quinta-feira, 15 de outubro de 2020

SEMIDEUSES DESVAIRADOS — CONTINUAÇÃO

Em fevereiro do ano passado o então ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro encaminhou ao Congresso uma projeto de lei que ficou conhecido popularmente como “pacote anticrime”. Depois de 10 meses desfigurando e retalhando o texto, os parlamentares aprovaram uma pálida sombra do proposta original, e o presidente Bolsonaropara quem o combate à corrupção e a punição exemplar dos corruptos é um sacerdócio —, vetou 25 dispositivos do texto, mas ignorou as recomendações da área jurídica do MJSP e da PGR e manteve na árvore o “jabuti” colocado pelo deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG).

Jabuti não sobe em árvore; se está lá, foi por enchente ou mão de gente. E esse “jabuti” virou o famigerado e controverso parágrafo único do artigo 316 do CPP, que o ministro Marco Aurélio usou como pé-de-cabra para abrir a cela de André do Rap, um dos mandachuvas da maior facção criminosa do país, duplamente condenado em segunda instância a 25 anos de prisão. 

A estapafúrdia liminar foi revogada oito horas depois pelo presidente da Corte, mas o traficante já havia se escafedido, e seu colega Gilcimar de Abreu, também membro do PCC, reivindicava tratamento igual ou dispensado ao comparsa. 

Condenado a 8 anos de prisão em segunda instância, junto com André, por tráfico internacional de drogas, Gilcimar integrava o grupo do PCC que enviava cocaína para a Europa a partir do Porto de Santos e foi preso em maio deste ano numa chácara em Pedro Toledo (SP), após seis anos foragido. No pedido apresentado ao STF, dentro do mesmo habeas corpus, sua defesa afirmou que ele “encontra-se em situação idêntica” à de André, já que a prisão preventiva não é reavaliada desde o dia 25 de julho, e esgrime o mesmíssimo argumento usado pela defesa de André do Rap

O Egrégio Tribunal [TRF-3] deixou de justificar a manutenção da prisão preventiva do Requerente, o que caracteriza sério constrangimento ilegal, seja porque desprezou o contido no artigo 316 do CPP, seja por violação ao artigo 5º LVII, LXI da Constituição Federal. Vale dizer que, mantida a custódia aos 25 de junho de 2020, sem reanálise da necessidade da prisão, caracterizado se cristalina o excesso de prazo”, diz o pedido, que já chegou ao gabinete do gênio da contradição.

Marco Aurélio acusou Fux de promover a "autofagia, o que só desacredita o Supremo” e enfatizou que “o presidente da Corte é um mero coordenador de iguais e não dispõe de poderes para rever decisões de colegas”. Nada muito diferente do que havia dito em dezembro de 2018, quando Toffoli, então “coordenador de iguais de turno”, cassou outra igualmente estapafúrdia liminar de sua lavra, publicada minutos antes do início do recesso do Judiciário, e que por pouco não resultou na soltura de quase 170 mil condenados em segunda instância que aguardavam na cadeia o julgamento de seus recurso, inclusive o criminoso Lula.

Garantistas de raiz (ou de ocasião, dependendo do ponto de vista) aplaudiram a decisão teratológica do Sr. Voto Vencido, enquanto juristas mais equilibrados a repudiaram, ponderando que um traficante e chefe de organização criminosa, com duas condenações em 2ª Instância, jamais deveria ter sido solto com base num artigo de aplicação controvertida tanto à luz da doutrina quanto da jurisprudência.

À luz do bom senso, o procedimento adequado seria determinar ao juiz de 1ª Instância que justificasse a manutenção da prisão. O próprio deputado autor da emenda criticou a decisão do ministro: "A periculosidade é um dos casos que justifica a manutenção da prisão preventiva. Não vejo razão para soltá-lo". 

Segundo a Associação dos Juízes Federais do Brasil, “O decurso do prazo de 90 dias estabelecido na lei anticrime não implica automaticamente a colocação em liberdade de réu preso, conforme já decidido pelo STF. Nesse caso específico, se for excedido o prazo, a análise será feita pelo juízo ou tribunal da necessidade da manutenção da prisão preventiva. Nos casos de interposição de recurso há controvérsia se os tribunais devem fazer essa revisão”.

Fato é, diz Josias de Souza, que a cleptocracia brasileira decidiu ressuscitar uma máxima cunhada no século 19 pelo chanceler alemão Otto von Bismarck, segundo a qual "É melhor que o povo não saiba como são feitas as leis e as salsichas." E com efeito.

O pacote anticrime, do modo como foi aprovado e sancionado, tornou-se uma das mais celebradas salsichas legislativas do ano passado, quando, a pretexto de combater as prisões longevas da Lava-Jato, um Congresso apinhado de investigados, culpados e cúmplices retirou do projeto de lei original a permissão para prisão de larápios condenados na segunda instância e incluiu esse abre-celas.

Segundo a Constituição, o Supremo é um Poder independente. Mas essa independência se dilui em meio à frequência com que seus membros tomam decisões conflitantes, marcadas por peculiaridades pessoais e não raro divergentes da jurisprudência da própria Corte.

Durante a nada saudosa passagem de Toffoli pela presidência da Corte, o ministro Barroso propôs submeter à apreciação do colegiado todas as decisões monocráticas. Cinco ministros já haviam votado favoravelmente quando um pedido de vista de Luiz Fux interrompeu o julgamento. Se for aprovada (falta apenas um voto), a nova regra não tornará o STF infalível, mas elevará a qualidade dos julgamentos: do modo como a coisa funciona hoje, um único ministro pode destruir com uma canetada anos de trabalho de juízes de primeiro grau, procuradores e policiais.

Voltando à liminar teratológica do decano, Fux levou o caso a plenário nesta quarta-feira (a despeito de alguns ministros entenderem que a decisão cabia à 1ª Turma) e a sessão foi encerrada por volta das 18h30, quando já se havia formado maioria (6 votos a zero) pela revogação do habeas corpus. O julgamento será retomado na próxima sessão, com o voto da ministra Cármen Lúcia.