Na última Copa do Mundo, de tanto tentar cavar faltas, Neymar
Cai-Cai passou mais tempo deitado no gramado do que exibindo em campo a
expertise que o consagrou no esporte bretão. Guardadas as devidas proporções, a
estratégia do craque tem sido emulada por ninguém menos que nosso conspícuo presidente, Jair Messias Bolsonaro.
Quando não cava pênaltis a favor do adversário, o “mito”
cava a própria cova no jogo político, fazendo uma sucessão de gols-contra
jamais vista na história de um país onde faltam máscaras para os profissionais
da saúde e leitos para os doentes, mas abundam políticos
ignóbeis, despreparados e corruptos, bem como descerebrados munidos de título de
eleitor e vocacionados a fazer sempre as piores escolhas. Junte-se a fome à vontade de comer e...
Nunca na história deste país tivemos um estadista na
presidência. Talvez Rui Barbosa ou o Barão do Rio Branco pudessem
ser considerados como tal, mas nenhum deles presidiu o Brasil. Em
contrapartida, populistas vicejaram como ervas daninhas. Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Fernando Collor e Lula são
apenas alguns dos muitos exemplos, além, é claro, do atual inquilino do Palácio
do Planalto — avalizado por quase 48 milhões de votos.
Observação: Bolsonaro foi eleito devido
a uma conjunção de fatores. Entre os mais determinantes, vale citar a
competência do advogado Gustavo Bebianno e do publicitário Marcos
Carvalho na articulação e coordenação da campanha, mas também pesaram, e
muito, a ação do dublê de garçom e esfaqueador Adélio Bispo de Oliveira, e o tradicional brilhantismo do eleitorado tupiniquim. Resumido o leque de postulantes ao bonifrate do
criminoso Lula e seu maior opositor, à parcela pensante da
população restou uma de duas singelas opções: votar em branco, anular o voto ou
simplesmente se abster (como fizeram 42 milhões de eleitores), ou
unir forças com os bolsomínions, não para eleger o capitão, mas para impedir o
retorno do PT. Claro que ninguém imaginava (não àquela altura) a que
ponto chegariam as aleivosias bolsonarianas. Nem a turminha do “quanto pior,
melhor”, que pintava com as cores do Apocalipse
de João uma possível vitória do truculento, racista, misógino,
homofóbico, fascista e desnaturado candidato do PSL. Mas até aí, como
dizia o saudoso João Gilberto, “vaia de bêbado não vale”.
Na sequência sobre a renúncia de Jânio Quadros —
que comecei a publicar em meados de abril, mas não conclui devido à enxurrada
de crises bolsonarianas —, relembrei que o dito cujo pediu o boné com a esperança de ser reconduzido ao cargo por aclamação popular e, empoderado, pintar e
bordar sem interferência do Congresso. Além de mal sucedido, seu
plano megalômano deu azo a uma aventura parlamentarista que durou 15 meses e
pavimentou o caminho para o golpe de 1964 e os subsequentes 21 anos de ditadura militar.
Lembrei também o gradual processo de
abertura política, a rejeição da emenda pró-diretas (Dante de Oliveira), a eleição indireta de Tancredo Neves e a morte inesperada e inoportuna
daquele que levou consigo para o túmulo a esperança de milhões de brasileiros, e deixou-lhes
de herança José Sarney, oligarca da política de cabresto nordestina e
eterno donatário da Capitania do Maranhão. Discorri sobre a desditosa gestão desse
macróbio (hoje com 90 anos e afastado da vida pública, embora ainda influente
na política), que terminou com a inflação batendo às portas dos 2.000% ao ano. Na
sequência, dediquei algumas linhas à eleição solteira de 1989, na qual os
brasileiros voltaram a escolher seu presidente pelo voto direto (o que não
acontecia desde 1960). E aqui abro um parêntese para algumas reflexões:
A eleição de 2018 foi, sob muitos aspectos, semelhante à de
1989. Em ambas houve mais de vinte postulantes à presidência; ambas foram
decidias no segundo turno pelos dois candidatos diametralmente opostos no
espectro político-ideológico; ambas foram vencidas pelo representante da direita, filiados, em ambas as ocasiões, a partidos nanicos e inexpressivos; ambos agitaram a bandeira da moralidade e posaram de inimigos figadais da corrupção e dos corruptos. Mas
ambos eram populistas e farsantes (se me perdoam a redundância), e não demorou
para que suas máscaras caíssem.
