"Donald Trump nunca pareceu mais insensato, desequilibrado, ao ter de encarar a derrota. No dia 5, com Biden prestes a rever suas vantagens iniciais na Geórgia e na Pensilvânia, Trump deu uma entrevista coletiva na qual apresentou uma série de teorias da conspiração sobre a apuração dos votos, um tanto prejudicada por sua incapacidade de compreendê-la. Ele acusou os perniciosos democratas de roubar-lhe a vitória na Geórgia, embora os republicanos estivessem à frente no estado. Ele declarou que os votos pelo correio da Pensilvânia eram ilegítimos, mas – graças a uma decisão da legislatura republicana do mesmo Estado – estavam apenas sendo computados depois do dia da eleição e não antes dela", registrou a publicação britânica The Economist, em editorial celebrando a derrota de Donald Trump.
Bolsonaro fez uma ‘live surpresa’ na noite de sábado, horas depois do anúncio da vitória de Biden, mas não deu um pio sobre eleição americana. Ao lado da Coronel Fernanda, candidata ao Senado em Mato Grosso, pediu que seus apoiadores não desperdicem o voto nas eleições para prefeito e vereador:
“É um apelo que eu faço a vocês. Votem. O pior voto é aquele que é neutro, que é nulo, que é branco, faz uma gracinha e não quer votar em ninguém. O voto é muito importante. E vocês estão vendo as questões no mundo, como está a política no mundo. Cada um tem sua opinião, vocês têm que discutir. Tem que ver a América do Sul, vários países estão sendo pintados novamente de vermelho.”
Bolsonaro não gosta de ler. Mas deveria desperdiçar
um naco do seu domingo lendo o discurso da vitória pronunciado por Biden
na noite de sábado. É um discurso curto. Pode-se atravessá-lo em 15 minutos. A
leitura seria mais proveitosa se o capitão prestasse atenção a trechos como o que
vai reproduzido abaixo:
"A Bíblia nos diz que para tudo existe um tempo, um
tempo para construir, um tempo para colher, um tempo para semear. E um tempo
para curar. Esta é a hora de curar na América."
Trocando-se América por Brasil, o discurso poderia ser lido
por Bolsonaro em rede nacional de rádio e tevê. Biden não
esclareceu, mas referia-se a uma passagem do livro de Eclesiastes
(3:1-8). Ensina que há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu. Tempo
de matar e tempo de curar. Tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las.
Tempo de rasgar e tempo de costurar. Tempo de odiar e tempo de amar. Tempo de
lutar e tempo de viver em paz.
A exemplo dos Estados Unidos, o Brasil amarga duas
patologias: a Covid e a polarização. Contra a primeira, ainda não há
vacina de eficácia comprovada. O número de mortes declina. Mas o vírus continua
matando. Contra a segunda, há dois velhos imunizantes à disposição: sensatez e
moderação.
"Prometo ser um presidente que não vai dividir, mas
unificar", declarou Biden. "É hora de colocar de lado a retórica
dura, baixar a temperatura, nos vermos novamente, nos ouvirmos novamente e,
para progredir, temos que parar de tratar nossos oponentes como nossos
inimigos. Eles não são nossos inimigos. Eles são americanos."
De novo: substituindo-se "americanos" por
brasileiros, o discurso poderia ser lido num pronunciamento do morubixaba da aldeia em rede nacional. Mas não passa pela cabeça do capitão-cloroquina dizer algo parecido. Sua ascensão à Presidência, assim como a chegada de Trump
à Casa Branca, foi uma consequência direta da polarização. O lógico seria que,
depois de eleito, Bolsonaro virasse um presidente de todos os
brasileiros, inclusive dos que não votaram nele. Mas ele passou a governar para
um terço da população. Trump fazia parecido. E deu no que está dando.
A exemplo de seu ídolo americano, o "mito" coloca na
receita do pudim raiva e desinformação em doses que podem ser letais. Abusa
da sorte. Num instante em que o vírus apresenta a Trump a conta do
negacionismo, Bolsonaro faz política com uma vacina contra o coronavírus.
A melhor hora para mudar é quando a mudança ainda não é
necessária. Trump perdeu a sua hora. Bolsonaro desperdiça o seu
momento desde o dia da posse. É como se desejasse ser engolido pela lógica de
um outro conhecido preceito bíblico. Está no mesmo livro de Eclesiastes, no
capítulo 1, versículo 9. Diz o seguinte:
"O que foi tornará a ser; o que foi feito se fará
novamente; não há nada novo debaixo do Sol."
Ao macaquear Trump a ponto de ser derrotado junto com
ele, Bolsonaro parece convidar o eleitor brasileiro a mimetizar os
americanos que elegeram Biden. O ano de 2022 pode ficar parecido com
2020.
Com Josias de Souza