Para além da pandemia sanitária, da crise econômica, de um
governo incompetente e de tantas outras mazelas, os brasileiros precisam trabalhar cinco
meses por ano para pagar impostos municipais, estaduais e federais. Os que ainda têm emprego, naturalmente: segundo
a Folha, a reabertura de comércio e serviços em meio à pandemia
intensificou o aumento do desemprego no Brasil, que
bateu recorde e chegou a 13,8% no trimestre encerrado em julho — a
maior marca da série histórica da Pnad,
que calcula a desocupação oficial do país e teve início em 2012.
Ironicamente, os desempregados, mesmo privados do salário, continuam vítimas da escorchante carga tributária tupiniquim. Mesmo um morador de rua, que sobrevive à custa da caridade alheia, é achacado pelo Leão ao comprar uma prosaica garrafa de cachaça (a alíquota que incide sobre esse “símbolo nacional” chega a inacreditáveis 81%). Mas o pior ainda está por vir: Os serviços públicos são péssimos no Brasil. Tanto que o economista Edmar Bacha criou o acrônimo Belíndia (em alusão ao padrão belga da qualidade de vida dos ricos em contraposição à miséria indiana em que vivem os pobres) e Delfin Netto, referindo-se a impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana, cunhou o termo Ingana.
A título de contextualização, às 8h30 da manhã desta quinta-feira,
22, o Impostômetro registrava
uma arrecadação de R$ 1,7 trilhão. Na comparação com os exercícios anteriores, esse montante preocupa: em 2019, o total chegou a
R$ 2,504 trilhões, e em 2018, a R$ 2,389 trilhões. Por óbvio, a redução na arrecadação é fruto dos reflexos da pandemia sanitária na economia. Mas o cerne da
questão é outro: quase tudo que se arrecada nesta republiqueta de bananas é
usado para saciar o apetite pantagruélico de um Estado perdulário e eivado de
sevandijas. Para que o leitor tenha uma ideia, em 2017 foram gastos R$
4,3 trilhões para manter a máquina pública funcionando — aí incluídos
os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Só o STF
consome anualmente cerca de R$ 1 bilhão!
Atribui-se a Tom Jobim a autoria da frase “o
Brasil não é para principiantes”.
Outra máxima digna de nota reza que em nosso país “o futuro é duvidoso e o
passado, incerto”. Tão incerto que até a autoria dessa máxima é duvidosa:
alguns a atribuem ao ex-ministro Pedro Malan e outros, ao ex-presidente
do BC Gustavo Loyola.
Fato é que, de tanto ser brasileiro contemporâneo, o cidadão se adapta, ainda que a contragosto, à lógica do lugar, pois há método na desfaçatez. O jornalista e comentarista político Josias de Souza recomenda esquecer essa questão da “imprevisibilidade”: segundo ele, o Brasil tornou-se um país absurdamente previsível. Senão vejamos.
O Senado passou a sujo o escândalo da cueca endinheirada, e o fez justamente num momento em que há no ar uma fome de limpeza. Davi Alcolumbre, presidente da Congresso, tricotou um acordão que varreu a imundície para debaixo do tapete — com o Supremo, com tudo. Todos saíram ganhando, exceto a moralidade, que continua perdendo.
Empurrado para uma licença de 121 dias, o dono da cueca trancou-se em seus rancores sem perder as prerrogativas de parlamentar. Assume a poltrona de senador o "cueca júnior" (filho e suplente do "cueca sênior"), que passará a desfrutar de todas as regalias que o déficit público pode pagar — de moradia a motorista, de médico a dentista.
Deu para entender por que não há dinheiro que baste?
Mudando de um ponto a outro, mas ainda sob a égide da vergonha nacional, na última quarta-feira a CCJ do Senado submeteu o desembargador piauiense Kassio Nunes Marques a uma sabatina tão longa quanto e inútil, na qual elogios suplantaram em muito os questionamentos dos senadores.
A
aprovação do apadrinhado do morubixaba da aldeia já chegou ao Senado como um
jogo jogado. Mas é inquietante a sólida percepção de que o escolhido chega à Suprema
Corte não por seus conhecimentos jurídicos ou pela reputação ilibada, mas
porque se revelou um representante dos interesses de políticos que frequentam a
conjuntura com a corda no pescoço.
O senador Alessandro Vieira levou à sabatina um
relatório alternativo. Recomendou que Kassio fosse rejeitado. A maioria
dos senadores, já fechada com o relatório oficial do senador Eduardo Braga,
ignorou solenemente a manifestação do colega estraga-festa. Mas o relatório
paralelo serviu para expor o que está por trás da cenografia do Senado.
Além de iluminar os calcanhares de vidro da nova toga, o
texto foi ao ponto. Anotou que a indicação de Kassio angariou "apoios
entusiasmados de políticos que vão do petismo ao bolsonarismo". E foi
recepcionada por ministros do STF que costumam "confraternizar
com investigados poderosos e seus representantes." Juntaram-se no
apoio ao desembargador Flávio Bolsonaro e Fernando Collor, Davi
Alcolumbre e Renan Calheiros, o PT de Lula e o PDT
de Ciro Gomes. Avalizaram a escolha Gilmar Mendes e Dias
Toffoli.
À primeira vista, alguns desses personagens são
conflitantes, mas todos têm uma área de interesse comum: o incômodo com o
lavajatismo. Desejam conter o ímpeto que leva à responsabilização de políticos
de todos os partidos metidos em encrencas antirrepublicanas.
Não é a primeira vez que um presidente cobre com a suprema toga ombros desconectados do interesse nacional. Mas Bolsonaro, que havia acenado com a hipótese de fazer algo diferente, forneceu mais do mesmo.
A
exemplo do que ocorreu com o acordo do Ministério da Saúde para a compra
da vacina do laboratório chinês, testada pelo Instituto Butantã, o bolsonarismo
gritou nas redes sociais contra a escolha de Kassio Marques. No episódio
da vacina, o capitão encenou um recuo que humilhou seu ministro da Saúde, mas,
no caso do Supremo, fez ouvidos moucos.
Quem tem muitos calos foge do aperto.
Com Josias de Souza