sábado, 22 de agosto de 2020

MÃO DE DEUS NO JULGAMENTO DO CARAMUNHÃO

Em janeiro deste ano, o ministro Celso de Mello passou por uma cirurgia no quadril. Em março, foi internado com quadro de erisipela. Depois do retorno, trabalhou inclusive nas férias de julho. No início deste mês, passou por exames clínicos para saber se terá de se submeter a nova cirurgia, e tornou a se licenciar no último dia 19. Seja qual for o motivo do afastamento, o magistrado pode não reassumir o posto, já que completa 75 anos em 1º de novembro próximo (idade em que a aposentadoria é compulsória para os ministros das cortes superiores).

O ausência decano pode interferir no julgamento de casos emblemáticos, como o da suspeição de Sérgio Moro (ação movida pela defesa do criminoso de Garanhuns por suposta parcialidade no julgamento do caso do tríplex no Guarujá), bem como colocar Gilmar Mendes numa situação semelhante à de Diego Maradona nas quartas de final da Copa de 1986. Para quem são se lembra, aos seis minutos do segundo tempo o baixinho marcou com a mão o primeiro dos dois gols que garantiram à Argentina a vitória sobre a Inglaterra — e que ficou conhecido como a “Mão de Deus”. O segundo gol não vem ao caso.

Se realmente se aproveitar ausência do colega para levar a julgamento o pedido de suspeição de Moro, Gilmar marcará um gol contra a Lava-Jato. Mas será um gol de mão. O habeas corpus no qual a defesa de Lula aponta a suspeição do ex-juiz e requer a consequente anulação dos atos de seus atos em duas ações penais foi impetrado em novembro de 2018, e começou a ser julgado pela 2ª Turma em dezembro daquele ano. 

Na ocasião, os ministros Fachin e Cármen Lúcia votaram pelo não conhecimento do HC, e como os votos de Gilmar e Lewandowski  eram favas contadas, caberia ao decano bater o pênalti decisivo. Assim, o ministro a quem José Nêumanne se refere como Maritaca de Diamantino pediu vista do processo e disse que se esforçaria para devolvê-lo ainda naquele ano. Mas já se passaram quase dois anos.

Mendes chegou a liberar os autos para a pauta em junho do ano passado, depois que o Intercept de Verdevaldo publicou transcrições de mensagens comprometedoras, supostamente trocadas entre o ex-juiz Sérgio Moro e o coordenador da Lava-Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol — material que, nunca é demais lembrar, foi obtido criminosamente por uma quadrilha que invadiu cerca de 1000 celulares de autoridades

O STF voltou a discutir o caso depois de um pedido feito pelo advogado de Lula diretamente na tribuna. Mendes propôs manter o adiamento do julgamento de mérito do HC e conceder, liminarmente, liberdade para o paciente até decisão final. A proposta foi acompanhada apenas por Lewandowski e acabou derrotada, e o picareta dos picaretas continuou preso até novembro do passado, quando foi posto na rua graças a uma vergonhosa decisão do plenário do STF (por apertada maioria 6 votos a 5), que ressuscitou a imoralidade que vigeu durante míseros 7 anos ao longo das últimas 8 décadas, mas fez a felicidade dos corruptores e corruptos de ocasião.

ObservaçãoEntre 1941 e 1973, a regra era a prisão após a condenação em primeira instância. Sob a ditadura militar, alterou-se o CPP para favorecer o chefão do DOPS, delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, e a partir de então réus primários e com bons antecedentes passaram a ter o direito de responder ao processo em liberdade até a decisão da segunda instância. Em 2009, como consequência tardia da nossa fantasiosa “Constituição Cidadã”, os condenados passaram a ser presos somente após o trânsito em julgado da sentença — isto é, depois de se esgotarem todos os recursos possíveis e imagináveis nas quatro instâncias do Judiciário, o que equivale a dizer “no dia de S. Nunca” —, até que, em 2016, o STF restabeleceu a prisão após a condenação em segunda instância. Tudo somado e subtraído, nas últimas oito décadas menos o período de 2009 a 2016, os criminosos eram presos após a condenação na primeira ou na segunda instância, como acontece na maioria das democracias do Planeta. A exigência do trânsito em julgado vigeu por míseros 7 anos, mas favoreceu um sem-número de corruptos (e uma penca de criminalistas estrelados, que cobram honorários milionários para “empurrar com a barriga” a prisão de seus clientes até a prescrição da pretensão punitiva do Estado ou a morte da galinha dos ovos de ouro, o que ocorrer primeiro). A despeito do que alegam os pseudogarantistas, a presunção de inocência e a garantia da liberdade e proibição da prisão arbitrária são coisas distintas, conforme nós já discutimos em diversas oportunidades aqui no Blog.

Se o processo for levado à bancada sem a presença a de Celso de Mello, a disputa que opõe Lula e Moro ganhará a aparência de jogo jogado. O placar será de 2 a 2 e, em caso de empate, o réu leva a melhor. Isso significa dizer que a sentença do caso do tríplex, já confirmada em três instâncias, seria revogada, e que Lula, que já se livrou da cadeia, ficaria mais próximo do objetivo de lavar a sua ficha suja, habilitando-se para a sucessão presidencial de 2022.

Esse é um jogo sério demais para ser decidido com um gol de mão. Depois de ter empurrado a encrenca com a barriga por tanto tempo, não parece razoável que Gilmar Mendes dê uma de Maradona a essa altura do campeonato. Mas quem disse que Gilmar é razoável?