Sempre que um dado oficial traz alguma verdade incômoda, Bolsonaro
entra em campo para demonstrar que, sob sua batuta, a única coisa que as
estatísticas provam é que elas não provam nada.
Em abril do ano passado, o presidente questionou a
metodologia adotada pelo IBGE para medir a taxa de desemprego; no final
de julho, os dados do INPE sobre o desmatamento e acusou o cientista Ricardo
Galvão de estar "a serviço de alguma ONG”; agora, com a
Saúde sob a interinidade do general Eduardo Pazuello, resolve brincar de esconde-esconde com os cadáveres produzidos pela
Covid-19.
O problema é que nada está tão evidente quanto a pilha de
quase 40 mil corpos do coronavírus. Mesmo assim, o capitão solidifica sua
imagem de cultor do Terraplanismo estatístico sem se dar conta de que a
realidade se impõe, e que, se há algum consenso no Brasil, é o de que o número
de mortos está subestimado, até porque o país realiza poucos testes.
Em vez de bater continência para a ordem de ajeitar as
estatísticas, o general Pazuello deveria ter apresentado ao presidente
uma dúvida de Garrincha: "O senhor combinou tudo isso com os
russos?" Até agora, seu chefe não conseguiu fazer com que "os
russos" se comportassem como antevia o técnico Vicente Feola —
talvez por não levar em conta que, como numa partida de futebol, na crise
sanitária a coisa se complica pela presença em campo do time adversário, que é
invisível, avança em todas as frentes e ganha de goleada.
O pior que um governante pode fazer em relação à verdade é
virar-lhe as costas. Bolsonaro faz isso desde o início da pandemia, e
transforma seu negacionismo num processo de desmoralização internacional do
Brasil.
Ao ordenar que o Ministério da Saúde conte a verdade sobre
os mortos do coronavírus, o ministro Alexandre de Moraes liberou o presidente
para cometer seu próximo erro na crise sanitária. É como se a sequência de
erros tivesse surtido o efeito de uma vacina às avessas. Cada dose de equívoco
reforçou os anticorpos que tornaram o governo imune ao acerto. A desfaçatez e a
insensibilidade encontraram o equilíbrio nas veias do chefe do Executivo
Federal.
Há algo de sádico no comportamento de Bolsonaro. No
início de abril, quando o Datafolha revelou que 76% dos brasileiros
aprovavam a maneira como Henrique Mandetta lidava com a pandemia — e que
entre os eleitores bolsonaristas a aprovação explodia para notáveis 82% —,
bastava ao capitão encostar sua imagem no gestor da pasta, jactar-se da
qualidade de sua equipe e credenciá-la para realizar uma coordenação da crise
desde Brasília. Mesmo que não resultasse em nada, ao menos revelaria a presença
no Planalto de um presidente disposto a presidir a crise.
Bolsonaro
preferiu ser presidido pela pandemia. Permitiu que o vírus influenciasse o rumo
do seu governo. E com a pasta da Saúde transformada em unidade militar com um
par de puxadinhos do centrão, deixou-se infectar pelo germe oportunista da
ocultação. Quis maquiar a pilha de cadáveres, mas não colou.
Daqui a algumas décadas, quando a posteridade puder falar
sobre esse período da história sem usar máscara, surpreenderá os brasileiros do
futuro o relato fantástico de uma história de amor: a trajetória do vírus que
tatuou centenas de milhares de corpos na biografia de um presidente que se
apaixonou pelo erro e foi plenamente correspondido.
Com Josias de Souza.