Ainda que esta postagem “quebre” a sequência iniciada na anterior, o hiato se justifica pela relevância da questão superveniente. Demais disso, em se tratando de mais uma controvérsia suprema, o que será dito aqui está dentro do escopo do post retrocitado.
Começo pelas curiosas coincidências numéricas: ontem, 13 de outubro, o ministro Celso de Mello, que ganhou a suprema toga em 17 de agosto de 1989 do então presidente José Sarney, vestiu o supremo pijama após 31 anos na Corte e 13 como decano (ministro com mais tempo de casa), deixando um respeitável acervo de 224 mil decisões (quase 20 por dia, em média).
O bota-fora antecipado contou
com discursos emocionados, lacrimosos e ornados com os indefectíveis
salamaleques e rapapés, mas que, nesse caso específico, me pareceram sinceros. Embora
o STF seja considerado um arquipélago de 11 ilhas independentes e em constante
conflito, o ministro sainte conquistou o respeito da maioria de seus pares e a
admiração genuína de alguns deles.
Voltando ao número 13 (e ao 31,
que passa a ser 13 quando se invertem os algarismos), a
aposentadora do decano guinda Marco Aurélio Mello (o patronímico não
remete a parentesco, é só uma simples coincidência) à condição de membro mais
antigo da Corte, já que foi indicado pelo primo e então presidente Fernando
Collor de Mello em 13 de junho de 1990. Felizmente, esse decanato terminará
em 12 de junho do ano que vem, que é quando Mello sopra sua 75ª
velinha.
Cumpre salientar que nem o hábito faz o monge, nem o decanato
tem o condão de dar a sua excelência a envergadura de seu antecessor. Longe
disso. A trajetória desse controverso magistrado é um exemplo lapidar de
como o patrimonialismo não só sobreviveu a todas as tentativas de superá-lo
como acentuou suas imperfeições e demoliu a reputação de seus agentes. Aliás, devido
à obsessão de se contrapor ao entendimento colegiado, o togado ganhou
os epítetos de “Sr. Voto Vencido” e “Espírito de Porco”.
Mediante uma liminar assinada na última sexta-feira, Marco
Aurélio restituiu a liberdade a André Oliveira Macedo, vulgo André
do Rap, um dos mandachuvas PCC. O
traficante já foi condenado em dois processos, ambos julgados em segunda
instância, e estava foragido até setembro do ano passado. Quando foi capturado, portava R$ 4 milhões em espécie e ofereceu aos policiais um suborno de R$
10 milhões em troca de sua liberdade — o que, salvo melhor juízo, é razão mais
que suficiente para mantê-lo atrás das grades.
“Processo não tem capa, tem conteúdo”, diz o luminar supremo, dando a entender que decide rigorosamente de acordo com a lei e não se deixa influenciar pelas características de cada réu. Na verdade, como o escorpião da fábula, esse senhor é incapaz de agir contra a própria natureza. Tanto que já decidiu de maneira idêntica em pelo menos 79 pedidos de soltura, sempre com base no artigo 316 do CPP, que foi acrescentado pelo Congresso durante o impiedoso retalhamento imposto ao pacote anticrime do então ministro Sergio Moro, e torna ilegais de ofício as prisões preventivas que não forem reanalisadas e refundamentadas pelo juízo responsável a cada 90 dias.
Curiosamente, com base
nesse mesmo artigo, o ministro Edson Fachin rejeitou, em maio deste ano,
o pedido de habeas corpus num caso similar ao de André do Rap. Por uma
simples questão de bom sendo, em vez de determinar a soltura do acusado, o relator
da Lava-Jato no STF determinou ao juiz de primeiro grau que
reanalisasse a prisão preventiva do paciente, em respeito ao artigo em tela.
Ressalte-se que tanto o ex-ministro da Justiça quanto o
atual procurador-geral recomendaram a Jair Bolsonaro que vetasse o
famigerado artigo, mas por alguma razão o “mito” fez ouvidos moucos. Aliás,
são situações como essa me levam a dizer que a Presidência da República, o Congresso
Nacional e o STF merecem nosso respeito enquanto instituições, e que isso não se aplica necessariamente às pessoas que ocupam os respectivos
cargos. Até porque respeito não se impõe, conquista-se, e agentes públicos que
não se dão ao respeito não podem exigi-lo dos cidadãos a quem eles deveriam servir,
em vez de servir-se deles, fruindo de nababescos salários e toda sorte de
mordomias e penduricalhos (vide postagem anterior).
