Antonio Barra Torres, diretor da Anvisa, disse que a decisão de interromper os testes da CoronaVac foi “técnica” e, em face dos documentos apresentados, “era a única a ser tomada”. Não é o que parece. A causa da morte do voluntário, segundo laudo médico emitido pelo IML e divulgado pela TV Cultura, foi suicídio.
Dimas Covas,
diretor do Instituto Butantan, ponderou que agência não deveria ter suspendido os
testes sem primeiro verificar o que aconteceu. João Gabbardo dos Reis, secretário-executivo
do Centro de Contingência do combate ao coronavírus no Estado de São Paulo, estranhou a “coincidência” (referindo-se à suspensão dos testes ter ocorrido no
mesmo dia em que o governo de São Paulo anunciou avanços para produção e
disponibilização do imunizante).
Observação: Na tarde de ontem a Anvisa informou que recebeu um documento do Comitê Internacional Independente (que analisa os eventos relacionados à testagem da CoronaVac) e que o relatório se encontra-se sob análise do grupo interno da agência. A diretora Alessandra Bastos esclareceu que o estudo não foi interrompido: “O que está interrompido é a vacinação de novos voluntários; os dados estão sendo trabalhados neste momento”. A secretária disse ainda que a liberação acontecerá no “melhor tempo possível”, que não é necessariamente o menor. O ministro Ricardo Lewandowski deu prazo de 48 horas para que a agência dê informações sobre os critérios usados para os testes da vacina e o atual estágio de aprovação deste e demais imunizantes contra a Covid-19.
Bolsonaro, no melhor estilo escorpião da fábula (incapaz de agir contra a própria natureza), comemorou o furdunço: “Morte, invalidez e anomalia… Esta é a vacina que o Dória (sic) queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la (sic). O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, anotou o presidente, falando na terceira pessoa. E também enviou mensagens a ministros com o seguinte teor: “Alerto que não compraremos vacina da China. Bem como meu governo não mantém diálogo com João Doria sobre covid-19".Bolsonaro e Doria são adversários políticos e divergem sobre absolutamente tudo, inclusive a obrigatoriedade da aplicação da vacina. Mas isso não dá ao presidente o direito de escarnecer dos brasileiros e desrespeitar as famílias dos mortos. Com o mundo vivendo sob a sombra de uma segunda onda da pandemia, um chefe de governo (pode não parecer, mas é isso que Bolsonaro é, ou que foi eleito para ser) dizer que o Brasil "tem que deixar de ser um País de maricas e enfrentar a doença como homem"... Faça-me um favor!
Paralisações são normais nesse tipo de estudo. Basta lembrar a interrupção dos testes com a vacina desenvolvida pela universidade de Oxford em parceria com o laboratório AstraZeneca e testada no Brasil pela Fiocruz. Nesse caso, como a entidade é vinculada ao Ministério da Saúde e o governo federal investiu dinheiro do contribuinte nesse imunizante, Bolsonaro não deu um pio. Além disso, sanadas as dúvidas, o estudo foi retomado. Sem politicagens.
Ao arrastar a testagem de uma vacina para o ringue de 2022, Bolsonaro, que já declarou guerra à "vacina chinesa do Doria" no final de outubro e já humilhou seu ministro da Saúde forçando-o a cancelar protocolo que assinara com o Butantan para aquisição de 46 milhões de doses da droga, agora transforma sua obsessão pela reeleição num processo de desmoralização da "autonomia" da Anvisa. O que mais falta?
"Para nós, não importa de onde vem a vacina",
disse no mês passado o contra-almirante Antonio Barra Torres, que
presidia a Anvisa interinamente desde dezembro de 2019, foi efetivado no cargo no mesmo dia em que Pazuello firmou a parceria com o Butantan
— aquela que Bolsonaro mandou anular — e em que prometeu aos senadores que
faria uma "gestão independente." Está-se vendo.
Há quase oito meses, em 15 de março, o capitão-vergonha deu de ombros para as recomendações de distanciamento social ao participar de um protesto defronte do Planalto. O contra-almirante, então chefe interino da Anvisa não só lhe fez companhia como, a certa altura, atuou como cinegrafista, filmando o presidente enquanto ele distribuía apertos de mão a seus devotos. A sintonia entre Bolsonaro e o personagem que prometeu agir com "autonomia" na Anvisa parecia intensa.
Continua boiando na atmosfera infectada de Brasília a pergunta: "A agência terá ou não independência para analisar as vacinas tecnicamente?" E a celebração do inquilino do Planalto — "Mais uma vez Jair Bolsonaro ganha" — faz surgir uma segunda interrogação: O que ganha o presidente com eventuais embaraços ao desenvolvimento de uma vacina num país em que o vírus já produziu mais de 162 mil cadáveres? Morre um dos milhares de voluntários que se ofereceram participar dos testes da vacina, o que nada a ver com a vacina (foi suicídio), mas Bolsonaro decreta antecipadamente que o imunizante mata e aleija... Parece suspeito... ou não?
Em política, quase tudo é permitido, exceto deixar-se surpreender. E ninguém pode alegar surpresa com o comportamento de Bolsonaro, que é do tipo de político que, se for passear num bosque com lindas árvores, não enxergará nada além de lenha para a fogueira. Resta perguntar: O que ganha o presidente com sua obsessão em transformar qualquer assunto, inclusive a pandemia, em trampolim para a reeleição?
É mais fácil constatar o que perde o país. Com sua celebração, Bolsonaro avacalhou a Anvisa, desrespeitou a família do morto, escarneceu da expectativa dos brasileiros que anseiam por vacinas e, de quebra, rebaixou a Presidência da República. É uma pena não existir vacina contra bolsonarices.
Estamos a menos de uma semana das eleições municipais. Notícias como essas deveriam alertar a população para a importância de votar com consciência (falar em sabedoria, diante nível sociocultural da récua de muares que compõe o eleitorado, seria insanidade). Não se nega que o elenco de postulantes à prefeitura de São Paulo não contribui para uma escolha sensata, e os candidatos a vereador, então... basta ouvir cinco minutos da propaganda política obrigatória para um cidadão minimamente racional se debulhar em lágrimas, vomitar, enforcar-se ou fazer tudo isso ao mesmo tempo.
Com Josias de Souza.