segunda-feira, 9 de novembro de 2020

DESDE QUE CACE O RATO, POUCO IMPORTA A COR DO GATO.

Circula pelas redes sociais que o médico chinês Hu Weifeng morreu em decorrência de complicações causadas pela Coronavac — o imunizante chamado de “vacina chinesa do Doria” pela récua de muares que seguem a cartilha de Bolsonaro.

A notícia é tão falsa quanto as promessas de campanha do capitão — ou seu pedido de desculpas aos maranhenses pela piadinha sem graça com o Guaraná Jesus. Primeiro, porque a cronologia não bate: Weifeng foi diagnosticado com Covid-19 em janeiro e morreu em junho; portanto, foi infectado no início da pandemia; portanto, não era qualificado para ser voluntário da Sinovac. Segundo, porque os testes da vacina em humanos começaram em abril, apenas com voluntários saudáveis. Na época, Hu estava internado.

Em junho, quando o Instituto Butantan e o governo de São Paulo firmaram parceria para testar a droga, os voluntários selecionados eram profissionais da saúde que não tinham sido infectados pelo vírus. Foi somente em setembro — quando ampliou a testagem da Coronavac no Brasil — que o Butantan deixou de realizar a triagem para a verificação de infecção prévia

A postagem compartilhada no Facebook afirma ainda que a vacina chinesa foi responsável por deixar a pele de Weifeng escura e com bolhas. O médico realmente apresentou tais sintomas, mas isso nada teve que ver com a vacina. Ademais, o também médico chinês Yi Fan apresentou o mesmo sintoma, mas se recuperou e teve alta após passar 39 dia internado (essa informação também foi verificada pelo Aos Fatos).

O Brasil precisa de muita coisa. A começar por vergonha na cara, políticos sérios e eleitores que diferenciem urna eleitoral de vaso sanitário. 

Ajudaria ter um um presidente que descesse do palanque e governasse o país. Que focasse o hoje e deixasse a politização e a partidarização para 2022. Que se inspirasse em Lincoln e não em Trump, e que deixasse de envergonhar a nação com sua estúpida polêmica sobre a “vacina chinesa do Doria”, quando o que realmente importa não é a cor ou o país de origem, mas a eficácia e a segurança do imunizante.

Bolsonaro, o multifacetado versátil, descortina para seu público mais uma de suas “insuspeitas e espantosas capacidades”: a de voltar no tempo. E não estou falando (mas falarei oportunamente) da ideia estapafúrdia de restabelecer o uso do voto impresso já a partir de 2022. 

Em 1904, o Rio de Janeiro viveu dias de baderna no episódio conhecido como Revolta da Vacina, quando a população se rebelou contra a Lei da Vacinação Obrigatória. O personagem central desse furdunço foi o médico sanitarista Oswaldo Cruz, que determinou, com o apoio do governo, a vacinação compulsória contra a varíola. 

Contra um vírus letal e altamente contagioso como o Sars-CoV-2, o melhor remédio é ser pragmático e apostar em todas as vacinas que possam vir a surgir, não importa de onde venham, desde que sejam comprovadamente eficazes. A rigor, elas ainda não existem, mas vários imunizantes estão no último estágio de testes (fase 3), sendo possível que até janeiro ao menos um deles esteja disponível.

Ao realizar acordos de compras iniciais das duas vacinas que estão sendo testadas no Brasil, o governo pareceu que seguiria o caminho correto. Antes de contrair a Covid-19, o ministro-general Eduardo Pazuello anunciou um acordo para a aquisição da Coronavac, que chamou de “a vacina do Brasil”. Só que não: No dia seguinte, após obter sua dose diária de inspiração política das mídias sociais de seus apoiadores, Bolsonaro anulou o que seu ministro fizera, humilhando-o publicamente. Sob pressão de seus seguidores nas redes sociais, disse que “a vacina chinesa do Doria” não seria comprada.

Propagandista da hidroxicloroquina, sabidamente ineficaz contra a Covid-19, o capitão sem luz bradou “traição” porque Pazuello mostrou-se aberto à vacina cuja produção foi negociada pelo governador paulista João Doria, concorrente certo à Presidência em 2020 — à qual ele se refere como “vacina chinesa do Dória”, da mesma forma que para Donald Trump, seu ídolo, o Sars-CoV-2 é o “vírus chinês”. Dias atrás, o embate foi em torno do aumento de impostos. Bolsonaro acusou Doria de aumentar impostos e o governador paulista o chamou de "desinformado. “Deixe a eleição de 2022 para outro momento, presidente”, provocou o tucano. “Não vamos misturar ciência com política, saúde com ideologia”.

Doria, manobrando politicamente, anunciou a vacina para dezembro, fato que o colocaria como pioneiro nacional na introdução de um imunizante contra a Covid-19 no país. Bolsonaro não quer deixar nenhum espaço político ao desafeto, a quem rivaliza por ser seu mais sério competidor no campo da direita. O tucano usa a vacina como trunfo político, enquanto tenta montar uma aliança partidária forte que reúna a centro-direita, a partir do DEM, embora a estratégia possa esbarrar com mais obstáculos em seu próprio partido, o PSDB. Já Bolsonaro reúne parte do Centrão para proteger seu mandato e como trampolim para a reeleição. Não se deve esperar qualquer atitude de estadista de um presidente como esse diante da Covid-19.

Bolsonaro jamais reconheceu a calamidade pública que o contágio representava e foi parco em palavras de apoio às vítimas. Condenou o uso de máscaras e o distanciamento social. No auge da crise, referiu-se a ele como “gripezinha” e “resfriadinho de nada”. Disse que a crise estava “superdimensionada”, que “é muito mais fantasia” e que “outras gripes mataram mais”. Chutou porta afora do Ministério da Saúde dois ministros formados em medicina para nomear um general que nada entende do assunto, apenas porque queria alguém que lhe lambesse as botas.. Sua primeira reação à perspectiva de haver uma vacina em breve, anunciada por Doria, foi imediata: disse que não será obrigatória.

Na semana passada, após um ensaio de aproximação entre Doria e o governo federal sobre a Coronavac — desenvolvida pela SinoVac e testada pelo Instituto Butantan —, o capitão-cloroquina disse que não negociaria temas envolvendo a Covid-19, e que o governo federal não adotará tal imunizante. O cientista político Murillo de Aragão compara essa postura à de Lenin, quando disse: “o que ajuda meu adversário me fere, e vice-versa.” Mas o presidente deveria ter pensado, também como Lenin, que para fazer a Revolução Comunista era preciso “ficar amigo dos inimigos”, isto é, dos banqueiros e milionários que financiaram o movimento na Rússia. Ambiguidade e pragmatismo devem ser muito bem pesados em política.

Para Bolsonaro uma vacina é até algo secundário, pois nunca viu nada na pandemia que impedisse as pessoas de trabalhar, como instou várias vezes. Sua maior preocupação agora é impedir que ela beneficie concorrentes. Doria vislumbra um grande potencial eleitoral em quem sair na frente na corrida pela imunização. A disputa política sobre o assunto é irresponsável e mesquinha. Para a população, importa mais aniquilar a Covid-19 do que cálculos políticos matreiros.  

Ao se afastar de Doria na questão da vacina, Bolsonaro toma um lado. 

Como de costume, o lado errado.