rio. No banheiro, caiu,
bateu com o rosto no chão e ficou 30 minutos desacordado até ser levado ao Hospital
Central de Teresópolis pelo filho, com a ajuda do caseiro do sítio.
Mas as manobras médicas não foram suficientes para evitar sua morte.
De novo: Bebianno era um arquivo vivo da campanha de
Bolsonaro. Ele foi para o capitão o que foi PC Farias foi para Collor
e Antonio Palocci para Lula, e entrou para o rol de mortes
igualmente enigmáticas, como a de
Ulysses Guimarães (o helicóptero em que ele viajava de Angra dos Reis
para a capital paulista mergulhou
no mar próximo à Praia do Sono, poucos minutos após a decolagem, e os
corpos do deputado e da mulher, Dona Mora, jamais foram encontrados). Ou
do ex-presidente
Juscelino Kubitschek em 1976 (no auge da ditadura militar, portanto), uma
estranho acidente automobilístico na via Dutra. Ou as igualmente mal explicadas
quedas das aeronaves em que viajavam o candidato
à presidência Eduardo Campos, em agosto de 2014, e o ministro
Teori Zavascki, em janeiro de 2017. Isso sem mencionar os assassinatos
(jamais esclarecidos) dos políticos petistas Celso
Daniel, prefeito de Santo André, e Toninho
do PT, de Campinas. E por aí segue a procissão.
Continua...