quarta-feira, 11 de novembro de 2020

AINDA SOBRE O PAÍS DE MARICAS

 


Pode-se morrer de tudo no jornalismo, menos de tédio, dizia o saudoso Ricardo Boechat. Por uma estranha ironia do destino, o carequinha morreu tragicamente, numa improvável colisão entre o helicóptero em que voltava de Campinas para São Paulo e um caminhão. Dito isso, sigamos adiante.

Passado o feriado de finados — quando se soube que o senador Flávio Bolsonaro passara o fim de semana prolongado na bucólica ilha de Fernando de Noronha (o que não teria nada de mais se a passagem não tivesse sido paga com dinheiro público) —, a eleição presidencial americana e a morosa e enervante apuração dos votos monopolizaram o noticiário. Finalmente, na tarde de sábado a imprensa noticiou a vitória de Joe Biden e, por tabela, o ingresso do atual inquilino da Casa Branca na seleta confraria dos ex-presidentes daquele país que não conseguiram se reeleger (era quatro até então, considerando os últimos 100 anos).  

Trump foi, para a democracia norte-americana, um elemento nocivo. Assentou sua conduta, como candidato e como presidente, numa santa trindade das redes sociais: fake news — teorias da conspiração — pós-verdades. 

Pesquisadores apontaram que sua comunicação pelas redes sociais era eivada de mentiras e distorções anticientíficas e negacionistas. Minutos após o anúncio da vitória de Biden, o troglodita comunicou, através de nota, que não aceitava o resultado e que daria início a uma série medidas legais para contestar a vitória do adversário — fraudulenta, acusa ele, mas sem apresentar uma prova sequer que embase essa delirante aleivosia.

Bolsonaro e seus miquinhos amestrados, que haviam promoveram o homem da peruca laranja a seu totem sagrado de adoração, ecoam nas redes sociais uma enxurrada de teorias asininas. Na visão deles, seu amado ídolo foi derrotado num pleito fraudado. Numa demonstração de fidelidade canino-hidrofóbica, o capitão não só se recusou a cumprimentar Biden pela vitória. 

Numa coletiva de imprensa, o garoto-propaganda da cloroquina afirmou que “um grande candidato a chefia de Estado que disse que poderia levantar barreiras comerciais contra o Brasil por conta de incêndios na Amazônia”. E ajuntou, irresponsavelmente: “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”. 

Desprezível e repugnante é pouco para qualificar a atitude de Bolsonaro ao festejar a paralisação dos testes com a CoronaVac como uma vitória política sobre o governador de São Paulo — de quem ele se borra de medo de ter de enfrentar em 2022. Um ato inconsequente vindo de um presidente igualmente inconsequente, mas que dá bem a dimensão desumana de um sujeito que sapateia sobre o esquife das vítimas da pandemia e chama o país que deveria governar de “terra de maricas”.

Não tivesse sua alteza se amancebado com o Centrão, esse seria mais um prego no caixão onde nossa praga de madrinha descansará em paz, após ser abatida em seu patético e ultrajante voo de galinha rumo a uma hipotética e ainda mais ultrajante reeleição. 

O fato é que Bolsonaro não reúne o mínimo de condições psicológicas ou morais que lhe permitam exercer o cargo ao qual foi guindado (por absoluta falta de alternativa) para impedir que um  pé-de-cana salafrário, sacripanta e corrupto — vade retro, Satanás! — voltasse a dar as cartas no Palácio do Planalto. Note que não se trata de uma crítica, mas de um triste constatação (o que torna a situação ainda mais desesperadora).

A crise da vacina é apenas mais uma fase do nauseabundo negacionismo de alguém que para estar (literalmente) cagando e andando para mais de 5 milhões de infectados pela Covid-19 e de 160 mil mortos por conta da doença. Uma hora essa polarização estúpida há de cansar até os mais estúpidos, assim como nos EUA, cansados da virulência de Donald Trump, a população votou no conciliador Joe Biden

Resta saber se teremos um “Biden” para derrotar a versão tropicalizada e mal-acabada do troglodita americano. E falando no diabo...

