quinta-feira, 11 de junho de 2020

OS CADÁVERES DO CAPITÃO



Sempre que um dado oficial traz alguma verdade incômoda, Bolsonaro entra em campo para demonstrar que, sob sua batuta, a única coisa que as estatísticas provam é que elas não provam nada.

Em abril do ano passado, o presidente questionou a metodologia adotada pelo IBGE para medir a taxa de desemprego; no final de julho, os dados do INPE sobre o desmatamento e acusou o cientista Ricardo Galvão de estar "a serviço de alguma ONG”; agora, com a Saúde sob a interinidade do general Eduardo Pazuello, resolve brincar de esconde-esconde com os cadáveres produzidos pela Covid-19.

O problema é que nada está tão evidente quanto a pilha de quase 40 mil corpos do coronavírus. Mesmo assim, o capitão solidifica sua imagem de cultor do Terraplanismo estatístico sem se dar conta de que a realidade se impõe, e que, se há algum consenso no Brasil, é o de que o número de mortos está subestimado, até porque o país realiza poucos testes.

Em vez de bater continência para a ordem de ajeitar as estatísticas, o general Pazuello deveria ter apresentado ao presidente uma dúvida de Garrincha: "O senhor combinou tudo isso com os russos?" Até agora, seu chefe não conseguiu fazer com que "os russos" se comportassem como antevia o técnico Vicente Feola — talvez por não levar em conta que, como numa partida de futebol, na crise sanitária a coisa se complica pela presença em campo do time adversário, que é invisível, avança em todas as frentes e ganha de goleada.

O pior que um governante pode fazer em relação à verdade é virar-lhe as costas. Bolsonaro faz isso desde o início da pandemia, e transforma seu negacionismo num processo de desmoralização internacional do Brasil.

Ao ordenar que o Ministério da Saúde conte a verdade sobre os mortos do coronavírus, o ministro Alexandre de Moraes liberou o presidente para cometer seu próximo erro na crise sanitária. É como se a sequência de erros tivesse surtido o efeito de uma vacina às avessas. Cada dose de equívoco reforçou os anticorpos que tornaram o governo imune ao acerto. A desfaçatez e a insensibilidade encontraram o equilíbrio nas veias do chefe do Executivo Federal.

Há algo de sádico no comportamento de Bolsonaro. No início de abril, quando o Datafolha revelou que 76% dos brasileiros aprovavam a maneira como Henrique Mandetta lidava com a pandemia — e que entre os eleitores bolsonaristas a aprovação explodia para notáveis 82% —, bastava ao capitão encostar sua imagem no gestor da pasta, jactar-se da qualidade de sua equipe e credenciá-la para realizar uma coordenação da crise desde Brasília. Mesmo que não resultasse em nada, ao menos revelaria a presença no Planalto de um presidente disposto a presidir a crise.

Bolsonaro preferiu ser presidido pela pandemia. Permitiu que o vírus influenciasse o rumo do seu governo. E com a pasta da Saúde transformada em unidade militar com um par de puxadinhos do centrão, deixou-se infectar pelo germe oportunista da ocultação. Quis maquiar a pilha de cadáveres, mas não colou.

Daqui a algumas décadas, quando a posteridade puder falar sobre esse período da história sem usar máscara, surpreenderá os brasileiros do futuro o relato fantástico de uma história de amor: a trajetória do vírus que tatuou centenas de milhares de corpos na biografia de um presidente que se apaixonou pelo erro e foi plenamente correspondido.

Com Josias de Souza.