sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O LOBO PERDE O PELO MAS NÃO LARGA O VÍCIO

 


Desde que iniciou o mandato de senador, Flávio Bolsonaro viajou para Israel, onde acompanhou uma partida de futebol de veteranos chamado Shalom Game, que contou com jogadores brasileiros como Ronaldinho Gaúcho e Rivaldo, e esteve em Las Vegas e Miami, onde sua agenda envolveu "visitas técnicas" a um hotel-cassino, arena de música e um estádio de futebol em construção. Segundo o colunista Rubens Valente, do Uol, a viagem aos EUA custou aos cofres públicos R$ 12,5 mil em diárias (mais R$ 31,4 mil, correspondente às diárias do senador Irajá Abreu, do deputado federal Helio Lopes e de um segurança parlamentar, que o acompanharam no folguedo).

Na manhã da quinta-feira, antevéspera do fim de semana prolongado pelo feriado de finados, o primogênito do capitão desembarcou no arquipélago de Fernando de Noronha com a mulher, Fernanda Antunes. Na ida, o senador usou um trecho bancado com recursos públicos para se deslocar de Brasília para Recife, onde pernoitou. O uso de dinheiro da chamada cota parlamentar para comprar passagens aéreas só é permitido quando o deslocamento é a trabalho, o que não era o caso. Depois que a imprensa noticiou o caso, o senador falou em "equívoco" e prometeu devolver os R$ 1.617,66. A informação foi confirmada pelo Senado Federal.

Observação: Não havia registro de ressarcimento das passagens usadas pela mulher, Fernanda. A assessoria do senador informou que não havia compromissos do mandato previstos para Flávio na ilha durante o feriado, mas não soube dizer se ele havia realmente utilizado os bilhetes emitidos.

No ano passado, o Estado denunciou manobras da presidência do Senado — que vinham desde a gestão de Renan Calheiros — para manter os gastos dos parlamentares sob sigilo, alegando questões de segurança. O próprio Zero Um usou um parecer de 2016, produzido na gestão Renan Calheiros, para negar acesso a dados que o jornal solicitou via Lei de Acesso à Informação.

Aliás, Flávio, Queiroz e outras 15 pessoas — entre elas as esposas do senador e de seu ex-assessor, além de duas filhas de Queiroz — foram denunciados à Justiça pelos crimes de organização criminosa, lavagem de dinheiro, apropriação indébita e peculato. Segundo o portal UOL, a acusação foi entregue pelo MP-RJ ao TJ-RJ. A denúncia havia sido encaminhada no dia 19 de outubro, mas o desembargador que deveria relatar o caso estava de férias, e o sistema só redistribuiu o processo na última terça-feira. Ao assumir a relatoria do processo, o magistrado decretou sigilo, daí a promotoria não ter divulgado mais detalhes. Através de nota, Flávio Bolsonaro disse que o MP não tem provas e que a denúncia não passa de uma "crônica macabra".

A investigação apontou que Queiroz recebeu R$ 2 milhões em depósitos de 11 ex-assessores do gabinete do então deputado na Alerj e sacava os recursos logo em seguida. O MP-RJ afirma haver indícios de que toda essa arrecadação teve como destino gastos pessoais do filho do presidente — como pagamento de escolas dos filhos e o plano de saúde da família, que foram pagos, na maioria das vezes, com dinheiro vivo e somaram mais de R$ 280 mil entre 2013 e 2018. Há também indícios de que o senador utilizou a loja de chocolates de que era sócio para lavar até R$ 1,6 milhão por meio de depósitos em dinheiro vivo, além da compra e venda de dois apartamentos, entre 2012 e 2014 — pelos quais Flávio e Fernanda pagaram R$ 638 mil em espécie, “por fora”, ao vendedor dos imóveis. O negócio rendeu, segundo registros em cartório, um lucro de R$ 813 mil em menos de dois anos, como revelou a Folha em janeiro de 2018.

A propósito do indiciamento, assim se manifestaram alguns órgãos de imprensa internacionais:

— O Financial Times classificou o caso como um “constrangimento” para a imagem de Jair Bolsonaro.

— A Bloomberg qualificou a denúncia como “mais uma dor de cabeça jurídica” para o presidente brasileiro, que se elegeu com uma “forte plataforma anticorrupção em 2018”.

— O jornal The Guardian diz que a reputação de “forasteiro da política e cruzadista anticorrupção que tiraria o Brasil da lama" sustentada por Jair Bolsonaro tem se desfeito em decorrência das suspeitas envolvendo não apenas o filho Flávio Bolsonaro, mas também os irmãos Carlos e Eduardo. Para o Wall Street Journal, “o caso aumentou a tensão política no Brasil, colocando a família Bolsonaro contra o Judiciário e a mídia”.

Segundo Josias de Souza, a estratégia da defesa reforça a impressão de que Flávio tornou-se um denunciado indefeso. Ao enumerar os supostos defeitos da denúncia, a nota da diz coisas definitivas sem definir muito bem as coisas. Fala em "vícios processuais", "erros de narrativa e matemáticos". Alega que não há "qualquer indício de prova." O filho do capitão se declara inocente desde que as suspeitas de desvio de verbas da folha de seu gabinete vieram à luz, no final de 2018. Num segundo momento, aderiu a uma retórica petista ao dizer que não sabia de tudo que seu então assessor fazia no gabinete. E insinuou que o Ministério Público faz perseguição política, usando-o como degrau para chegar ao pai-presidente.

Agora, alega-se que a denúncia do Ministério Público não fica em pé. O curioso é que os advogados do senador — tanto os atuais e quanto o anterior — sempre se esforçaram para criar incidentes processuais. Tentaram bloquear as investigações uma dezena de vezes. Conseguiram apenas deslocar o caso da primeira instância para o foro especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Exigiram segredo absoluto em torno do processo. Mas o sigilo faz do indiciado um inocente sui generis, que se recusa a levar à vitrine a denúncia cuja suposta fragilidade comprovaria sua inocência.

Mas ainda tem mais: Luiza Souza Paes, ex-assessora do gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro admitiu em depoimento o esquema das “rachadinhas”. As informações foram reveladas pelo jornal O Globo, que obteve o depoimento em que a ex-servidora informou ao MP-RJ que nunca atuou como servidora para Flávio e que era obrigada a devolver mais de 90% dos vencimentos. Além do salário, ela tinha que devolver 13º, férias e vale-alimentação.

Segundo o jornal, o primeiro salário bruto de Luiza foi de R$ 4.966,45, quando estava lotada no gabinete de Flávio, e o último foi de R$ 5.264,44, quando estava na TV Alerj. Ela disse aos investigadores que repassou cerca de R$ 160 mil a Queiroz por meio de depósitos e entrega de dinheiro em espécie, e que sabia de outras pessoas que também atuavam da mesma maneira — não trabalhavam e devolviam os salários.

Os 25 desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio vão analisar a acusação decidir se aceitam ou não a denúncia. Se aceitarem, Flávio e os demais envolvidos se tornarão réus. Vale lembrar que, em junho, pouco depois da prisão de Queiroz, o senador conseguiu na 3ª Câmara Criminal do TJ-RJ o direito ao foro privilegiado no caso das rachadinhas, retirando o processo das mãos do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal. A alegação é que ele era deputado estadual na época em que ocorreram os fatos, tendo exercido a função até assumir o cargo de senador, no começo do ano passado.

A Promotoria ainda tenta reverter a decisão e devolver a avaliação da acusação ao juiz da 27ª Vara Criminal. O STF não tem previsão para analisar o recurso.