sexta-feira, 24 de abril de 2020

SOBRE A RENÚNCIA DE MORO E DE VOLTA À RENÚNCIA DE JÂNIO, SUAS CONSEQUÊNCIAS E OUTRAS CURIOSIDADES — PARTE IV


Ontem, após ficar bastante volátil com notícias envolvendo o remédio Remdesivir, o Ibovespa passou a cair mais de 2% com a informação divulgada pela FOLHA, no meio da tarde, de que o ministro Sergio Moro havia pedido demissão após ser informado por Bolsonaro da iminente troca da diretoria-geral da Polícia Federal, atualmente ocupada por Maurício Valeixo. Ainda segundo a notícia, Bolsonaro estaria tentando reverter a situação e os ministros Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) foram escalados para convencer Moro a recuar da decisão.  Cerca de uma hora depois, a GloboNews noticiou que Moro não chegou a pedir demissão, mas ameaçou deixar o cargo caso o presidente realizasse a troca na PF. Oficialmente, o ministério da Justiça disse que o ministro não se demitiu.

ATUALIZAÇÃO: Bolsonaro demitiu Valeixo em plena madrugada. A exoneração foi publicada na manhã desta sexta-feira no D.O.U. Nela, consta que a demissão se deu "a pedido", mas não foi decisão de Valeixo deixar o cargo neste momento. Nos bastidores, comenta-se que dessa forma a demissão evitaria ainda mais desgastes a Sergio Moro, que deve se pronunciar sobre sua permanência ou não no cargo ainda nesta manhã (as 11h desta manhã). Especula-se que Moro tenha ficado extremamente incomodado com a ida de Bolsonaro à manifestação do último domingo e de o presidente abrir as portas de seu gabinete aos líderes do Centrão. A ingerência do capitão na PF foi apenas a gota que fez transbordar o copo. Especula-se também que o ministro ficará no governo caso possa escolher o substituto do agora ex-diretor-geral da PF.

Pelo visto (e pelos filhos), Bolsonaro é capaz de tudo. Até de pôr seu próprio governo em xeque (para o bem do Brasil, tomara que seja xeque-mate). Mas o presidente não terá vida fácil diante da PF depois de demitir seu diretor-geral. Sobretudo porque o verdadeiro motivo, como é público e notória, foi a PF cumprir seu trabalho em vez de proteger a família do presidente de investigações incômodas. A intenção do capitão é nomear um lambe-botas sob medida para seus objetivos. O problema é que, pela tradição da PF, o diretor-geral que sai indica uma série de nomes (em geral seus assessores mais próximos, superintendentes regionais ou adidos no exterior) ao ministro da Justiça, que leva o seu escolhido ao presidente da República, que chancela a indicação. A ideia de subverter esse jogo e a nomeação vir diretamente de Bolsonaro não é só uma humilhação (mais uma) que Moro não parece disposto a aceitar — mas é também algo que a corporação deve rejeitar com vigor.

Internamente, os delegados mais graduados lembram o desastre de uma tentativa recente de mudar a tradição na nomeação do diretor-geral. No início de 2018, Fernando Segóvia foi demitido do comando da PF, pelo recém empossado ministro Raul Jungmann, depois de apenas 99 dias no cargo. Segóvia fora escolhido por Michel Temer, atendendo à indicação de emedebistas enrolados na Lava-Jato e passando por cima da opinião do então ministro da Justiça, Torquato Jardim. Já na cerimônia de posse disse a que veio: botou em dúvida fatos das investigações sobre Rodrigo Rocha Loures, aquele assessor de Temer que foi filmado recebendo uma mala com R$ 500 mil das mãos de um diretor da JBS. A partir daí, foi crise em cima de crise. Segóvia tentou, mas nunca conseguiu liderar a PF nos três meses que esteve à frente dela. Durante o seu tempo como diretor-geral, não conseguiu controlar a PF do jeito que Temer e parte do MDB queriam.

Vamos aguardar para ver que bicho dá.

Quando cursava o primário — como eram denominados os primeiros quatro anos do que hoje se chama ensino fundamental —, aprendi uma forma verbal chamada "condicional", que mais adiante seria rebatizada de "futuro do pretérito", já que expressa tanto uma situação quanto uma condição. Um exemplo do primeiro caso é: “eu compraria aquele carro, se o preço fosse mais baixo”; e do segundo: “anos atrás eu não tinha certeza se compraria o carro que tenho hoje”.

Em ambos os casos o verbo se comporta da mesma forma, mas com sentidos diversos, o que não deixa dúvidas acerca da exatidão das duas designações. Ainda assim, há quem entenda que o condicional não indica uma condição

No primeiro exemplo, temos duas orações, e a condicional não é a primeira, onde está o verbo no modo condicional, mas a segunda, indicada pela conjunção subordinativa condicional ou causal “se”. Na esteira desse raciocínio, parece-me realmente mais apropriado chamar o tempo verbal em questão de “futuro do pretérito”.

