sexta-feira, 23 de outubro de 2020

MAIS SUPREMAS VERGONHAS — ATÉ QUANDO, CATILINA?

 


Para além da pandemia sanitária, da crise econômica, de um governo incompetente e de tantas outras mazelas, os brasileiros precisam trabalhar cinco meses por ano para pagar impostos municipais, estaduais e federais. Os que ainda têm emprego, naturalmente: segundo a Folha, a reabertura de comércio e serviços em meio à pandemia intensificou o aumento do desemprego no Brasil, que bateu recorde e chegou a 13,8% no trimestre encerrado em julho — a maior marca da série histórica da Pnad, que calcula a desocupação oficial do país e teve início em 2012.

Ironicamente, os desempregados, mesmo privados do salário, continuam vítimas da escorchante carga tributária tupiniquim. Mesmo um morador de rua, que sobrevive à custa da caridade alheia, é achacado pelo Leão ao comprar uma prosaica garrafa de cachaça (a alíquota que incide sobre esse “símbolo nacional” chega a inacreditáveis 81%). Mas o pior ainda está por vir: Os serviços públicos são péssimos no Brasil. Tanto que o economista Edmar Bacha criou o acrônimo Belíndia (em alusão ao padrão belga da qualidade de vida dos ricos em contraposição à miséria indiana em que vivem os pobres) e Delfin Netto, referindo-se a impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana, cunhou o termo Ingana

A título de contextualização, às 8h30 da manhã desta quinta-feira, 22, o Impostômetro registrava uma arrecadação de R$ 1,7 trilhão. Na comparação com os exercícios anteriores, esse montante preocupa: em 2019, o total chegou a R$ 2,504 trilhões, e em 2018, a R$ 2,389 trilhões. Por óbvio, a redução na arrecadação é fruto dos reflexos da pandemia sanitária na economia. Mas o cerne da questão é outro: quase tudo que se arrecada nesta republiqueta de bananas é usado para saciar o apetite pantagruélico de um Estado perdulário e eivado de sevandijas. Para que o leitor tenha uma ideia, em 2017 foram gastos R$ 4,3 trilhões para manter a máquina pública funcionando — aí incluídos os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Só o STF consome anualmente cerca de R$ 1 bilhão!

Atribui-se a Tom Jobim a autoria da frase “o Brasil não é para principiantes”. Outra máxima digna de nota reza que em nosso país “o futuro é duvidoso e o passado, incerto”. Tão incerto que até a autoria dessa máxima é duvidosa: alguns a atribuem ao ex-ministro Pedro Malan e outros, ao ex-presidente do BC Gustavo Loyola.

Fato é que, de tanto ser brasileiro contemporâneo, o cidadão se adapta, ainda que a contragosto, à lógica do lugar, pois há método na desfaçatez. O jornalista e comentarista político Josias de Souza recomenda esquecer essa questão da “imprevisibilidade”: segundo ele, o Brasil tornou-se um país absurdamente previsível. Senão vejamos.

O Senado passou a sujo o escândalo da cueca endinheirada, e o fez justamente num momento em que há no ar uma fome de limpeza. Davi Alcolumbre, presidente da Congresso, tricotou um acordão que varreu a imundície para debaixo do tapete — com o Supremo, com tudo. Todos saíram ganhando, exceto a moralidade, que continua perdendo. 

Empurrado para uma licença de 121 dias, o dono da cueca trancou-se em seus rancores sem perder as prerrogativas de parlamentar. Assume a poltrona de senador o "cueca júnior" (filho e suplente do "cueca sênior"), que passará a desfrutar de todas as regalias que o déficit público pode pagar — de moradia a motorista, de médico a dentista. 

Deu para entender por que não há dinheiro que baste?

Mudando de um ponto a outro, mas ainda sob a égide da vergonha nacional, na última quarta-feira a CCJ do Senado submeteu o desembargador piauiense Kassio Nunes Marques a uma sabatina tão longa quanto e inútil, na qual elogios suplantaram em muito os questionamentos dos senadores. 

A aprovação do apadrinhado do morubixaba da aldeia já chegou ao Senado como um jogo jogado. Mas é inquietante a sólida percepção de que o escolhido chega à Suprema Corte não por seus conhecimentos jurídicos ou pela reputação ilibada, mas porque se revelou um representante dos interesses de políticos que frequentam a conjuntura com a corda no pescoço.

O senador Alessandro Vieira levou à sabatina um relatório alternativo. Recomendou que Kassio fosse rejeitado. A maioria dos senadores, já fechada com o relatório oficial do senador Eduardo Braga, ignorou solenemente a manifestação do colega estraga-festa. Mas o relatório paralelo serviu para expor o que está por trás da cenografia do Senado.

Além de iluminar os calcanhares de vidro da nova toga, o texto foi ao ponto. Anotou que a indicação de Kassio angariou "apoios entusiasmados de políticos que vão do petismo ao bolsonarismo". E foi recepcionada por ministros do STF que costumam "confraternizar com investigados poderosos e seus representantes." Juntaram-se no apoio ao desembargador Flávio Bolsonaro e Fernando Collor, Davi Alcolumbre e Renan Calheiros, o PT de Lula e o PDT de Ciro Gomes. Avalizaram a escolha Gilmar Mendes e Dias Toffoli.

À primeira vista, alguns desses personagens são conflitantes, mas todos têm uma área de interesse comum: o incômodo com o lavajatismo. Desejam conter o ímpeto que leva à responsabilização de políticos de todos os partidos metidos em encrencas antirrepublicanas.

Não é a primeira vez que um presidente cobre com a suprema toga ombros desconectados do interesse nacional. Mas Bolsonaro, que havia acenado com a hipótese de fazer algo diferente, forneceu mais do mesmo. 

A exemplo do que ocorreu com o acordo do Ministério da Saúde para a compra da vacina do laboratório chinês, testada pelo Instituto Butantã, o bolsonarismo gritou nas redes sociais contra a escolha de Kassio Marques. No episódio da vacina, o capitão encenou um recuo que humilhou seu ministro da Saúde, mas, no caso do Supremo, fez ouvidos moucos.

Quem tem muitos calos foge do aperto.

Com Josias de Souza