quarta-feira, 11 de novembro de 2020

TEM QUE DEIXAR DE SER UM PAÍS DE MARICAS

 


Antonio Barra Torres, diretor da Anvisa, disse que a decisão de interromper os testes da CoronaVac foi “técnica” e, em face dos documentos apresentados, “era a única a ser tomada”. Não é o que parece. A causa da morte do voluntário, segundo laudo médico emitido pelo IML e divulgado pela TV Cultura, foi suicídio

Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, ponderou que agência não deveria ter suspendido os testes sem primeiro verificar o que aconteceu. João Gabbardo dos Reis, secretário-executivo do Centro de Contingência do combate ao coronavírus no Estado de São Paulo, estranhou a “coincidência” (referindo-se à suspensão dos testes ter ocorrido no mesmo dia em que o governo de São Paulo anunciou avanços para produção e disponibilização do imunizante).

Observação: Na tarde de ontem a Anvisa informou que recebeu um documento do Comitê Internacional Independente (que analisa os eventos relacionados à testagem da CoronaVac) e que o relatório se encontra-se sob análise do grupo interno da agência. A diretora Alessandra Bastos esclareceu que o estudo não foi interrompido: “O que está interrompido é a vacinação de novos voluntários; os dados estão sendo trabalhados neste momento”. A secretária disse ainda que a liberação acontecerá no “melhor tempo possível”, que não é necessariamente o menor. O ministro Ricardo Lewandowski deu prazo de 48 horas para que a agência dê informações sobre os critérios usados para os testes da vacina e o atual estágio de aprovação deste e demais imunizantes contra a Covid-19

Bolsonaro, no melhor estilo escorpião da fábula (incapaz de agir contra a própria natureza), comemorou o furdunço: “Morte, invalidez e anomalia… Esta é a vacina que o Dória (sic) queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la (sic). O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, anotou o presidente, falando na terceira pessoa. E também enviou mensagens a ministros com o seguinte teor: “Alerto que não compraremos vacina da China. Bem como meu governo não mantém diálogo com João Doria sobre covid-19". 

"Tem que acabar com esse negócio, pô. Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia, aqui todo mundo vai morrer. Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um País de maricas. Olha que prato cheio para a imprensa, para a urubuzada que está ali atrás (apontando para o local reservado aos jornalistas)", disse o "mito" dos cegos e dos ignorantes em ouro pronunciamento. É ou não caso de internação?

Bolsonaro e Doria são adversários políticos e divergem sobre absolutamente tudo, inclusive a obrigatoriedade da aplicação da vacina. Mas isso não dá ao presidente o direito de escarnecer dos brasileiros e desrespeitar as famílias dos mortos. Com o mundo vivendo sob a sombra de uma segunda onda da pandemia, um chefe de governo (pode não parecer, mas é isso que Bolsonaro é, ou que foi eleito para ser) dizer que o Brasil "tem que deixar de ser um País de maricas e enfrentar a doença como homem"... Faça-me um favor!

Paralisações são normais nesse tipo de estudo. Basta lembrar a interrupção dos testes com a vacina desenvolvida pela universidade de Oxford em parceria com o laboratório AstraZeneca e testada no Brasil pela Fiocruz. Nesse caso, como a entidade é vinculada ao Ministério da Saúde e o governo federal investiu dinheiro do contribuinte nesse imunizante, Bolsonaro não deu um pio. Além disso, sanadas as dúvidas, o estudo foi retomado. Sem politicagens.

Ao arrastar a testagem de uma vacina para o ringue de 2022, Bolsonaro, que já declarou guerra à "vacina chinesa do Doria" no final de outubro e já humilhou seu ministro da Saúde forçando-o a cancelar protocolo que assinara com o Butantan para aquisição de 46 milhões de doses da droga, agora transforma sua obsessão pela reeleição num processo de desmoralização da "autonomia" da Anvisa. O que mais falta? 

"Para nós, não importa de onde vem a vacina", disse no mês passado o contra-almirante Antonio Barra Torres, que presidia a Anvisa interinamente desde dezembro de 2019, foi efetivado no cargo no mesmo dia em que Pazuello firmou a parceria com o Butantan — aquela que Bolsonaro mandou anular — e em que prometeu aos senadores que faria uma "gestão independente." Está-se vendo.

Há quase oito meses, em 15 de março, o capitão-vergonha deu de ombros para as recomendações de distanciamento social ao participar de um protesto defronte do Planalto. O contra-almirante, então chefe interino da Anvisa não só lhe fez companhia como, a certa altura, atuou como cinegrafista, filmando o presidente enquanto ele distribuía apertos de mão a seus devotos. A sintonia entre Bolsonaro e o personagem que prometeu agir com "autonomia" na Anvisa parecia intensa. 

Continua boiando na atmosfera infectada de Brasília a pergunta: "A agência terá ou não independência para analisar as vacinas tecnicamente?" E a celebração do inquilino do Planalto — "Mais uma vez Jair Bolsonaro ganha" — faz surgir uma segunda interrogação: O que ganha o presidente com eventuais embaraços ao desenvolvimento de uma vacina num país em que o vírus já produziu mais de 162 mil cadáveres? Morre um dos milhares de voluntários que se ofereceram participar dos testes da vacina, o que nada a ver com a vacina (foi suicídio), mas Bolsonaro decreta antecipadamente que o imunizante mata e aleija... Parece suspeito... ou não?

Em política, quase tudo é permitido, exceto deixar-se surpreender. E ninguém pode alegar surpresa com o comportamento de Bolsonaro, que é do tipo de político que, se for passear num bosque com lindas árvores, não enxergará nada além de lenha para a fogueira. Resta perguntar: O que ganha o presidente com sua obsessão em transformar qualquer assunto, inclusive a pandemia, em trampolim para a reeleição? 

É mais fácil constatar o que perde o país. Com sua celebração, Bolsonaro avacalhou a Anvisa, desrespeitou a família do morto, escarneceu da expectativa dos brasileiros que anseiam por vacinas e, de quebra, rebaixou a Presidência da República. É uma pena não existir vacina contra bolsonarices.

Estamos a menos de uma semana das eleições municipais. Notícias como essas deveriam alertar a população para a importância de votar com consciência (falar em sabedoria, diante nível sociocultural da récua de muares que compõe o eleitorado, seria insanidade). Não se nega que o elenco de postulantes à prefeitura de São Paulo não contribui para uma escolha sensata, e os candidatos a vereador, então... basta ouvir cinco minutos da propaganda política obrigatória para um cidadão minimamente racional se debulhar em lágrimas, vomitar, enforcar-se ou fazer tudo isso ao mesmo tempo.

Com Josias de Souza.