sábado, 25 de abril de 2020

BOLSONARO FOI BUSCAR LÃ, MAS SAIU TOSQUIADO


Três anos antes de bater a cachuleta, Ernesto Geisel (1907-1996) disse em entrevista ao FGV que Jair Bolsonaro era um homem anormal e “mau militar”. Fico imaginando o que ele diria se vivesse para ver o alvo de seu desprezo ser tornar “um homem anormal e mau presidente” — uma verdadeira usina de crises que vem trabalhando para inviabilizar a própria permanência no cargo.

O número do partido pelo qual Bolsonaro disputou as eleições de 2018 era 17. Faltam seis dias para seu governo completar 17 meses. Quando o elegemos, esperávamos dele que: 1) derrotasse o bonifrate do demiurgo de Garanhuns, evitando a volta do PT ao poder, e 2) assumisse o timão da Nau dos Insensatos e a levasse a bom porto.

Bolsonaro se desincumbiu da primeira tarefa, ainda que o mérito seja da parcela racional do eleitorado. Nem sempre o inimigo do nosso inimigo é nosso amigo, mas situações extremas demandam medidas extremadas. Assim, unimos forças com bolsomínions fanáticos em prol de um objetivo comum, ainda que por motivos diferentes. Já a segunda missão parece suplantar sua capacidade, mestre que é em parir crises e ineficiente em solucioná-las sem criar outras mais.

Dezessete meses de governo e o capitão das trevas continua em campanha, com um pé no palanque de 2018 e o outro no sonho (cada vez menos provável) de se reeleger em 2022. Se já pairam dúvidas sobre ele terminar o atual mandato, que dirá de concorrer a uma segunda gestão? Os panelaços de ontem que o digam.

No último dia 5, falando a sua claque de apoiadores, Bolsonaro mandou um recado:

“(...)algumas pessoas do meu governo, algo subiu à cabeça deles. Estão se achando demais. Eram pessoas normais, mas, de repente, viraram estrelas, falam pelos cotovelos, tem provocações. A hora D não chegou ainda não. Vai chegar a hora deles, porque a minha caneta funciona. Não tenho medo de usar a caneta, nem pavor. E ela vai ser usada para o bem do Brasil. Não é para o meu bem. Nada pessoal meu".

Viu-se nesta semana que a ameaça era dirigida tanto a Mandetta quanto a Moro, mas o Posto Ipiranga deve pôr as barbichas de molho. A menos que Rodrigo Maia chute o pau da barraca. Dormitam em sua gaveta pelo menos 30 de pedidos de impeachment contra o chefe do Executivo. Muitos não passavam de jus sperniandi de desafetos declarados, mas depois de ontem a história mudou um bocado. 

No dia 16, Bolsonaro sacou sua patética Bic de 2 mirréis e defenestrou Mandetta. Oito dias após demitir Mandetta, mas depois de meses fazendo Sérgio Moro engolir os sapos e sorver toda a água da lagoa, o presidente arrancou a fórceps o pedido de demissão do ministro, mas jamais poderia imaginar que este o apresentasse na forma de sentença condenatória, com observou Josias de Souza.

Moro se reinvestiu na condição de juiz e condenou Bolsonaro pelo crime de tramar o uso político da Polícia Federal para abafar investigações, inclusive inquéritos que correm no STF. Desde o início da crise do coronavírus, quando o presidente começou a conspirar contra si mesmo de forma mais intensa, o país receava que surgisse uma encrenca terminal, capaz de empurrar a conjuntura para o caos. Temia-se o aparecimento de um fato que justificasse o uso do ponto de exclamação que se escuta quando as pessoas dizem "não é possível!" Pois bem, o sinal foi dado.

A saída de Moro chutando a porta ficará gravada no enredo da tragicomédia em que Bolsonaro transformou a sua Presidência como um marco da derrocada. De agora em diante, tudo é epílogo para o capitão. Na prática, Moro cancelou a primeira posse de Bolsonaro. Sua despedida marca a reinauguração do governo. O presidente é o mesmo, só que virado do avesso. Ao esmiuçar as conversas antirrepublicanas em que Bolsonaro lhe disse que desejava aparelhar a Polícia Federal para anestesiar os inquéritos que rondam o clã presidencial, Moro arrancou da cena o cordeiro antissistema que prevaleceu na campanha de 2018. Materializou-se na sentença do agora ex-ministro um lobo sistêmico que aparelha a PF e negocia com a alcateia corrupta do centrão uma a blindagem política contra o derretimento do seu mandato. Moro como que retirou do baralho de Bolsonaro a carta da reeleição. Acomodou no lugar o curinga do impeachment.

Içado ao primeiro escalão do governo como símbolo do combate à corrupção, Moro ofereceu no seu último ato no ministério farto material para o enquadramento de Bolsonaro no crime de responsabilidade. Deu ao presidente uma aparência de sub-Lula ao realçar que nem mesmo os governos do PT ousaram converter a PF num órgão companheiro. Ao informar que vai ao mercado à procura de emprego, o ex-ministro declarou que continuará à disposição do país. Com a popularidade na casa dos 50%, contra cerca de 30% atribuídos ao agora ex-chefe, Moro deixou no ar o aroma de um flerte com as urnas de 2022. Bolsonaro criou um pesadelo do qual terá dificuldade para despertar.

Mandetta caiu porque era contrário à flexibilização da quarentena e ao uso indiscriminado da cloroquina no combate à Covid-19 (bandeiras defendidas à exaustão pelo presidente da República), e Moro, porque seu homem de confiança na PF foi demitido a sua revelia, na calada da madrugada, porque o capitão quer nomear um delegado-geral que lhe lamba as botas e blinde seus rebentos das investigações em curso (zero dois por comandar o gabinete de ódio da presidência e zero um pela prática de rachadinha quando era deputado estadual). Moro afirmou em seu pronunciamento de demissão que foi surpreendido pela exoneração de Valeixo publicada no Diário Oficial como "a pedido" e com as assinaturas eletrônicas do presidente Jair Bolsonaro e dele próprio (Moro). Disse que não assinou a medida e que soube de madrugada de sua publicação. "Esse último ato foi uma sinalização de que o presidente me quer fora do cargo".

Substitui Valeixo da diretoria da PF o delegado federal Alexandre Ramagem, que coordenou a segurança do então candidato à presidência, e é amigo de seus filhos. O momento não poderia ser menos adequado para essa substituição, não pelo substituição em si, mas pelo efeito colateral bombástico que adveio dela, qual seja a saída de Moro do governo. E o momento é ainda mais inadequado para um processo de impeachment, sobretudo devido à pandemia da Covid-19, que, por algumas horas, deixou de ser notícia e cedeu espaço à Bic de dois merréis do presidente da banânia.

Governar não é simplesmente ganhar eleições. E governar em tempos de guerra exige mais ainda. Como disse FHC, “liderar um país não é dar ordens ao povo, mas fazer com que as pessoas sigam junto com você”. A propósito: a grão duque tucano postou em suas redes sociais que Bolsonaro deveria renunciar, poupando, assim, a sociedade de mais um processo de impeachment.