segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O VATICÍNIO E O ORÁCULO


Enquanto rabisco estas linhas, caminha para o final a tarde deste domingo, 15, quando se comemora o 131º aniversário da Proclamação da República — o primeiro dos muitos golpes de estado que se sucederiam a partir de então (antes que alguém pergunte, não, eu não sou monarquista). Por enquanto, as urnas vestem a beca do vaticínio (no sentido de profecia, exercício de futurologia), mas devem substituí-la pela toga do oráculo (no sentido de resposta dada por uma “divindade” a uma pergunta envolvendo o que ainda está por vir) lá pelas nove da noite, considerando que a votação termina às cinco da tarde e a apuração costuma levar de 3 a 4 horas. 

A menos que o imprevisto tenha voto decisivo nessa assembleia desses acontecimentos, saberemos ainda hoje quem prefeitará os 5.447 municípios tupiniquins que têm menos 200 mil eleitores e, por isso, estão livres do abominável segundo turno — que não só inferniza como demanda rios de dinheiro nas demais 95 (neste ano são 95, pois a “festa da democracia” foi suspensa em Macapá, por força de um apagão que já dura mais de dez dias).

Observação: Nos municípios onde não há segundo turno, o candidato a prefeito mais votado leva; naqueles que têm mais de 200 mil eleitores, vence quem obtiver mais de 50% dos votos válidos; se ninguém alcançar esse quórum, os dois candidatos mais votados voltarão ao picadeiro no próximo dia 29, quando o cirquinho eleitoral será armado novamente para sagrar vencedor aquele que obtiver mais votos. Na improvável hipótese de haver empate, antiguidade é posto, ou seja, o candidato mais velho (cronologicamente falando) é declarado vencedor.

Em termos de celeridade, é nítida a vantagem da urna eletrônica sobre o anacrônico voto manual. Basta lembrar quanto tempo os americanos levaram para concluir a contagem dos votos e declarar a vitória a Joe Biden sobre o palhaço da peruca alaranjada. Mas convém ter em mente que os EUA, como o próprio nome sugere, é uma federação composta por 50 estados “autônomos” e a capital, Washington D.C., e que cada qual tem legislação própria e normas específicas para regular o processo eleitoral. Apenas Louisiana, Geórgia, Carolina do Sul, Nova Jersey e Delaware usam urnas eletrônicas.

Observação: Ao contrário do que a homonímia sugere, a capital americana não se localiza no estado de Washington, mas entre os estados de Maryland e Virgínia. “District of Columbia” é um apelido antigo dos EUA, inspirado no nome do descobridor da América. Na prática, o status de “distrito” designa a mesma coisa que no resto do mundo: uma unidade administrativa do mesmo nível de um estado, só que sem representantes no Congresso.

ATUALIZAÇÃO (segunda-feira, 16, 05h57)

Se algo ficou claro neste primeiro turno foi que a novidade no processo de totalização dos votos, que passou a ser concentrado no data center do TSE em vez de ser feito pelos tribunais regionais eleitorais, como era até 2018, deu péssimos resultados. No sábado, o secretário de tecnologia da informação do TSE havia dito que a mudança traria vantagens em "economicidade, segurança, gerenciamento e agilidade". A mim me pareceu que o ataque DDoS desfechado na manhã d ontem não comprovou a força dessa "muralha"

Aliás, só sabemos quão seguras são as nossas muralhas quando um inimigo tenta transpô-las. Oxalá o episódio inspire os responsáveis a determinar medidas corretivas cabíveis, já que o Circo Marimbondo será montado de novo daqui a dois domingos.

 Quanto ao gerenciamento... sei não. Mas a agilidade, nossa! Mais um pouco e superávamos a morosidade da apuração dos votos nos EUA.

Enfim, essa eleição conturbada e esvaziada (não sei se mais pela Covid-19 ou pelo desencanto do eleitorado com a patetice dos candidatos, a obrigatoriedade do voto e a encheção de saco das promessas vazias dos políticos) resultou numa fragorosa derrota do bolsonarismo em toda sua falta de esplendor, na prática e nas urnas. Em que pesem o engajamento e as lives mequetrefes diárias para promover seus preferidos, o que o Mito que não miracula  conseguiu na verdade foi secar as chances da maioria de seus apadrinhados. 

Em São Paulo, promotor recorrente de fake news (tal qual o padrinho) derreteu como gelo no deserto. Mas eram favas contadas: Russomano apenas reproduziu em 2020 o desempenho de cavalo paraguaio que o notabilizou em 2012 e 2016. Da próxima vez ele vai usar como bordão de campanha "TÁ RUSSO, MANO",

No Rio, o papa-dízimo licenciado bispo Crivella claudicou até o segundo turno, mas não haverá festas, rapapés e sessões de descarrego de Messias capazes de reelegê-lo. Seu papel nessa comédia só não foi pior porque teria de piorar muito para superar o do restante do elenco. Inclusive o de Eduardo Paes, com um plantel de investigações de amedrontar líder de quadrilha.

