Engana-se quem pensa que a democracia nasceu na Grécia, foi refinada em Roma, desapareceu na Idade Média, reemergiu na Itália renascentista e foi reinventada pelos "pais fundadores" dos Estados Unidos. Formas de "democracia primordial" remontam a priscas eras, em variadas regiões e diversas civilizações, e sempre pelo mesmo motivo: Quem governa precisa de ajuda para governar.
Isso foi válido na Atenas do século 5 a.C., nas 13 colônias
americanas do século 18 e nos países europeus durante e depois da Primeira
Guerra Mundial. Mesmo o voto feminino se explica por um estado de necessidade:
se os homens lutavam no front, era preciso que as mulheres ocupassem os postos
de trabalho para salvar a economia. E essa emancipação econômica levou à
emancipação política.
Claro que muitas civilizações optaram pela via autocrática,
onde o poder central não precisava do consentimento dos súditos para nada. Com
aparelhos burocráticos e repressivos mais avançados, era possível governar sem
perder tempo com consultas ou negociações.
Na democracia moderna, a consulta e a deliberação diretas
foram substituídas pela representação política, até por motivos de extensão
geográfica: votamos, elegemos os nossos representantes e são eles que decidem
em nosso nome. E se hoje sentimos que a democracia está em crise, isso se
explica, por um lado, pela participação política mais ampla do que na
democracia primordial; por outro, por essa participação ser também mais
episódica e pouco convincente.
Sentimos que o poder está mais distante e, pior, mais poderoso
— como se o líder, agora auxiliado pela mais avançada burocracia e tecnologia,
já não precisasse de nós para nada. Exatamente como se fosse um autocrata. Isso
gera desconfiança e ressentimento, a mistura explosiva que o populismo explora —
curiosamente, o combustível do populismo político é real, e não ilusório, mesmo
que as soluções populistas sejam ilusórias, e não reais.
Aos olhos da população, a democracia está doente. Em meados
da década de 1990, a maioria estava contente com “a pior forma de
governo, com exceção de todas as outras”, na imortal frase de Churchill.
Hoje, salta aos olhos a insatisfação crescente que reina nos EUA e o clima
semissuicidário que asfixia o Brasil.
Três em cada quatro latino-americanos mostram um entusiasmo
cadavérico pela democracia, e o Brasil serve de garoto-propaganda. As causas
são conhecidas: corrupção, crime e desigualdade não fazem bons democratas.
Não há mais governo em nosso país. Estamos acéfalos. Enquanto
Bolsonaro não governa, sendo apenas um obstáculo ao pouco que a
burocracia de Brasília ainda tenta fazer, o Congresso está paralisado
pelo apego dos atuais presidentes das casas ao poder.
Nosso parlamento é dominado pela disputa entre o ruim, Rodrigo
Maia e Davi Alcolumbre, e o pior, Arthur Lira e Renan
Calheiros. No STF, ficamos reféns da escancarada proteção que alguns
ministros, inclusive o indicado por Bolsonaro, dão à classe
política e ao sistema corrupto que a sustenta. Nada fazemos de relevante para
superar a pior crise dos últimos cem anos e vemos velhos inimigos, como a
inflação, voltarem a preocupar. Enfim, caminhamos como cegos à beira do abismo,
enquanto alguns loucos nos gritam para seguir em frente.
Na verdade, o governo Bolsonaro arrasta-se há dois
anos. Nesse período, tanto o presidente como os líderes do Parlamento só foram
eficientes em duas ações: a primeira foi a aprovação a toque de caixa da
reforma da Previdência; a segunda, que teve o apoio dos nomes de sempre do STF,
foi a destruição da Lava-Jato e do combate à corrupção no país. De
resto, nenhuma política real ou proativa, apenas o caminhar de bêbado empurrado
pelos ventos das circunstâncias. O resultado, assim, só poderia ser sofrível ou
criminoso, como é a condução da saúde pública nesta época de pandemia ou o
domínio político do governo pela cleptocracia do Centrão.
Em meio ao caos e ao descaso, tentamos sobreviver apesar de Bolsonaro.
Um exemplo dessa “Babel” que se tornou o atual governo federal são os
milhões de testes PCR vencidos ou prestes a vencer que serão jogados fora,
enquanto a população necessita deles com urgência. Como cerca de 300 milhões de
reais podem ser desperdiçados? Como um dos principais instrumentos para o
controle da pandemia é esquecido em armazéns do governo justamente por um
suposto especialista em logística, o general do Exército e dublê de
ministro da Saúde Eduardo Pazuello? Será que a política de Bolsonaro
é tão negacionista que deseja simplesmente testar menos para diminuir as
estatísticas? Ou será que o desregramento moral do presidente contaminou os
escalões técnicos do governo, e o Ministério da Saúde prefere contar os mortos
a salvar os vivos?
Caminhamos celeremente para 200 mil mortos. E a política de Bolsonaro
tem sido simplesmente a de lavar as mãos. “E daí?” é o resumo do seu governo. E
daí quem morreu; afinal eram todos “maricas” e não tinham o “histórico de
atleta” do presidente. “O que vocês querem que eu faça?”, como se não estivesse
na Presidência da República com a obrigação de fazer alguma coisa de positivo,
ou, ao menos, pedir desculpas pelos erros e consolar as vítimas. Prefere
mentir, repetir bordões e bancar o Pilatos, como se a população não
soubesse, cada vez mais, qual é sua verdadeira natureza: trata-se apenas de
um autoritário orgulhoso de sua ignorância, com preguiça de governar e pouca
empatia pelo sofrimento alheio, para dizer o mínimo.