Para encurtar a conversa, Marco Aurélio está no
Supremo há tempo mais que suficiente para saber o que é hermenêutica
e que o uso da “hermenêutica criativa” é recorrente entre seus pares. Em
alguns casos, os ministros são criativos a ponto de cruzar a linha
que separa a interpretação da norma jurídica do ato de legislar — como na
absurda decisão sobre a ordem
de apresentação de memoriais em processos que envolvem réus delatores e
delatados, cuja inobservância, decidiram suas excelências por maioria, resulta
na anulação da sentença e consequente reabertura do prazo para a juntada das
razões finais.
Entender que o delatado deve falar após o delator é esquecer
que ambos têm condição única no processo, qual seja de réus, e que réus
não se defendem da delação, mas da acusação feita pelo MP. Salvo melhor
juízo e com as vênias de estilo, não faz a menor diferença apresentar as razões
finais ao mesmo tempo ou depois dos corréus, delatores ou não. Reza o melhor
entendimento que: 1) réus colaboradores não estão no polo da acusação — ou
seja, também são processados pelo Estado; 2) a lei processual não dispõe sobre
prazo diverso para corréus em nenhuma hipótese, sejam eles delatores ou
delatados.
O MP recorreu da decisão estapafúrdia de Mello e o presidente da Corte suspendeu a liminar e determinou o imediato retorno do traficante à prisão. Em seu despacho, Fux salientou que não seria o caso de o STF analisar se a renovação da prisão havia sido feita, até porque o tema não foi submetido às instâncias inferiores antes de chegar àquela Corte. Inconformado por ter sido desautorizado, o primo de Collor acusou o colega de “dar circo ao público, que quer vísceras” e praticar “uma autofagia que só descredita o Supremo”.
Fux decidiu levar o caso ao plenário na sessão desta quarta-feira. Caberá ao colegiado decida se a falta de pedido expresso de renovação de uma prisão preventiva, após 90 dias, leva automaticamente à soltura do réu, mesmo que já tenha havido condenação em primeira instância. Resta saber que bicho vai dar, já que alguns ministros, apesar de acharem que o traficante não deveria ter sido solto, entendem que o presidente da Corte atropelou o relator original do habeas corpus. Este, sempre "do contra", reclama que o colegiado competente para a decisão definitiva é a 1ª Turma, e não o plenário, e, fiel a seu bordão, diz que "tudo é possível nesses tempos estranhos".
Imbróglios que tais não ocorreriam se a jurisprudência sobre a prisão em segunda instância não tivesse sido revertida aos tempos do império da impunidade. A decisão absurda do STF nesse sentido, tomada por apertada maioria no final do ano passado, levou tanto a Câmara quanto o Senado a buscarem maneiras de restabelecer o status quo ante. Rodrigo Maia disse que quer votar antes do final do ano a PEC 199/19, cuja tramitação foi suspensa devido à pandemia. No Senado, o projeto do senador Lasier Martins está parado há dez meses — por não ser uma PEC, mas uma simples alteração da legislação penal para assegurar a prisão por condenação criminal por “órgão colegiado”, sua tramitação seria muito mais rápida. Mas falta aos parlamentares o que se convencionou chamar de “vontade política”.
Observação: No início do ano, senadores que
defendem a prisão após condenação em segunda instância reuniram 43 assinaturas
em um abaixo-assinado que pedia ao presidente da Casa que pautasse a votação do
projeto. Alcolumbre, no entanto, teria decidido esperar pela votação da PEC
que tramita na Câmara.
Vale lembrar que o reexame de matéria fática (provas)
só é possível até a segunda instância. Às cortes superiores cabe somente analisar
questões acerca das regras aplicáveis — a legislação federal, no caso do STJ,
e a Constituição, no do STF. Portanto, o início do cumprimento da
pena após a decisão de segunda instância, sem prejuízo dos recursos pendentes
de apreciação pelas cortes superiores, é totalmente admissível. Segundo o artigo
637 do CPP, os recursos especial e extraordinário não têm efeito
suspensivo; uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os
originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença.
A ver.