sexta-feira, 31 de julho de 2020

A CULPA É DO CABRAL — FINAL


Sem Sergio Moro na Esplanada dos Ministérios, forçado a engolir o discurso em que condenava o toma-lá-dá-cá e vendo-se sem alternativa senão vender a alma ao Centrão para salvar o próprio rabo, Bolsonaro alinhou-se a parlamentares com culpa no cartório e magistrados garantistas de ocasião em prol da ressurreição da pouca vergonha que vigeu até 2014, quando político corrupto não era incomodado pela Justiça.

Alvo de investigações (a exemplo de seus três filhos com mandatos eletivos), o Messias que não faz milagres arquivou sob a letra "L" de lixo a cruzada contra a corrupção, juntamente com outras promessas feitas pelo candidato Bolsonaro que o presidente Bolsonaro resolveu não cumprir. Interessa-lhe mais é escudar-se de um possível (ainda que improvável) impeachment ou de uma (igualmente incerta, mas não descartada) denúncia no STF, donde a importância de cooptar os líderes do Centrão e manter o PGR motivado, usando como a cenoura que faz andar o muar a indicação do chefe do Ministério Público para a vaga de Celso de Mello no Supremo (mais uma promessa que só o tempo dirá se será cumprida).

Alguém deveria alertar o mandatário de que base programática não é base pragmática, articulação não é artimanha, coalizão não é conchavo, negociação não é negociata e, por último, mas não menos importante, promessa feita durante a campanha e não cumprida ao longo do mandato é estelionato eleitoral.

Quanto ao pedido de Caminha ao rei D. Manuel (assunto mencionado de passagem no post anterior), o exemplo do escriba e seu genro condenado vem à tona para comprovar que a corrupção, travestida de nepotismo, aportou na costa tupiniquim em abril de 1500. A semente da praga, jogada na terra onde em se plantando tudo dá, estaria no final da carta:

E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E se a um pouco me alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez proceder assim pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, o que Dela receberei em muita mercê.”

Segundo os historiadores, o escriba estava preocupado com sua filha única, Isabel de Caminha, cujo marido, um certo Jorge de Osório, preso por roubo, fora degredado para a ilha de São Tomé, na África.

Observação: À época, vigiam em Portugal as Ordenações Afonsinas, de 1446, que haviam separado o direito canônico do direito temporal. Os delitos sujeitos ao degredo variavam da sedução de moça virgem ou viúva honesta até a adulteração de moeda. Roubo, lesões corporais, má-fé em transações comerciais também podiam levar o acusado a uma estadia forçada no ultramar (dependendo da gravidade do crime, o degredo era perpétuo ou por prazo determinado). Só a condenação às galés ou a pena capital eram penas mais pesadas que o banimento para a África e, mais tarde, para o Brasil, já sob as Ordenações Manuelinas (1521) e Ordenações Filipinas (1603).

Não se conhece a duração do castigo imposto a Jorge de Osório, nem quanto tempo cumpriu na ilha de São Tomé, ou mesmo se D. Manuel atendeu o pedido de Caminha (uma vez transitada em julgado, a sentença só podia ser comutada pelo monarca, que tinha poderes previstos em lei para conceder indulto aos apenados). Supondo que sim, o rei não precisou recorrer aos atos secretos atualmente em voga, já que as normas vigentes o autorizavam a fazê-lo abertamente. Bons tempos, aqueles.

O economista Rubem Novaes, que se demitiu da presidência do Banco do Brasil dias atrás, resume com a seguinte frase o ambiente político de Brasília: “Muita gente com rabo preso trocando proteção”. Segundo ele, a regra é "criar dificuldades para vender facilidades", e privilégios e compadrios campeiam soltos. 

O economista cita o presidente do PTB, Roberto Jefferson, como sendo hoje “o melhor cronista dos bastidores planaltinos”, e lembra que “não há nada mais permanente que um programa temporário de governo”. “Não podemos deixar que o esforço fiscal atual contamine o futuro; se o mercado perde a confiança na higidez das contas públicas, estamos fritos”, conclui.

Pois é.