O candidato do PT e seus satélites seria derrotado
outras duas vezes antes de finalmente se eleger, mas sua ambição desmedida, seu ego
gigantesco e seu espúrio projeto de se eternizar no poder foram sua perdição. O
impeachment da gerentona de araque, que o imprestável escolheu para manter o trono aquecido
até que ele próprio pudesse voltar a ocupá-lo pontofinalizou 13 anos, quatro meses e
doze dias de roubalheira lulopetista. Mesmo condenado em dois processos, réu em
pelo menos outros oito e inelegível até 2035, o demiurgo de Garanhuns se fez representar por
um patético bonifrate no pleito do 2018. Mas deu no que deu.
Voltando aos
candidatos eleitos, o de 1989 foi denunciado por corrupção e renunciou
horas antes de ser cassado (sua ideia era preservar ao menos os direitos
políticos, mas o Congresso os caçou mesmo assim). O atual... bem, ele ainda é inquilino
dos Palácio do Planalto e todos o conhecemos bem — e vamos conhecendo cada vez melhor, pois dia sim, outro também, surgem novidades nada abonadoras
sobre essa alma perturbada. E assim fecho o parêntese.
No capítulo mais recente da série sobre a renúncia de Jânio, foquei o vice do
impichado em 1992 — Itamar Franco —, que só escapou da liquidação quando
finalmente promoveu o grão duque tucano FHC a ministro da Fazenda e primeiro-ministro
informal, resignando-se a posar de presidente decorativo. Considerando que
certas coisas tendem a se repetir de forma cíclica, Bolsonaro que se
cuide: Rodrigo Maia vem acompanhado atentamente o esvoaçar dos
urubus que rondam o Planalto, atraídos pelo cheiro da putrefação que emana do que não demora a se tornar os restos mortais deste governo.
Infelizmente, faltou-me tempo para tratar dos dois mandatos
de FHC, das gestões de Lula e Dilma, do mandato-tampão (completado
a duras penas) do vampiro do Jaburu e da ascensão (e possível queda iminente) do
mau
militar e parlamentar medíocre que ocupa atualmente o gabinete mais
cobiçado do Palácio do Planalto, cujas ignomínias me impediram de concluir a
sequência inacabada. Mas fá-lo-ei assim que der. Antes de
encerrar, mais algumas linhas e outras tantas considerações.
Enquanto o STF exibe um leque de cartões amarelos a Bolsonaro, o incorrigível, o presidente da Câmara continua sentado sobre trinta e tantos
pedidos de impeachment — a pretexto de o momento não ser oportuno; afinal,
estamos em plena pandemia da Covid-19 e amargando uma crise econômica madrasta. Mas o capitão se aproveita da pusilanimidade dos outros
poderes para tentar agigantar os próprios.
O ministro Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação
do delegado Alexander Ramagem para o comando da PF, o que provocou uma enxurrada de críticas do presidente ao Supremo e ao Congresso em manifestações subversivas
de apoiadores, articuladas sabe Deus por quem. Vale lembrar que ao “desnomear” o
delegado camarada o
próprio Bolsonaro propiciou a perda de objeto da ação que o PDT
apresentou e sobre a qual Moraes decidiu. No final da tarde da última
segunda-feira, porém, sua insolência nomeou e empossou, na surdina e
a toque de caixa, o delegado Rolando de Souza , braço direito de Ramagem.