Embora o termo pretérito seja usado como sinônimo de passado, ele não remete ao presente em que vivemos, mas a um presente em que viveríamos se, por exemplo, numa encruzilhada do passado, tivéssemos virado à esquerda em vez de à direita, ou retrocedido até a encruzilhada anterior. 

Nessa linha de raciocínio, a pergunta que se impõe é: como seria o Brasil de hoje se Tancredo tivesse tomado posse, governado pelos cinco anos que a Constituição de então lhe garantia e, ao final, passado a faixa para (aí, sim) o primeiro presidente escolhido pelo voto popular desde a eleição de Jânio em 1960 (que seria... ???). The answer, my friends, is blowing in the wind.

Muita coisa poderia dar errado no capítulo final da novela da transição da ditadura militar para a democracia. Em 1984, em conversa com o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, o então presidente-general Figueiredo teria dito que, naquele momento, “as Forças Armadas estavam divididas em dois grupos: um que apoiava fortemente a volta do governo civil e outro que estava disposto a impedir o que via como um avanço da esquerda”. Kissinger questionou se algo poderia acontecer antes ou depois das eleições, em janeiro de 1985. Figueiredo respondeu: “Sim, dependendo do desenrolar dos acontecimentos”, e salientou que “as Forças Armadas não falhariam ao compromisso de impedir, nas palavras dele, que esquerdistas tomassem o país, e que, se os militares tivessem que intervir, o país poderia ser levado a uma guerra civil”. Figueiredo via Tancredo como “uma pessoa capaz e moderada”, mas “cercada e apoiada por muitos radicais de esquerda”, e tinha receio de que, quando assumisse o poder, se eleito fosse, o político mineiro “não conseguisse controlá-los”.

Muito se cogitou da hipótese de Tancredo ser assassinado, mas — eis aí a gargalhada do capeta —, pelo menos até onde eu sei, ninguém previu que ele seria internado 12 horas antes da cerimônia de posse e morresse 38 dias (e sete cirurgias) depois. Mesmo assim, essa ironia do destino deu margem a um sem-número de teorias conspiratórias, a exemplo do ocorrido com o Papa João Paulo I em 1978 — 33 dias depois de ser nomeado papa, o cardeal Albino Luciani foi encontrado morto em seus aposentos, na manhã do dia 28 de setembro daquele ano, depois de ter tomado uma inocente chávena de chá na noite anterior.

A posse de Sarney soou como a “gargalhada do diabo” nos estertores da ditadura militar (na prática, a Nova República só teria início três anos depois, com a promulgação da Constituição Cidadã — criada durante a ressaca dos 21 anos de ditadura; portanto, compreensivelmente apinhada de direitos em seus 250 artigos que são não apenas o obelisco da prolixidade, mas uma colcha de retalhos.

A Carta Magna promulgada em 1988 foi remendada mais de uma centena de vezes (a título de comparação, a constituição norte-americana, promulgada em 1787, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas nos últimos 220 anos), e distribuiu diretos a rodo, mas sem apontar de onde viriam os recursos para bancá-los. A propósito: a palavra “Direito” é mencionada 76 vezes, enquanto "Dever" surge apenas 4 oportunidades e "Produtividade” e “Eficiência” aparecem duas e uma vez, respectivamente. Daí a pergunta: o que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e uma eficiência? A resposta: na melhor das hipóteses, uma política pública de produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o mundo real.

Com a morte de Tancredo, o vice José Sarney — que estava no lugar certo na hora certa — assumiu a presidência, a despeito de Figueiredo se recusar a lhe passar a faixa (por considerar traição ele ter abandonado a ARENA e se filiado ao MDB para integrar a chapa de Tancredo). Como se vê, a mosca azul não perdoa ninguém. Mas o político maranhense jamais imaginou o tamanho da encrenca em que se metera ao assumir a presidência sem ter indicado os ministros ou tido qualquer tipo de ingerência no plano de governo, sem contar com o apoio do Congresso, e (a cereja do bolo) com o país amargando uma inflação galopante de 200% ao ano.

Cinco anos e quatro planos econômicos mais adiante, Sarney passou o cetro e a coroa ao caçador de marajás de araque, juntamente com uma inflação 80% ao mês (quase 1.800% ao ano, considerando os doze meses finais do seu governo). Durante sua desditosa gestão, enfrentou mais de 12 mil greves, foi vítima de pelo menos um atentado e, certa vez, um sequestrador tentou jogar um Boeing sobre o palácio. Mas teve jogo de cintura e sempre manteve diálogo com os militares, o Congresso e a oposição. Em recente entrevista a Veja, declarou: Na história do Brasil, muitos presidentes foram eleitos para ser depostos — e eu não podia ser mais um”.

Tivesse feito essa profecia durante seu governo, Sarney teria se revelado um profeta, pois seu vaticínio se materializaria dali a poucos anos, com impeachment de seu sucessor, Fernando Collor de Mello. Mas isso já é conversa para o próximo capítulo.