domingo, 26 de abril de 2020

O BRASIL NÃO PODE PARAR



Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram
meu outro vizinho, que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.
No terceiro dia, vieram
e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
A aí já não havia mais ninguém para se incomodar...

Martin Niemöller - 1933 - Símbolo da resistência aos nazistas.

Era uma vez um dono de lanchonete que vamos chamar de Eduardo JairE. J. para os íntimos.

E. J. era um sujeito de lógica inescrutável e porte atlético. Dizia-se imune a vírus de qualquer tipo, que tirava de letra o SARS-CoV-2, que seria capaz de atravessar a nado o rio Pinheiros, verdadeiro esgoto a céu aberto que corta a cidade de São Paulo, e sair saudável e cheiroso como uma flor.

E. J. acompanhou a escalada do vírus comunista que cruzou o mundo para vir atrapalhá-lo em seus inadiáveis negócios. Diariamente, a imprensa trazia números alarmantes, mas E. J., dotado de conhecimento empírico e autoconfiança agigantada, enxergava as mentiras, as conspirações, e preferia seguir as mensagens do Twitter, seu principal meio de comunicação.

Não há razão para crer na OMS, no Papa ou na Rainha da Inglaterra, dizia. Só podem estar loucos os que insistem em quarentena, que mandam fechar o comércio e ficar em casa os consumidores. Só podem estar loucos os prefeitos e governadores que falam em lockdown e os empresários que obedecem! Absurdo! Exagero! Deus criou as coisas para ser como são. O Brasil funciona por mecanismos próprios. A imprensa é alarmista, dizia E. J., que se orgulhava de farejar mentiras e conspirações a anos-luz de distância.

E. J. achava absurdo continuar pagando salário a seus funcionários durante a pandemia, quando sua hamburgueria estava fechada. Eles são pagos para fritar hambúrgueres, anotar pedidos e limpar mesas. Como não acreditava que o mundo dava voltas — afinal a Terra é plana —, resolveu tomar as próprias medidas: avisou aos funcionários que a lanchonete abriria normalmente a partir da manhã seguinte.

Surpresos, mas temendo a demissão, o gerente, os cozinheiros e os garçons foram todos trabalhar. No fim do expediente, E. J. avisou-os de que não podiam voltar para casa. Tinham de dormir ali mesmo, na despensa. Para evitar questionamentos impertinentes, botou sobre o balcão a .765 que comprara dias antes (depois de anos fazendo arminha com as mãos, ele decidiu ter uma pistola de verdade). Os funcionários do turno da noite chegaram e estranharam a presença dos demais, mas foram postos a par da situação e informados de que também teriam de dormir no emprego. 

Com a maioria da clientela em casa, o movimento era pouco. Então, motivado pela melhor das intenções, E. J. proibiu de abandonar o recito os gatos pingados que lá estavam. E os que entraram a partir de então tiveram de ficar até a situação voltar ao normal. Enquanto isso, todos deveriam consumir sem parar. Mais hambúrguer, mais batata frita e mais refrigerante.

Um velhote que entrara para um lanche rápido com a netinha — e estava confinado havia três dias — tentou insuflar uma rebelião. E. J. sacou seu argumento da cinta e matou o velhote com um tiro na testa. Estarrecido e indignado, pegou ma faca de cozinha, avançou sobre o patrão... E levou um tiro na testa.

Diante do terror geral, E. J. explicou calmamente que ambos já haviam passado dos 60 e que logo iriam comer capim pela raiz na chácara do vigário. E que a hamburgueria não podia parar, como o Brasil não pode parar.

Inspirado no texto de Raphael Montes publicado em Veja 2683.