O coordenador nacional do MBL, Rubens Alberto Gatti Nunes, entrou com ação popular junto à 8ª Vara Federal Cível do Distrito Federal pedindo a suspensão imediata da nomeação. Na ação, Nunes alega que o presidente escolheu “terceiro alinhado a seus interesses escusos, como ficou evidenciado em seu primeiro ato após empossado” — a troca no comando da PF do Rio, área de interesse de Bolsonaro e seus filhos — e classifica a manobra como uma 'patente burla' à decisão do ministro Alexandre de Moraes, que barrou a nomeação de Ramagem, de quem a Folhagem, digo, o delegado Rolando é pessoa de confiança, o que caracteriza intenção evidente de manter a influência do primeiro indicado, cuja nomeação foi anulada.
Nunes pede ainda a suspensão imediata da nomeação de em caráter liminar e no
mérito, além da declaração de nulidade do ato de nomeação do novo diretor-geral
da PF, alegando que o 'perigo
de dano é iminente' sob o argumento de que a nomeação de Rolando coloca
em risco a continuidade de investigações em andamento, especificamente no caso
dos filhos do Presidente da República, além de parlamentares investigados e
mencionados pelo próprio Requerido em mensagem ao Ministro Moro.
Bolsonaro está preocupado com investigações, sobretudo
o inquérito das fake news, que poderia atingir seus filhos e até mesmo
servidores que atuam no chamado gabinete do ódio. Também lhe causam apreensão a investigação de fatos em tese delituosos envolvendo a
organização de atos antidemocráticos e a apuração sobre as rachadinhas no antigo gabinete do filho Zero Um na Alerj.
"Indiscutivelmente a medida em comento (a
nomeação de Rolando) apunhala não apenas os princípios da moralidade
e legalidade, mas a moral de todo brasileiro o qual deposita a confiança e fé
nas instituições públicas e as vê sendo vilipendiadas por interesses familiares
em favor do "Rei", que se porta acima de tudo, acima do bem e do mal
e imune às normas legais vigentes no país", alega o coordenador do MBL. A AGU se manifestou nos autos, pedindo a intimação da
Procuradoria-Regional da União da 1ª Região para que seja apresentada
manifestação prévia sobre o pedido de tutela antecipada.
Após ser empossado, Rolando convidou o
superintendente do Rio, Carlos Henrique Oliveira, para assumir a direção-executiva
da PF, o que o coloca como número dois do novo diretor. A promoção (que foi um "cair para cima", como se diz no jargão político) foi
vista por delegados como uma forma 'estratégica' de trocar o comando da Polícia
Federal fluminense. No pedido enviado a Justiça, Nunes aborda parte
dos desdobramentos do pedido de demissão do ex-ministro Sérgio Moro.
"O problema é que nas conversas com o presidente e
isso ele me disse expressamente, que o problema não é só a troca do
diretor-geral. Haveria intenção de trocar superintendentes, novamente o do Rio,
outros provavelmente viriam em seguida, como o de Pernambuco, sem que fosse me
apresentado uma razão para realizar esses tipos de substituições que fossem
aceitáveis", disse o ex-ministro da Justiça, ao pedir demissão do cargo.
A superintendência no Rio foi pivô da primeira crise entre o Moro e o presidente ainda em 2019. A troca na chefia é um dos pontos
centrais do inquérito sobre as acusações feitas pelo ex-ministro a Bolsonaro.
Na última segunda-feira, como foi mencionado na postagem anterior, Aras solicitou ao decano do STF uma série de diligências no âmbito da investigação,
incluindo a oitiva de delegados envolvidos na crise entre Moro e Bolsonaro
no ano passado. Nos bastidores, Bolsonaro disse que não compraria
mais uma briga com o Supremo depois que o ministro Alexandre viu “desvio
de finalidade” naquela indicação. Volto a frisar que Moraes também investiga as manifestações subversivas organizadas por apoiadores de Bolsonaro e tem sob sua
alçada o inquérito das fake news.
Na prática, uma tempestade perfeita se forma na
direção de Bolsonaro. As nuvens trazem crise política misturada à
turbulência econômica, além de uma grave pandemia de coronavírus no meio do
caminho. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não
faço milagre”, afirmou Bolsonaro no último dia 28, ao responder a
perguntas de repórteres sobre o fato de o Brasil ter ultrapassado a China em
número de mortes pela Covid-19.
