Circula pelas redes sociais que o médico chinês Hu Weifeng morreu em decorrência de complicações causadas pela Coronavac — o imunizante chamado de “vacina chinesa do Doria” pela récua de muares que seguem a cartilha de Bolsonaro.
A notícia é tão falsa quanto as promessas de campanha do capitão — ou seu pedido de desculpas aos maranhenses pela piadinha sem graça com o Guaraná Jesus. Primeiro, porque a cronologia não bate: Weifeng foi diagnosticado com Covid-19 em janeiro e morreu em junho; portanto, foi infectado no início da pandemia; portanto, não era qualificado para ser voluntário da Sinovac. Segundo, porque os testes da vacina em humanos começaram em abril, apenas com voluntários saudáveis. Na época, Hu estava internado.
Em junho, quando o Instituto Butantan e o governo de
São Paulo firmaram parceria para testar a droga, os
voluntários selecionados eram profissionais da saúde que não tinham sido
infectados pelo vírus. Foi somente em setembro — quando ampliou a
testagem da Coronavac no Brasil — que o Butantan deixou de realizar a triagem para a verificação de infecção
prévia.
A postagem compartilhada no Facebook afirma ainda que
a vacina chinesa foi responsável por deixar a pele de Weifeng escura
e com bolhas. O médico realmente apresentou tais sintomas, mas isso nada teve
que ver com a vacina. Ademais, o também médico chinês Yi Fan apresentou o mesmo sintoma, mas se recuperou e
teve alta após passar 39 dia internado (essa informação também foi verificada
pelo Aos Fatos).
O Brasil precisa de muita coisa. A começar por vergonha na cara, políticos sérios e eleitores que diferenciem urna eleitoral de vaso sanitário.
Ajudaria ter um um presidente que descesse do palanque e governasse
o país. Que focasse o hoje e deixasse a politização e a partidarização para
2022. Que se inspirasse em Lincoln e não em Trump, e que deixasse
de envergonhar a nação com sua estúpida polêmica sobre a “vacina chinesa do
Doria”, quando o que realmente importa não é a cor ou o país de origem, mas
a eficácia e a segurança do imunizante.
Bolsonaro, o multifacetado versátil, descortina para seu público mais uma de suas “insuspeitas e espantosas capacidades”: a de voltar no tempo. E não estou falando (mas falarei oportunamente) da ideia estapafúrdia de restabelecer o uso do voto impresso já a partir de 2022.
Em 1904, o Rio de Janeiro viveu dias de baderna no episódio
conhecido como Revolta da Vacina, quando a população se rebelou contra a Lei da Vacinação Obrigatória.
O personagem central desse furdunço foi o médico sanitarista Oswaldo Cruz,
que determinou, com o apoio do governo, a vacinação compulsória contra a
varíola.
Contra um vírus letal e altamente contagioso como o Sars-CoV-2,
o melhor remédio é ser pragmático e apostar em todas as vacinas que possam vir
a surgir, não importa de onde venham, desde que sejam comprovadamente eficazes.
A rigor, elas ainda não existem, mas vários imunizantes estão no último estágio
de testes (fase 3), sendo possível que até janeiro ao menos um deles esteja
disponível.
Ao realizar acordos de compras iniciais das duas vacinas que
estão sendo testadas no Brasil, o governo pareceu que seguiria o caminho
correto. Antes de contrair a Covid-19, o ministro-general Eduardo
Pazuello anunciou um acordo para a aquisição da Coronavac, que
chamou de “a vacina do Brasil”. Só que não: No dia seguinte, após obter
sua dose diária de inspiração política das mídias sociais de seus apoiadores,
Bolsonaro anulou
o que seu ministro fizera, humilhando-o publicamente. Sob pressão de seus
seguidores nas redes sociais, disse que “a vacina chinesa do Doria” não
seria comprada.
Propagandista da hidroxicloroquina, sabidamente ineficaz
contra a Covid-19, o capitão sem luz bradou “traição” porque Pazuello
mostrou-se aberto à vacina cuja produção foi negociada pelo governador paulista
João Doria, concorrente certo à Presidência em 2020 — à qual ele se
refere como “vacina chinesa do Dória”, da mesma forma que para Donald
Trump, seu ídolo, o Sars-CoV-2 é o “vírus chinês”. Dias atrás,
o embate foi em torno do aumento de impostos. Bolsonaro
acusou Doria de aumentar impostos e o governador paulista o chamou de
"desinformado. “Deixe a eleição de 2022 para outro momento,
presidente”, provocou o tucano. “Não vamos misturar ciência com
política, saúde com ideologia”.
Doria, manobrando politicamente, anunciou a vacina
para dezembro, fato que o colocaria como pioneiro nacional na introdução de um
imunizante contra a Covid-19 no país. Bolsonaro não quer deixar
nenhum espaço político ao desafeto, a quem rivaliza por ser seu mais sério
competidor no campo da direita. O tucano usa a vacina como trunfo político,
enquanto tenta montar uma aliança partidária forte que reúna a centro-direita,
a partir do DEM, embora a estratégia possa esbarrar com mais obstáculos
em seu próprio partido, o PSDB. Já Bolsonaro reúne parte do Centrão
para proteger seu mandato e como trampolim para a reeleição. Não se deve
esperar qualquer atitude de estadista de um presidente como esse diante da Covid-19.
Bolsonaro jamais reconheceu a calamidade pública que
o contágio representava e foi parco em palavras de apoio às vítimas. Condenou o
uso de máscaras e o distanciamento social. No auge da crise, referiu-se a ele como
“gripezinha”
e “resfriadinho de nada”. Disse que a crise estava “superdimensionada”,
que “é muito mais fantasia” e que “outras gripes mataram mais”. Chutou
porta afora do Ministério da Saúde dois ministros formados em medicina para nomear
um general que nada entende do assunto, apenas porque queria alguém que lhe
lambesse as botas.. Sua primeira reação à perspectiva de haver uma vacina em
breve, anunciada por Doria, foi imediata: disse que não será
obrigatória.
Na semana passada, após um ensaio de aproximação entre Doria
e o governo federal sobre a Coronavac — desenvolvida pela SinoVac
e testada pelo Instituto Butantan —, o capitão-cloroquina disse que não
negociaria temas envolvendo a Covid-19, e que o governo federal não
adotará tal imunizante. O cientista político Murillo de Aragão compara
essa postura à de Lenin, quando disse: “o que ajuda meu adversário me
fere, e vice-versa.” Mas o presidente deveria ter pensado, também como Lenin,
que para fazer a Revolução Comunista era preciso “ficar amigo dos
inimigos”, isto é, dos banqueiros e milionários que financiaram o movimento
na Rússia. Ambiguidade e pragmatismo devem ser muito bem pesados em política.
Para Bolsonaro uma vacina é até algo secundário, pois
nunca viu nada na pandemia que impedisse as pessoas de trabalhar, como instou
várias vezes. Sua maior preocupação agora é impedir que ela beneficie
concorrentes. Doria vislumbra um grande potencial eleitoral em quem sair
na frente na corrida pela imunização. A disputa política sobre o assunto é
irresponsável e mesquinha. Para a população, importa mais aniquilar a Covid-19
do que cálculos políticos matreiros.
Ao se afastar de Doria na questão da vacina, Bolsonaro toma um lado.
Como de costume, o lado errado.