terça-feira, 10 de novembro de 2020

TRUMP ERA UM EXEMPLO PARA BOLSONARO. BIDEN É UM AVISO


"Donald Trump nunca pareceu mais insensato, desequilibrado, ao ter de encarar a derrota. No dia 5, com Biden prestes a rever suas vantagens iniciais na Geórgia e na Pensilvânia, Trump deu uma entrevista coletiva na qual apresentou uma série de teorias da conspiração sobre a apuração dos votos, um tanto prejudicada por sua incapacidade de compreendê-la. Ele acusou os perniciosos democratas de roubar-lhe a vitória na Geórgia, embora os republicanos estivessem à frente no estado. Ele declarou que os votos pelo correio da Pensilvânia eram ilegítimos, mas – graças a uma decisão da legislatura republicana do mesmo Estado – estavam apenas sendo computados depois do dia da eleição e não antes dela", registrou a publicação britânica The Economist, em editorial celebrando a derrota de Donald Trump. 

Trump voltou a questionar a vitória de Biden, e seus filhos vêm incitando os republicanos eleitos a apoiar os esforços do pai no sentido de desmantelar a credibilidade do sistema eleitoral. No Twitter, o presidente derrotado compartilhou uma declaração do criminalista Jonathan Turley, para quem o país tem história de problemas eleitorais: 

Devemos olhar para os votos. Estamos apenas começando o estágio de tabulação. Devemos examinar essas alegações. Estamos vendo uma série de declarações de que houve fraude eleitoral. Quando você fala de problemas sistêmicos, é sobre como essas cédulas foram autenticadas, porque se houver um problema no sistema de autenticação, isso afetaria seriamente TODA A ELEIÇÃO – e o que me preocupa é que tivemos mais de cem milhões de cédulas de correio em cidades como Filadélfia e Detroit, com uma longa série de problemas eleitorais (para dizer o mínimo).”

Na contramão dos principais líderes do mundo, Bolsonaro ignorou a vitória de Joe Biden. Absteve-se de parabenizar o vitorioso. Não se deu conta de que ignorar é a pior forma de lidar com a ignorância. Natural. A derrota de Donald Trump deixou-o (mais) tonto, e ele se recusa a enxergar duas obviedades: 1) Trump nunca foi um bom exemplo. 2) Biden tornou-se um fabuloso aviso.

Bolsonaro fez uma ‘live surpresa’ na noite de sábado, horas depois do anúncio da vitória de Biden, mas não deu um pio sobre eleição americana. Ao lado da Coronel Fernanda, candidata ao Senado em Mato Grosso, pediu que seus apoiadores não desperdicem o voto nas eleições para prefeito e vereador:

 “É um apelo que eu faço a vocês. Votem. O pior voto é aquele que é neutro, que é nulo, que é branco, faz uma gracinha e não quer votar em ninguém. O voto é muito importante. E vocês estão vendo as questões no mundo, como está a política no mundo. Cada um tem sua opinião, vocês têm que discutir. Tem que ver a América do Sul, vários países estão sendo pintados novamente de vermelho.

Bolsonaro não gosta de ler. Mas deveria desperdiçar um naco do seu domingo lendo o discurso da vitória pronunciado por Biden na noite de sábado. É um discurso curto. Pode-se atravessá-lo em 15 minutos. A leitura seria mais proveitosa se o capitão prestasse atenção a trechos como o que vai reproduzido abaixo:

"A Bíblia nos diz que para tudo existe um tempo, um tempo para construir, um tempo para colher, um tempo para semear. E um tempo para curar. Esta é a hora de curar na América."

Trocando-se América por Brasil, o discurso poderia ser lido por Bolsonaro em rede nacional de rádio e tevê. Biden não esclareceu, mas referia-se a uma passagem do livro de Eclesiastes (3:1-8). Ensina que há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu. Tempo de matar e tempo de curar. Tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las. Tempo de rasgar e tempo de costurar. Tempo de odiar e tempo de amar. Tempo de lutar e tempo de viver em paz.

A exemplo dos Estados Unidos, o Brasil amarga duas patologias: a Covid e a polarização. Contra a primeira, ainda não há vacina de eficácia comprovada. O número de mortes declina. Mas o vírus continua matando. Contra a segunda, há dois velhos imunizantes à disposição: sensatez e moderação.

"Prometo ser um presidente que não vai dividir, mas unificar", declarou Biden. "É hora de colocar de lado a retórica dura, baixar a temperatura, nos vermos novamente, nos ouvirmos novamente e, para progredir, temos que parar de tratar nossos oponentes como nossos inimigos. Eles não são nossos inimigos. Eles são americanos."

De novo: substituindo-se "americanos" por brasileiros, o discurso poderia ser lido num pronunciamento do morubixaba da aldeia em rede nacional. Mas não passa pela cabeça do capitão-cloroquina dizer algo parecido. Sua ascensão à Presidência, assim como a chegada de Trump à Casa Branca, foi uma consequência direta da polarização. O lógico seria que, depois de eleito, Bolsonaro virasse um presidente de todos os brasileiros, inclusive dos que não votaram nele. Mas ele passou a governar para um terço da população. Trump fazia parecido. E deu no que está dando.

A exemplo de seu ídolo americano, o "mito" coloca na receita do pudim raiva e desinformação em doses que podem ser letais. Abusa da sorte. Num instante em que o vírus apresenta a Trump a conta do negacionismo, Bolsonaro faz política com uma vacina contra o coronavírus.

A melhor hora para mudar é quando a mudança ainda não é necessária. Trump perdeu a sua hora. Bolsonaro desperdiça o seu momento desde o dia da posse. É como se desejasse ser engolido pela lógica de um outro conhecido preceito bíblico. Está no mesmo livro de Eclesiastes, no capítulo 1, versículo 9. Diz o seguinte:

"O que foi tornará a ser; o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do Sol."

Ao macaquear Trump a ponto de ser derrotado junto com ele, Bolsonaro parece convidar o eleitor brasileiro a mimetizar os americanos que elegeram Biden. O ano de 2022 pode ficar parecido com 2020.

Com Josias de Souza