sexta-feira, 25 de setembro de 2020

MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM TEM JUÍZO — PARTE 3

Na definição do ex-ministro Sepúlveda Pertence, o Supremo Tribunal Federal é um colegiado formado por 11 ilhas. Ou “um arquipélago formado por 11 ilhas”, como emendou o jurista mais adiante. Mas a emenda ficou pior que o soneto. Melhor seria tê-lo comparado a “11 ilhas incomunicáveis”, ou a 11 nações soberanas que vivem em pé de guerra, negociando, isoladamente, alianças diplomáticas, adotando programas de governo e estabelecendo uma política interna própria. 

Os membros de nossa mais alta corte de Justiça não são amigos, não se frequentam nem conversam sobre julgamentos. Em maior ou menor medida, cada qual busca formar alianças e manejar o regimento de modo a escolher os pares que julgarão os processos. Alguns sequer se cumprimentam; outros se recusam a compartilhar o elevador com determinados pares. 

O que se espera de um colegiado são decisões colegiadas, mas o que mais se vê no dia a dia do STF é uma enxurrada de decisões monocráticas. Enquanto um ministro determina liminarmente a soltura de parlamentares da agremiação político-criminosa ao qual o associam, outro, também isoladamente, decide se o Congresso pode ou não votar determinada emenda. Paralelamente, um terceiro autoriza a quebra de sigilo do presidente da República, e um quarto anula pontos de uma reforma constitucional votada pelo Legislativo. Tudo mediante decisões monocráticas, como as de monarcas absolutistas da Idade Média.

Observação: Segundo o regimento interno, devem ir a plenário casos em que haja divergências (entre as turmas ou entre uma delas e o plenário) em relação à matéria em votação. Também cabe ao plenário votar questões jurídicas de maior relevância ou sabidamente controversas, bem como ações que versam sobre crimes cometidos pelo Presidente da República, pelo vice-presidente, pelos presidentes da Câmara e do Senado, pelo Procurador-Geral da República, ou por um dos membros da Corte.

Em se tratando de um colegiado, sempre haverá maiorias vencedoras e minorias vencidas. O que causa espécie é o modo como as maiorias são formadas e as motivações políticas que servem para amalgamá-las. Algumas decisões, de tão teratológicas, remetem ao que disse certa vez o criminalista Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça no primeiro mandato de Lula: "Eu defendo os meus da culpa legal. Julgamentos morais eu deixo para a majestosa vingança de Deus".

O manejo dos meios para chegar aos fins salta aos olhos. Um ministro leva um caso para julgamento na Turma, pois sabe que lá seu ponto de vista prevalecerá. Outro transfere para o plenário uma discussão semelhante, para que seus aliados garantam a vitória do bloco. Manifestações públicas deixam claro que os togados estão deslocados do poder central, e não raro configuram o início de hostilidades que podem desaguar numa declaração de guerra. 

Recentemente, após ser voto vencido no plenário, um magistrado insinuou que a maioria do tribunal atuava contra as investigações de crimes de corrupção na Lava- Jato. Em outro caso, outro membro da Corte concedeu uma liminar e foi alvejado por um colega, que sugeriu seu impeachment ou o reconhecimento de sua inimputabilidade.

Não há ninguém nessa casa de noca que seja capaz de liderar um movimento de unificação. A ministra Cármen Lúcia tentou, mas fracassou. Ao longo de sua gestão, a cizânia interna se alastrou. A própria magistrada foi acusada de manipular a pauta de julgamentos (prática que, aliás, tornou-se a especialidade de Gilmar Mendes na segunda Turma) e acabou implodindo pontes com colegas — inclusive com aqueles que pensam como ela em diversas questões sensíveis. 

Para piorar, sucedeu a Cármen Lúcia na presidência o grande Dias Toffoli, cuja melancólica passagem pelo posto terminou no último dia 10. Espera-se que, sob a batuta de Luiz Fux, a banda toque diferente. Aliás, o magistrado deixou isso claro em seu primeiro discurso como mestre de cerimônias do cirquinho, em cujas entrelinhas permeou um claro recado a Bolsonaro. Cito a defesa enfática da Lava-Jato e de temas ligados ao meio-ambiente e aos direitos humanos e o momento em que o ministro pontua que o mandamento da harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência

Por mais uma ironia do destino, posse de Fux deve entrar para os anais da Corte com a alcunha de Covidão: entre os políticos e agentes públicos de alto coturno que participaram da cerimônia, oito foram diagnosticados com a Covid-19 até o último sábado (19), inclusive o próprio Fux.

E a praga do castelo falava em gripezinha...

Continua.