quinta-feira, 29 de outubro de 2020

CONSTITUINTE? COM ESSE CONGRESSO?

O MAIOR PROBLEMA DO BRASIL NÃO É A CARTA MAGNA, MAS SIM O EXECUTIVO E O CONGRESSO NACIONAL.

Depois de afirmar que a Constituição deixa o Brasil "ingovernável", o líder do governo na Câmara dos Deputados disse que enviará "imediatamente" um projeto de decreto legislativo para a realização de um plebiscito sobre a elaboração de uma nova Carta Magna. 

Deputado federal do Centrão por seis legislaturas e ex-ministro da Saúde do vampiro do Jaburu, Ricardo Barros já teve o mandato cassado, foi citado na delação da Odebrecht e é alvo de diversas investigações. No penúltimo imbróglio (porque outros certamente virão), o MP do Paraná o acusou ter recebido mais de R$ 5 milhões em propinas entre 2013 e 2014, quando era secretário de Indústria e Comércio.

Fosse o Brasil um país que se desse ao respeito, ninguém com um currículo desses teria mandato parlamentar. Mas numa republiqueta de almanaque em que o próprio cacique da tribo e sua prole são investigados, metade do Senado e um terço da Câmara Federal têm contas a acertar com a Justiça e o vice-líder do governo no Senado é apanhado com R$ 33 mil escondidos nas nádegas, não me espantaria se Ricardo BarrosChico Rodrigues e seus iguais fossem incluídos na próxima lista de beatos canonizáveis a ser enviada ao Vaticano.

A “proposta” de Barros foi prontamente rechaçada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que nasceu no Chile, na época de exílio de seu pai, Cesar Maia, mas foi registrado no consulado do Brasil em Santiago. De acordo com Botafogo, a situação do país vizinho é diferente, pois a última constituição chilena país foi aprovada durante a ditadura de Augusto Pinochet, ao passo que a promulgação da nossa selou o fim da ditadura e marcou o início da redemocratização.

É fato que a Constituição Cidadã foi gestada em 1997, em meio à ressaca resultante de 21 anos de ditadura militar; que os constituintes distribuíram diretos a rodo sem apontar de onde viriam os recursos para bancá-los; que a palavra “direito” é mencionada 76 vezes no texto promulgado, enquanto "dever" parece em quatro oportunidades e "produtividade” e “eficiência”, duas e uma vez; e que para sustentar as novas obrigações do Estado (direitos básicos de cidadania, como educação, previdência social, maternidade e infância) a carga tributária aumentou de 22,4% para 36% do PIB (comparativo entre os percentuais de 1988 e 2017).

O saudoso deputado Ulysses Guimarães, que ocupava a presidência da Câmara quando a Constituição Cidadã foi promulgada, reconheceu que o texto legal não era exatamente de uma “pérola jurídica” — o que ficaria comprovado mais adiante pelas mais de 100 emendas costuradas desde então. Por outro lado, apesar de haver direitos demais e deveres de menos, não há necessidade de plebiscito nem de convocação de constituinte. Basta vontade política para aprovar PECs de interesse público, como a tributária e a administrativa.

Não é a primeira vez — e certamente não será a última — que a ideia de criar uma nova Carta assoma no horizonte político tupiniquim. Muito antes da direita, a esquerda = esgrimiu essa tese em várias ocasiões. Lula, o execrável, defendeu-a por meio da marionete patética que se sujeitou a lhe servir de preposto no pleito presidencial de 2018; Dilma, a inesquecível, durante as manifestações populares de 2013. Mais recentemente, Davi Alcolumbre — presidente do Senado e do Congresso e investigado em dois inquéritos no STF por supostas irregularidades relacionadas à campanha de 2014, quando se elegeu senador — levantou essa hipótese a pretexto de fazer as reformas que o Congresso considerasse necessárias. Felizmente, ninguém lhe deu ouvidos, e a proposta foi fulminada por um comentário de Rodrigo Maia, que disse na ocasião: “Vamos caminhar para o que Chávez fez? Foi por isso que a Venezuela chegou aonde está”.

O Brasil é um país com muitas leis e pouca vergonha na cara, carente de gente proba no Congresso, de políticos que honrem o mandato, respeitem o cidadão e sirvam ao país, em vez de se servir dele benefício próprio e de seus asseclas. Num passado não muito remoto, quando éramos felizes e não sabíamos, o parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna estabelecia que “Todo o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido”. Ao rascunharem a versão promulgada em 1988, os constituintes promoveram uma alteração sutil na redação do texto, que passou a ser “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” E assim tolheram-nos do país que tínhamos e nos transformou em escravos dos nossos “representantes”, já que o poder deixou de ser exercido em nome do povo

As constante disputam entre os Poderes, a desmoralização do mundo político, a crise de representação e a disfuncionalidade crônica do Estado nascido dos sonhos dos constituintes de 1988 apontam para uma única solução: repensar os alicerces de nosso Estado Democrático de Direito, em especial o sistema político vigente, e adotar as medidas necessárias ao restabelecimento da normalidade e da pacificação institucional.

Pode-se argumentar que momento não seja propício, e não há como discordar desse argumento. Mas não há país que cresça quando a quase totalidade do Orçamento é consumida pela folha de pagamento do funcionalismo e benefícios e vinculações de toda sorte, e as crises fiscais são contornadas via aumento da carga tributária — o que atualmente é impensável e impraticável — ou através remédios institucionais cada vez menos eficazes. Para além disso, o atual sistema representativo está falido, com partidos políticos que representam a si mesmos mediante mecanismos que favorecem o fisiologismo, o paternalismo e o patrimonialismo, e que nada dizem aos eleitores. O poder econômico quase sempre prevalece sobre o interesse dos cidadãos em geral, atrelando perigosamente à corrupção do sistema político.

Voltando a Ricardo Barros, melhor faria o nobre deputado se angariasse votos para uma PEC que limasse da Constituição o "direito" dos parlamentares ao foro privilegiado e lhes instituísse o dever de se dirigirem de mala e cuia à penitenciária sempre que forem condenados em segunda instância.