quarta-feira, 10 de junho de 2020

A ENTREVISTA DE MORO E A MAQUIAGEM NOS NÚMEROS DA COVID-19



Em entrevista à FOLHA — cuja leitura eu recomendo —, Sergio Moro equiparou a obstinação do PT (em não fazer o devido mea-culpa) ao discurso negacionista de Bolsonaro (sobre a pandemia do Coronavírus). Moro falou também em “arroubos autoritários”, mas disse que não vê nas Forças Armadas qualquer ameaça de golpe. Ao ler isso, enviei prontamente ao ex-ministro, através de sua conta no Twitter, a indicação de um excelente oftalmologista.

Há tempos que Bolsonaro estimula protestos favoráveis a seu governo. Durante sete domingos consecutivos — oito se considerarmos o final de semana passado — houve um festival de faixas e cartazes com mensagens contra a democracia, o Congresso e o Supremo, além de pedidos de intervenção militar. Em diversas ocasiões o próprio presidente, por vezes com um ou mais ministros a tiracolo, levou seus miquinhos amestrados ao delírio com pronunciamentos demonstrando que, se não apoiava expressamente os subversivos, muito menos os condenava. De dois domingos para cá, porém, o vento mudou e as manifestações passaram a ser contrárias ao governo. E não sem razão.

Há ano e meio que nos salta aos olhos a acachapante incompatibilidade de Bolsonaro com o cargo para o qual foi eleito. Tanto por palavras quanto por atos, omissões e, principalmente, por frituras e demissões — em meio à maior pandemia sanitária dos últimos cem anos, o presidente “demitiu a luz do ministério da Saúde” (dois ministros abandonaram o posto em menos um mês), o que lhe garantiu o epíteto mais que merecido de pior dos líderes globais no combate à Covid-19.

A Saúde está acéfala há quase um mês, sob a interinidade de um general que chamou para a festinha dúzias de colegas de farda, suspendeu as coletivas de imprensa, mudou o horário dos boletins com atualizações sobre avanço do coronavírus e — a cereja do bolo — passou a maquiar índices e sonegar informações (prática comum em ditaduras; basta lembrar como os militares trataram os índices de inflação e o avanço galopante de uma epidemia de meningite nos anos 1970).

Não é de hoje que o capitão das trevas põe em dúvida o número de mortos e acusa governadores desafetos de inflar estatísticas para criar uma crise e prejudicar o governo. Daí porque afastou dois titulares da Saúde e nomeou um lambe-botas disposto a colaborar para transformar sua teoria da conspiração em política de governo.

Ao maquiar os dados, o presidente e seus serviçais atentam contra as regras básicas de transparência da administração pública. Como bem advertiu ministro Gilmar Mendes, “a manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários” e que é preciso “parar de brincar de ditadura” no Brasil. O presidente da Corte, Dias Toffoli, afirmou nesta segunda-feira que ”não é mais possível admitir atitudes dúbias por parte do presidente”, pois elas impressionam e assustam a sociedade brasileira e a comunidade internacional.

OBSERVAÇÃODesde que foi acomodado no ministério da Saúde e incumbido de guarnecê-lo com colegas de farda antes que Nelson Teich assumisse o comando da Pasta, o general Pazuello nunca falou tanto quanto nesta terça-feria. Pela manhã, ele explicou seu novo critério de contagem de óbitos da Covid-19 numa reunião ministerial no Palácio do Planalto (mais civilizada do que o bate-boca de bordel de 22 de abril). À tarde, gastou seu latim perante a Comissão Externa da Câmara Federal. "Não acho que Estados e municípios mandem dados errados, são os que eles têm. Mas, na minha avaliação, não eram fidedignos", disse o ministro interino, que nega qualquer intenção de manipular dados (segundo ele, a mudança visa destacar a data em que ocorreu o óbito do paciente). Essa fórmula faz sentido, mas precisaria ter sido adotada desde o início. Mudar as regras do jogo em meio à partida cheira a interesses escusos e inconfessáveis, mas deixa claro como o sol do meio dia que o tri-estrelado foi ungido “ministro interino” com a missão de cumprir sem discutir as ordens de seu trevoso chefe (que, por sinal, está feliz da vida com o subordinado, a quem trata por Dr. Pazuello).    

O general deveria ter pedido demissão ao receber a ordem de esconder os números. Ao permanecer no cargo e cumprir a absurda determinação, não apenas colaborou para desmoralizar ainda mais o Ministério da Saúde, como conspurcou a imagem das Forças Armadas. Um governo que vive de enganar os cidadãos e de criminalizar a oposição não é democrático e deve ser denunciado com o maior vigor, mesmo diante das limitações sanitárias impostas pela pandemia. A coragem moral que falta a alguns no governo sobra entre os brasileiros de bem.

Este segundo domingo de protestos deixou claro que a movimentação já incomoda o governo. A imagem de opositores nas ruas — que tanto o presidente quanto o vice classifica de "terroristas" e "arruaceiros" — fez com que alguma coisa subisse à cabeça do capitão.

Alegando que o Supremo o proibiu de agir contra o vírus, Bolsonaro aproveita o tempo livre para eleger suas próprias prioridades. Avalia que o "grande problema do momento" é o fato de que seus adversários "estão começando a colocar as mangas de fora." Tomado pelas palavras, oscila entre a mentira e o autoritarismo.

Bolsonaro mente quando diz que o Supremo lhe atou as mãos, quando na verdade o que os ministros fizeram foi reconhecer que as três esferas da federação — municípios, estados e também a União — têm poderes para adotar medidas relacionadas à saúde. E o capitão sabe disso: no mês passado, quando atravessou a Praça dos Três Poderes com uma caravana de empresários para despejar a crise no colo do presidente da Corte, foi estimulado por ele a coordenar o gerenciamento da crise sanitária a partir de Brasília.

Bolsonaro flerta com o autoritarismo quando se queixa das mangas de fora dos adversários depois de prestigiar por semanas a fio seguidas manifestações de rua dos seus devotos. Em sua visão peculiar, a democracia começa quando a rua o chama de "mito" e termina quando o asfalto o critica.

Quando mais não seja, os protestos serviram para mostrar aos bolsomínions que eles não estão sozinhos, e a Bolsonaro, que ele não é o dono da rua. Se continuar terceirizando responsabilidades em vez de enfrentar os problemas, o capitão caverna logo perceberá que a democracia é um regime em que as pessoas têm ampla e irrestrita liberdade para exercitar a sua capacidade de fazer besteiras por conta própria.

Em 2022, a maioria do eleitorado talvez prefira cometer uma besteira diferente.

Com Josias de Souza.