Por outro lado, considerando que temos um criminoso duplamente condenado (em três instâncias, diga-se) palpitando nas eleições e cagando regras de procedimento a seus vassalos do partido dos trabalhadores que não trabalham, e, no Planalto, um dublê de protagonista do Blockbuster "Meu passado me condena" e de musa inspiradora do "poema enjoadinho" de Vinicius - aquele que começa com "Filhos, melhor não tê-los"...

Enfim, bola pra frente.

Segundo as últimas pesquisas, em treze capitais brasileiras os atuais prefeitos disputam a reeleição. Alexandre Kalil, em BH, é que abocanha a maior fatia das intenções de voto. No Rio, Marcelo Crivella, sobrinho do papa (dízimo) da Igreja Universal, está mais enrolado com a Justiça que fumo de corda em balcão de empório e disputa com a petista Benedita da Silva uma vaga no segundo turno. Com um índice de rejeição superior a 50% de rejeição, nem um milagre do titio Edir Macedo o faria derrotar Eduardo Paes. Previsões confirmadas.

Em São Paulo, Bruno Covas lidera com 38% das intenções de voto, mas nada sugere (infelizmente) que o tucano liquide a fatura neste domingo. Disputam uma vaga num eventual segundo turno Guilherme BoulosMárcio França e Celso Russomano. O afilhado do capitão-conversinha é o campeão em rejeição, sendo por isso o adversário ideal para Covas enfrentar e derrotar no dia 29. Já a rejeição de Boulos é de 24% e a de França, de 17%. Deu Covas e Boulos no segundo turno.

O criminoso Lula, cujo apoio à campanha do Jilmar Tato produziu o efeito de uma âncora de meia tonelada num barquinho de 50 quilos, disse que o PT sairá fortalecido das urnas (pausa para as gargalhadas). Deu o previsto: Tatto afundou qual martelo sem cabo.

Para concluir: 

Atribui-se à votação eletrônica uma aura de “inviolabilidade”. Afinal, se as urnas não estão conectadas à Internet, não são passíveis invasão/manipulação por “hackers”. Mas há quem questione a falta de transparência do TSE a impossibilidade de recontar os votos de forma manual. 

Segundo a Justiça eleitoral, as urnas gravam os votos nelas registrados por meio de um registro digital — uma planilha que armazena os votos exatamente como eles foram digitados, e que é usado ao final da votação, para gerar o boletim de urna. Visando garantir o sigilo, esse registro é feito de forma aleatória (se fosse sequencial, ele poderia levar a uma checagem por título de eleitor). Assim, é possível saber a quantidade exata de cada candidato/legenda sem indicar de quem veio cada voto.

Em qualquer guerra, a primeira vítima costuma ser a verdade. E o mesmo raciocínio se aplica quando esse discurso técnico se mistura a suspeitas lançadas por políticos.

O voto eletrônico tem dois momentos distintos: a apuração dos votos, que ocorre em cada urna, e a transmissão dos dados para o sistema de totalização no TSE. Na totalização, a fiscalização é possível; na apuração individual das urnas, o buraco é mais embaixo.

Alguém com acesso privilegiado ao sistema de urnas poderia, por exemplo, alterar 120 cartões de memória, o que afetaria 6 mil urnas (ou 1% do total de votos). Claro que isso exigiria a cooptação de funcionários com acesso privilegiado, de desenvolvedores a técnicos que instalam as urnas. Mas num país onde a corrupção campeia solta, começando pela família real... 

Enfim, ninguém disse que seria fácil, apenas que não é impossível. Uma matéria publicada na Folha Política em 2014 dá conta de que um hacker de nome Rangel (supostamente vivendo sob proteção policial) dizia ter fraudado o resultado das eleições de 2012 para beneficiar candidatos da Região dos Lagos e que não precisou invadir uma urna sequer: bastou-lhe obter acesso à intranet (rede interna) da Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro

Num trabalho sobre o voto eletrônico, Antonio Pedro Dourado Rezende, do Departamento de Computação da Universidade de Brasília, afirma que a urna eletrônica é confiável na medida em que uma máquina pode ser confiável. Se entra software honesto, sai eleição limpa; se entra software desonesto, sai eleição fraudada”.

A quem interessar possa, o livro FRAUDES E DEFESAS NO VOTO ELETRÔNICO (escrita pelo especialista em segurança de dados de computador Amílcar Brunazo Filho em coautoria com a advogada e procuradora de partidos políticos Maria Aparecida Cortiz) explica detalhadamente como funcionam o voto de cabresto, a compra de votos, a clonagem e adulteração de programas, o engravidamento de urnas e muito mais. 

A obra foi lançada em 2006 e muita água rolou por baixo da ponte desde então, mas continua valendo a leitura (clique aqui para mais informações e aqui para baixar um arquivo .PDF com o texto completo).