Desde que Moro deixou o governo, levantando suspeitas de que o presidente tinha (e pelo visto continua
tendo) interesse em interferir politicamente na PF, tudo parece
levar ao agravamento da sucessão de crises. Agora, o problema não é apenas
“cortar o combustível do Posto Ipiranga”, como disse o ex-ministro da Fazenda Delfim
Netto em entrevista à Coluna Direto da Fonte, de Sonia Racy. O mais grave é que o próprio Bolsonaro,
insuflado pela ala ideológica do governo, joga gasolina na crise. Apesar de desconfiar de tudo e de todos, espalhando até
boatos para aliados, com o intuito de identificar quem “vaza” notícias no
Planalto, o capitão é cego como uma toupeira quando se trata de enxergar
tempestades de grandes proporções no horizonte. Mas sua visão é acurada como a
de um falcão quando se trata de ver conspirações (reais ou imaginárias). “É
muita trovoada para pouca chuva”, resumiu o presidente. Só que não.
Se a troca de Moro
por André Mendonça no Ministério da Justiça foi bem recebida no Supremo,
o mesmo não se deu com a substituição de Valeixo na PF. Bolsonaro já admitiu mais uma vez que sempre cobrou
de Moro relatórios diários de inteligência, sob o argumento de que
precisa de informações para administrar o País. Disse, ainda, que a Abin
lhe repassava esses dados. “Não é justo um presidente viver numa situação
dessas. Eu não quero saber de inquérito de ninguém. Não estou sendo investigado”,
disse ele. Não estava, mas agora está. Na segunda-feira, 27, o ministro Celso de
Mello autorizou abertura do inquérito, e no sábado passado Moro
prestou depoimento durante mais de oito horas, além de fornecer seu celular
para que sejam feitas cópias da troca de mensagem entre ele e o presidente e a deputada Carla Zambelli (para não espichar ainda mais esta
postagem, veja trechos do conteúdo do depoimento do ex-ministro neste
link).
Ao se dirigir a apoiadores que rezavam por ele (?!) na
portaria do Palácio da Alvorada, na noite do último dia 28, Bolsonaro calibrou o discurso de campanha. “Eu sou uma das pessoas que mais apanham.
Dói no coração”, reclamou. Antes de se despedir, pediu que os jornalistas
se apressassem nas perguntas. “Se não a mulher me cobra aí. E eu vou dormir
na casa do cachorro”, afirmou, rindo.
Uma coisa são os pecados e as virtudes do presidente Bolsonaro. Outra, muito diferente e que pode afetar diretamente os
interesses dos cidadãos brasileiros, é o que vai realmente acontecer com sua presidência — algo que pode se resumir, no fundo, a uma pergunta só: ele fica
ou ele sai? A primeira coisa é a mais debatida, claro, com paixão, som e fúria.
Mas presidentes da República, segundo estabelece a lei, não saem do palácio por
causa daquilo que fazem de mal, e nem ficam por causa do que fazem de bem. Saem
ou ficam segundo a decisão específica que o Congresso tomar a esse
respeito. Não vale a pena perder tempo olhando para outro lugar; se você perde
a chave do carro no jardim, não vai encontrar nunca se for procurar no quintal.
É ali, no plenário da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que tudo vai se
resolver.
No mesmo dia em que o Brasil ultrapassou a China em número
de mortos pela Covid-19, a Secretaria de Comunicação da Presidência postou
mensagem sobre “números amplamente positivos” do combate à doença no Placar
da Vida. Com um solavanco atrás do outro na República, ninguém se arrisca a
prever as cenas do próximo capítulo.
Bolsonaro não será julgado pelo que dizem os
analistas políticos, a sociedade civil ou o Tribunal Internacional
de Haia; será julgado por 513 deputados e 81 senadores, no Congresso
Nacional.