“Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em
tempos, pelo mesmo motivo.” A essa famosa máxima, que encerra uma verdade
quase universal, junta-se outra igualmente famosa: “O poder corrompe, o
poder absoluto corrompe absolutamente”. As duas mostram a essência da
natureza humana e o quanto, justamente por isso, é preciso cuidar da
institucionalidade da democracia. O que importa são instituições e não
pessoas, pois o poder não pode jamais tornar-se carne, sob pena de se
tornar injusto.
“Prevaricação, advocacia administrativa, violação de
sigilo funcional, crime de responsabilidade e improbidade administrativa”.
Essa é a lista de crimes e ações administrativas ilegais que o suposto auxílio
da Abin à defesa do senador Flavio “Rachadinha” Bolsonaro pode
acarretar, na opinião da ministra Carmem Lúcia, que mandou que o procurador-geral
Augusto “Vassalo” Aras saísse de sua inércia para investigar o caso.
Observação: Cármen Lúcia é a
relatora de um pedido da Rede Sustentabilidade para investigar o uso da
máquina pública a favor do senador Flávio Bolsonaro.
A gravidade da situação fez com que a palavra “impeachment”
voltasse a circular no Congresso e deu tons mais dramáticos à sucessão da
presidência da Câmara Federal, que é quem dá início a esse tipo de processo. Rodrigo
Maia está sentado sobre uma pilha de pedidos de impeachment contra Bolsonaro,
mas nenhum deles tão grave e consubstanciado quanto este, que o futuro
presidente da Câmara terá de avaliar.
Ao tratar das responsabilidades do chefe do Executivo, a
Constituição dispõe: “O presidente da República, na vigência de seu mandato,
não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”
(art. 86, § 4.º). Essa imunidade — que visa proteger não a pessoa do
presidente e, sim, o exercício da função presidencial — assegura
condições para o exercício do cargo, impedindo a responsabilização de qualquer
ato, por mais grave que seja, não relacionado às funções presidenciais. Por
outro lado, não é nada difícil que o chefe do Executivo pratique uma atividade
ilegal. A título de exemplo, cito a gerentona de araque suas pedaladas
fiscais.
Não são apenas atos de natureza fiscal que podem trazer
problemas jurídicos ao inquilino de turno do Palácio do Planalto. A presença do
diretor-presidente da Abin, delegado Alexandre Ramagem, e do chefe do GSI,
general Augusto Heleno, na reunião para tratar da defesa jurídica de um
filho do presidente é claro indício de uso indevido do aparato público em
benefício particular, o que constitui crime de responsabilidade. E mais
ainda se a agência produziu relatórios informais para os advogados do pimpolho.
Ao levar o caso da rachadinha para dentro do gabinete
presidencial, Bolsonaro pai pode ter pavimentado o próprio
caminho para o inferno. A encrenca começou a se formar em agosto, quando o presidente
promoveu, em seu gabinete, um encontro sobre a rachadinha. Presentes, além do
anfitrião, o general Heleno, o delegado Ramagem e as advogadas Bolsonaro
filho. A realização desse encontro é um fato incontroverso. Os
participantes admitiram sua existência. Na reunião, a defesa do senador expôs a
tese segundo a qual FB sofrera uma devassa fiscal ilegal. Nessa versão,
dados recolhidos à margem da lei nos arquivos da Receita teriam sido despejados
no processo. O que poderia levar ao arquivamento do caso.
Em nota divulgada na ocasião, a Abin afirmou que a
agência "não realizou qualquer ação decorrente [da reunião], por
entender que, dentro das suas atribuições legais, não lhe competia qualquer
providência a respeito do tema". Na semana passada, essa versão subiu
no telhado quando a revista Época revelou a existência de dois
relatórios produzidos no âmbito da agência para orientar a defesa de Zero Um
em seu esforço para anular o inquérito. O papelório foi enviado em setembro ao primogênito
do capetão, que o repassou a suas advogadas.
O general Heleno reiterou o desmentido, mas Luciana
Pires, uma das advogadas do pimpolho, atribuiu os relatórios ao delegado Alexandre
Ramagem — o amigo dos Bolsonaro que dirige a Abin. "Nenhuma
orientação do Ramagem o Flávio seguiu ou me pediu para seguir", disse
a doutora, numa entrevista veiculada nesta semana por Época. A pretexto
de negar o uso das sugestões, a advogada confirmou a existência dos
relatórios que o general Heleno e o delegado Ramagem dizem que a Abin não
produziu.
Com pouca disposição para procurar, o PGR pontuou que “para a abertura de inquérito é preciso haver elementos judiciários". Diferentemente de Aras, a ministra Cármen achou que não se deve ignorar a seriedade do quadro. Daí ela ter mandado o procurador-geral investigar para tentar descobrir tais provas ou demonstrar que a denúncia é inepta.
A julgar pela ferocidade com que Bolsonaro voltou a atacar a imprensa que o imprensa, o inquérito que está por vir não é uma gripezinha. Ao contrário. No início da semana, disse numa entrevista que Fabrício Queiroz, o operador de rachadinhas da primeira-família, "pagava conta minha também. Ele era de confiança". Faltou explicar a origem do dinheiro e definir "confiança".
O relacionamento monetário do clã Bolsonaro com Queiroz
é coisa anterior à chegada do Messias ao Planalto. Enquanto durar o
mandato, como dito, o presidente não pode ser punido por eventuais crimes
cometidos antes da posse. Mas a regra é invertida quando há crimes cometidos no
curso do mandato presidencial. Daí sua preocupação com a “curiosidade” de Cármen
Lúcia sobre os desdobramentos da reunião que ocorreu no gabinete presidencial
em agosto.
Observação: Desde que a
revista Época publicou a entrevista onde a advogada de FB afirma
jamais ter cogitado seguir as orientações do relatório
da Abin, Augusto Heleno e Alexandre Ramagem
declararam guerra aberta à advogada Luciana Pires. Falam
mal dela a quem podem, inclusive ao presidente. Flávio segue defendendo sua
defensora, e não à toa: foi quando ela assumiu sua defesa, com a saída de Frederick
Wassef, que os ventos do TJ-RJ começaram a soprar a seu favor.