segunda-feira, 15 de junho de 2020

O ARTIGO 142 DA CONSTITUIÇÃO E O SEXO DOS ANJOS



No Brasil da pandemia, desvia-se dinheiro público como nunca antes na história deste país, e perde-se tempo preciso discutindo o sexo dos anjos. Ou dos demônios: Imaginava-se que a Operação Covidão — assim apelidada pelo mesmo Roberto Jefferson que cunhou o termo Mensalão — só seria deflagrada no pós-pandemia, quando as escandalosas roubalheiras viriam à tona. Mas já houve ações no Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Ceará, Pará, Rondônia, Acre e outros Estados. E vem mais por aí!

Baseados numa tese esdrúxula defendida pelo jurista Ives Gandra Martins — cuja filha, Ângela Gandra, é secretária nacional de Família no ministério comandado por Damares Alves —, os bolsonaristas invocam o artigo 142 da Constituição para dizer que “as Forças Armadas podem cumprir o papel de ‘poder moderador’ para ‘repor a ordem’.

A argumentação é rebatida pela grande maioria dos juristas, ministros do STF e até militares de alta patente. A VEJA, o general e ex-ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, classificou a ideia como completamente equivocada.Essa interpretação acaba gerando derivações de interpretações que variam com as características de quem interpreta e também com os interesses e conveniências. O Brasil tem um presidente eleito, um Congresso eleito, um Judiciário constituído. Se não funcionam da melhor maneira, se possuem diferentes opiniões, se precisam discutir atribuições e limites, isso não impede o funcionamento. Os Poderes que se aperfeiçoem e que se harmonizem. As Forças Armadas não têm nada a ver com isso”.

Nos autos de uma ação que pediu ao Supremo que regulamentasse a aplicação do tal artigo e esclarecesse de uma vez por todas como ocorreria a convocação das Forças Armadas por um dos três Poderes em caso de risco à democracia, o ministro Luís Roberto Barroso disse na última quarta-feira que não há o que ser esclarecido: "É simplesmente absurda a crença de que a Constituição legitima o descumprimento de decisões judiciais por determinação das Forças Armadas. Significa ignorar valores e princípios básicos da teoria constitucional. Algo assim como um Terraplanismo constitucional".

O magistrado sustentou que só existiu poder moderador na experiência constitucional brasileira na Constituição de 1824, e que este era exercido pelo Imperador, que desfrutava de um poder hegemônico. "Portanto, a menos que se pretenda postular uma interpretação retrospectiva da Constituição de 1988 à luz da Constituição do Império, retroceder mais de 200 anos na história nacional e rejeitar a transição democrática, não há que se falar em poder moderador das Forças Armadas", afirmou o magistrado. E na ementa de sua decisão, anotou: "Interpretações que liguem as Forças Armadas à quebra da institucionalidade, à interferência política e ao golpismo chegam a ser ofensivas".

Já o ministro Luiz Fux — que assumirá a presidência do Supremo em setembro — decidiu em caráter liminar, na última sexta-feira, que não há margem na Constituição para qualquer interpretação que leve as Forças Armadas a indevidas intromissões no funcionamento dos poderes da República, bem como qualquer tese de submissão do Legislativo e Judiciário ao Executivo. “A missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”, escreveu o ministro em ação ajuizada pelo PDT no STF.

Em sua decisão, o ministro definiu que o poder do Presidente da República de autorizar o emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou por pedido dos presidentes do STF, Senado e Câmara Federalnão pode ser exercido contra os próprios Poderes e instituições em si”. E frisou que a interpretação não reduz nem amplia os poderes constitucionais do presidente, que tem poder limitado.

Não há, portanto, caminho constitucional para interpretação intervencionista do artigo em tela. Ou não deveria haver. Segundo Merval Pereira, sempre é possível um golpe militar, até porque, pela primeira vez em mais de 3 décadas de democracia, há — graças a Jair Messias Bolsonaro — uma indesejável e indesejada mistura de militares com o governo que o presidente usa como ameaça. “As Forças Armadas estão do meu lado”, diz o capitão, embora os militares que estão no governo aleguem que “não há ministro militar, há ministros que vêm da área militar, como outros são políticos, ou engenheiros, ou advogados”. Mas para isso seria preciso que todos fossem da reserva e que nunca mais vestissem a farda, mesmo metaforicamente, sobretudo para ameaçar as instituições. Mas não é o que vem acontecendo.

Em entrevista a edição de VEJA desta semana, o ministro da Secretaria de Governo, general da ativa Luiz Eduardo Ramos, afirmou que é “ofensivo e ultrajante” declarar que as Forças Armadas “vão dar um golpe e quebrar o regime democrático”, mas ressalvou que “o outro lado tem que entender também o seguinte: não estica a corda”. E também se recusou a comentar o que considera “implausível”: o TSE cassar a chapa presidencial.

O relator dos processos do TSE, ministro Og Fernandes, aceitou na última sexta-feira que o STF envie as provas já coletadas no inquérito das fake news, presidido pelo ministro Alexandre de Moraes. O general Augusto Heleno, ministro do GSI, arvorou-se o direito de advertir que, se o celular do presidente Bolsonaro fosse apreendido pela PF, poderia haver “consequências imprevisíveis”. E, quando decano Celso de Mello convocou os três ministros militares do Planalto para depor, o aviso veio com um procedimento formal, que todo cidadão recebe da mesma maneira: “se não comparecerem na data marcada, vão ‘debaixo de vara’”.

Um jargão próprio da Justiça que em nada rebaixa os convocados. Mas os estrelados ficaram irritadíssimos.