segunda-feira, 7 de setembro de 2020

VERGONHOSO É POUCO...

A investigação contra o primogênito do general da banda chegou ao fim e a tendência é de ele seja denunciado pelo MP-RJ

Segundo os investigadores, o hoje senador, quando era deputado estadual, comandava um esquema de “rachadinhas” operado por seu chefe de gabinete na Alerj, cujas “movimentações financeiras atípicas”, identificadas pelo Coaf em 2018, deram início a uma cadeia (sem trocadilho) de eventos que, entre outras consequências, levaram o atual inquilino do Palácio do Planalto a despir sua reluzente armadura de cruzado contra a corrupção. 

Ao slogan “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” é preciso juntar os dizeres “e a família do Presidente em primeiro lugar”, ou esse mote chauvinista e demagogo não vale sequer o papel em que foi escrito.

Fabrício Queiroz — esse é o nome do abantesma que tomou chá de sumiço quando viu que a situação estava malparada e que o chefinho ia tirar (como realmente tirou) o cu da reta — jamais se dignou a atender aos convites do Ministério Público para um bate-papo esclarecedor. Em julho, porém, o fantasminha camarada foi encontrado e prezo em Atibaia, num simulacro de escritório do dublê de mafioso de comédia, consultor jurídico da Famiglia Bolsonaro e fiel escudeiro do ex-deputado no caso das rachadinhas. 

Tal qual seu ex-cliente e respectivo ex-assessor, o conspícuo causídico está enrolado que nem fumo de corda e sujo feito papel higiênico servido. Aliás, recomenda-se a quem for a Brasília levar máscara contra gás, caso vá se aventurar pela Praça dos Três Poderes e adjacências.

Voltando ao impoluto senador, o relatório final está com o subprocurador-geral de Justiça de Assuntos Criminais e Direitos Humanos, Ricardo Martins. O mais provável é que ele ofereça a denúncia apenas após o STF decidir qual é o foro adequado para a tramitação do caso. Se depender da ala garantista da Corte (alguns falam em “banda-podre”, mas eu acho essa expressão um tanto rude), provavelmente será decidido que competência e de um juizado qualquer do planeta Marte, e que será expedida uma carta rogatória... Enfim, deixa pra lá, que hoje é domingo e eu não estou a fim de me aborrecer com toda essa pouca-vergonha. 

Fato é que tanto o ex-deputado quanto seu então assessor negam todas as acusações. Para o primeiro, a investigação é completamente ilegal, mera perseguição política. Parece até ele fez um curso intensivo de desfaçatez com certo molusco que ainda se arroga o direito de falar merda sempre que segmentos mais abjetos da imprensa lhe dão essa oportunidade. Já o segundo passou uns dias em cana, mas foi despachado para casa, onde cumpre prisão domiciliar graças ao grande coração do desembargador João Otávio Noronha, a quem o morubixaba do Planalto se refere como “um caso de amor à primeira vista”. Vai vendo...

Falando em desfaçatez, o passador de pano geral da República implantou em São Paulo uma franquia culinária. Segundo Josias de Souza publicou em sua coluna, Aras queria fritar o núcleo bandeirante da Lava-Jato sem tocá-lo, e assim incumbiu da tarefa a procuradora Viviane de Oliveira Martines, instalada há seis meses na chefia do 5.º Ofício Criminal da Procuradoria na capital paulista. Na última quarta-feira, já bem tostados, os sete membros da força-tarefa arrastaram Aras para dentro da frigideira, apresentando-lhe uma renúncia coletiva.

O PGR obteve o que desejava. Um dia depois de degustar o desembarque de Deltan Dallagnol da coordenação da Lava-Jato de Curitiba, viu-se diante da perspectiva de limpar a cozinha de São Paulo. Mas ficou com a marca do óleo quente na bochecha. Às vésperas da aposentadoria de Celso de Mello, dono de uma cobiçada poltrona no Supremo, consolida-se o esbirro do Presidente no papel para o qual foi escalado: Abafador-Geral da República.

Por uma trapaça do destino, o processo de combustão da Lava-Jato intensifica-se no momento em que chega às manchetes uma mensagem inédita enviada por Bolsonaro para o celular de Sergio Moro. Nela, irritado com uma notícia de jornal, o presidente mostra a porta de saída ao então ministro da Justiça: "...Tenha dignidade para se demitir." O recado é de 12 de abril. A ficha de Moro demorou uma dúzia de dias para cair. Demitiu-se apenas em 24 de abril.

Em dezembro de 2018, dias antes de assumir a pasta da Justiça, o ex-juiz da Lava-Jato disse ter aceitado o convite do presidente-eleito porque estava "cansado de levar bolas nas costas" na 13.ª Vara Federal do Paraná. Demorou 16 meses para se dar conta de que o lançamento de bolas nas costas tornou-se o esporte preferido do Messias que não miracula. A indicação de Aras para o comando da Procuradoria compôs essa rotina.

Dizia-se que Bolsonaro não ousaria escolher o sucessor de Raquel Dodge sem consultar Moro. Escolheu. Afirmava-se que jamais indicaria um nome que não tivesse a simpatia pela Lava-Jato. Indicou. A escolha produziu um fenômeno usual na política: a junção dos interesses de sujos e mal lavados. Aras aproximou Bolsonaro de Renan Calheiros. Uniu-os a simpatia pela ideia de impor freios ao ímpeto investigativo inaugurado pela Lava-Jato em 2014.

A harmonização de propósitos foi exposta na frente das crianças durante a sabatina que precedeu a aprovação do nome de Aras no plenário do Senado. Renan não conseguiu conter o entusiasmo. "Sou oposição, integro esse campo com muita satisfação. Sou um crítico do governo, mas tenho isenção suficiente para reconhecer que, de todos os atos do presidente Jair Bolsonaro, talvez o mais acertado e significativo seja o da indicação do doutor Augusto Aras para exercer esse honroso posto de chefe da Procuradoria-Geral da República." Freguês de caderneta da Lava-Jato, o cangaceiro das Alagoas passou a conviver no Senado com Flávio Bolsonaro, investigado por suspeita de peculato e lavagem de dinheiro.

Interessa ao campeão do arcaísmo e ao primogênito de um hipotético modernizador da política aplicar um sedativo no aparato fiscalizatório do Estado. Aras mostrou-se à altura do desafio. Durante a sabatina, referiu-se à Lava-Jato como um "marco importante" no combate à corrupção. Mas avisou que os métodos da força-tarefa de Curitiba seriam aperfeiçoados. Numa resposta em que comentou os excessos atribuídos a Deltan Dallagnol, disse ter faltado "cabelos brancos" ao grupo de jovens procuradores que ele coordenou em Curitiba. Defendeu a restauração do "princípio da impessoalidade".

Dentro de um mês, a chefia de Aras na Procuradoria completará um ano. Foi um período de alta produtividade. Além de desossar a Lava-Jato, o PGR e sua equipe ajudaram a levantar o tapete de Wilson Witzel, cavando o afastamento judicial do desafeto dos Bolsonaro do governo do Rio.

Às voltas com um estado em ruínas, o governador interino Rio, Cláudio Castro reuniu-se na última quinta-feira com Paulo Guedes para tratar da renovação de acordo de rolagem da dívida fluminense. Abre-se a perspectiva de que o Planalto influencie na escolha do novo chefe do MP-RJ, o órgão que tritura o Zero Um.

Para quem tramava apenas uma intervenção na PF do Rio de Janeiro, Bolsonaro já foi longe demais.