Aqueles que estão ao redor do presidente se parecem mais com
ele a cada dia. Cada manifestação do ministro da Economia é uma repetição de
equívocos, informações erradas e ufanismo inconsequente. Num país que realmente
precisa de um Estado menor e mais eficiente, Paulo Guedes não consegue
articular qualquer privatização, qualquer política consistente de reformas,
seja a tributária, tão necessária, ou a administrativa, inevitável.
O governo gastou o capital político dos dois primeiros anos
e agora pretende, sem dinheiro, com a economia no chão, e sem qualquer
articulação, implementar reformas? Não bastasse tudo isso, o projeto liberal de
Guedes, se é que um dia foi crível, enfrenta sua maior oposição
justamente no Palácio do Planalto. Jair Bolsonaro é um sindicalista de
farda e sua ideia de mundo resume-se a um quartel com recrutas lhe engraxando
as botas. Ele acredita num estado grande e desorganizado, pois é disso que sua
família sobrevive.
A preocupação agora não é só com a repetição em 2021 deste
horrível ano de 2020. Quem viveu os anos Sarney e Collor sabe que
o poço é bem mais fundo do que a atual geração acredita. Depois da mediocridade
dos governos Dilma e Temer, quatro anos sem reformas nos estão
levando novamente ao descontrole inflacionário. Quem vai ao supermercado sabe
muito bem disso.
Como suportar o reajuste de aluguel em mais de 20% depois do
massacre econômico causado pela Covid? As famílias não sabem como será
janeiro, se haverá emprego ou será mantido o auxílio emergencial. Só nos falta
enfrentar filas para comprar um pedaço de frango, como nos anos 1980.
A inflação dos alimentos, causada pelo preço das commodities
e a alta cotação do dólar, desgasta a imagem do setor agropecuário aos olhos da
população. Além disso, a política criminosa de Bolsonaro e seu escudeiro
Ricardo “Passa a Boiada” Salles em relação ao meio ambiente está
contaminando a percepção dos governos e consumidores europeus sobre a
importação de produtos agrícolas brasileiros. Com a eleição de Joe Biden,
o mesmo vai acontecer em relação aos americanos. Nenhum país realmente
importante do Ocidente vai querer comprar de um país que destrói a natureza.
O resultado da política de terra arrasada ambiental de Bolsonaro
será nos tornarmos reféns da China. E aqui temos o fechamento fétido da
completa idiotização do atual governo. Em vez de uma política pragmática na
busca dos interesses nacionais no comércio exterior, acabamos nos alinhando
subalternamente a Donald Trump. Não é um alinhamento aos Estados Unidos,
mas sim a uma ideologia cultural canhestra representada pelo agora quase
ex-presidente americano. Enquanto isso vamos criando incidentes diplomáticos
com todo o restante do planeta, especialmente com a China, o único mercado que
vai nos restar, quando Eduardo Bolsonaro resolve falar sobre comércio
exterior, para além do seu conhecimento empírico do ponto correto do hambúrguer
que não fritou na lanchonete que só vendia frango frito.
Assim, orgulhosamente nos tornamos párias internacionais,
como deseja o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, tendo
ainda de ouvir chacotas e ironias de Putin sobre a masculinidade de Jair
Bolsonaro. A esperança de mudança não depende desse governo. Nada de bom
virá dos Bolsonaro, de Rodrigo Maia, Alcolumbre, Arthur
Lira, Renan Calheiros, Toffoli, Gilmar ou Lewandowski.
Se dependermos deles, afundaremos como país, permanecendo presos a esse sistema
político que só produz bandidos, incompetentes, inconsequentes ou aventureiros.
A esperança vem do exterior, com as novas vacinas e com a
eleição de Biden. Quem sabe sem seu paradigma americano nosso presidente
passe a ficar tão desacorçoado e desorientado que deixe de atrapalhar as áreas
técnicas que ainda restam no governo?
A esperança interna está na vontade da população de voltar a
trabalhar e ser feliz em família e com os amigos, o que, graças à resistência
da ciência brasileira a tantos anos de descaso e à excelência da Fiocruz
e do Instituto Butantan, vai acontecer paulatinamente com a vacinação a
partir de janeiro. Enfim, ainda teremos mais dois anos desse desastroso governo,
mas chegará o dia de despacharmos essa excrescência da Presidência da
República, como fizeram os americanos com a deles.
Ninguém sabe como estarão as democracias ocidentais daqui a
25 anos. E, claro, o Brasil não é comparável à Venezuela. Muito menos os EUA.
Mas, se as causas da crise democrática (desigualdade, corrupção, violência,
tribalismo etc.) continuarem a ser ignoradas e confundidas com os seus sintomas
(lideranças populistas que pipoqueiam por aí), ainda olharemos para Trump,
Bolsonaro e tutti quanti como meros aperitivos.
Com Carlos Fernando dos Santos Lima e João Pereira
Coutinho/Gazeta do Povo