Os padrões de decência de Bolsonaro, para além de sua acachapante incompetência, marcam indelevelmente sua falta de liderança no enfretamento da maior pandemia viral dos últimos 100 anos. 

Não bastasse a pilha de cadáveres, que cresce a cada dia, amargamos o fado aziago de ter um mandatário sem a mínima noção do bem comum em um dos momentos mais dramáticos da história. 

Um chefe incompetente sempre pode se cercar de assessores preparados para aconselhá-lo, desde que não lhe faltem humildade, espírito público, empatia e genuína compaixão por seus concidadãos. Não é o caso de Bolsonaro, que acercou-se de sectários olavo-carvalhistas, criacionistas, terraplanistas, extremistas, obscurantistas, lunáticos, delirantes, enfim, uma caterva que exsuda ideologismo fanático por todos os poros.  

Em mais uma demonstração cabal de sua "falta de absolutamente", nosso presidente não escondeu seu júbilo pela interrupção dos testes da CoronaVac, na última segunda-feira. 

A Anvisa atribuiu à ocorrência de um “evento adverso grave” a interrupção dos testes da fase 3, que têm se revelado bastante promissores. Antes de estar claro em que circunstâncias se deu o tal “evento adverso grave”, o inquilino de turno do Planalto usou o Facebook para inflamar sua rinha particular com o governador de São Paulo, João Doria

Sem qualquer evidência que corroborasse suas alegações, Bolsonaro, bem a seu feitio, escreveu que a CoronaVac provocaria “morte, invalidez, anomalia”. Trata-se de uma mentira, uma desabrida irresponsabilidade que mostra que não há limites para quando o que está em jogo são seus interesses particulares. Dane-se o interesse público.

Escrevendo em terceira pessoa e naquele seu idioma que se assemelha ao português, o morubixaba da aldeia prosseguiu afirmando que “esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O Presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Ganha o que, presidente? 

Soube-se mais adiante que o “evento adverso grave” foi a morte trágica de um voluntário que participava dos testes com a CoronaVac em São Paulo. A Secretaria de Estado da Saúde considera “impossível” que o fato esteja relacionado com a vacina, o que torna ainda mais indigna a manifestação inoportuna do presidente. Primeiro, por se jactar de um fato que envolve a morte de uma pessoa. Segundo, por comemorar a interrupção dos testes de uma vacina enquanto a esmagadora maioria do país anseia por ela e lamenta o ocorrido.

A interrupção dos testes de uma vacina quando há um desvio dos resultados esperados é procedimento comezinho na comunidade científica. Recentemente, os testes com o imunizante desenvolvido pela Universidade de Oxford em parceria como o laboratório AstraZeneca também foram suspensos pela Anvisa, após ter sido constatado um efeito colateral em um voluntário. Tão logo ficou esclarecido que seria seguro prosseguir com o estudo, os testes foram retomados. Donde se concluir que a interrupção dos testes é algo que diz mais sobre a segurança do processo de desenvolvimento de uma vacina do que sobre sua possível ineficácia.

Jean Gorinchteyn, secretário de Saúde de São Paulo, e Dimas Covas, presidente do Instituto Butantan, mostraram-se surpresos com a decisão da Anvisa, que não teria se pautado pelo rigor científico. A agência, obviamente, afirmou o contrário. Na manhã de ontem, porém, ela autorizou a retomada dos testes. 

A despeito da impropriedade da comparação, tanto nesse caso lamentável como na igualmente lamentável soltura do megatraficante de mandachuva do PCC André do Rap (pelo ainda mais lamentável decano supremo Celso de Mello) poderiam ter sido evitados mediante um simples telefonema e cinco minutos de produtiva conversa. Ainda que vivamos num país atrasado, o serviço de telefonia vem funcionando muito bem depois que o famigerado monopólio do igualmente famigerado Sistema Telebrás foi limando pela providencial privatização.

Fica no ar a questão: se o presidente Jair Bolsonaro não tivesse transformado a pesquisa e a produção de vacinas contra a covid-19 numa mesquinha disputa eleitoreira, teria ele descido aos porões da indecência?