terça-feira, 22 de dezembro de 2020

BOLSONAGENS, FOLHAGENS, RAMAGENS E OUTRAS SACANAGENS

 

Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos, pelo mesmo motivo.” A essa famosa máxima, que encerra uma verdade quase universal, junta-se outra igualmente famosa: “O poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”. As duas mostram a essência da natureza humana e o quanto, justamente por isso, é preciso cuidar da institucionalidade da democracia. O que importa são instituições e não pessoas, pois o poder não pode jamais tornar-se carne, sob pena de se tornar injusto.

Prevaricação, advocacia administrativa, violação de sigilo funcional, crime de responsabilidade e improbidade administrativa”. Essa é a lista de crimes e ações administrativas ilegais que o suposto auxílio da Abin à defesa do senador Flavio “Rachadinha” Bolsonaro pode acarretar, na opinião da ministra Carmem Lúcia, que mandou que o procurador-geral Augusto “Vassalo” Aras saísse de sua inércia para investigar o caso.

Observação: Cármen Lúcia é a relatora de um pedido da Rede Sustentabilidade para investigar o uso da máquina pública a favor do senador Flávio Bolsonaro.

Aras, saliente-se, havia considerado “grave” a denúncia da revista Época, confirmada por outros órgãos de imprensa, mas disse que “não havia provas” e, por isso, “não era possível tomar providências”. A propósito, relembro uma lição do detetive Sherlock Holmes: “De uma gota d’água, um lógico pode inferir a possibilidade de um Atlântico ou de um Niágara sem jamais ter visto ou ouvido falar deles”.

A propósito, sugiro reler as considerações que teci nesta postagem, sobre standard probatório, à luz das quais infere-se que as provas necessárias para uma investigação virar uma denúncia não precisam necessariamente ser tão “robustas" quanto as que, em fase processual posterior, venham a embasar a condenação do réu

A gravidade da situação fez com que a palavra “impeachment” voltasse a circular no Congresso e deu tons mais dramáticos à sucessão da presidência da Câmara Federal, que é quem dá início a esse tipo de processo. Rodrigo Maia está sentado sobre uma pilha de pedidos de impeachment contra Bolsonaro, mas nenhum deles tão grave e consubstanciado quanto este, que o futuro presidente da Câmara terá de avaliar.

Ao tratar das responsabilidades do chefe do Executivo, a Constituição dispõe: “O presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções” (art. 86, § 4.º). Essa imunidade — que visa proteger não a pessoa do presidente e, sim, o exercício da função presidencial — assegura condições para o exercício do cargo, impedindo a responsabilização de qualquer ato, por mais grave que seja, não relacionado às funções presidenciais. Por outro lado, não é nada difícil que o chefe do Executivo pratique uma atividade ilegal. A título de exemplo, cito a gerentona de araque suas pedaladas fiscais.

Não são apenas atos de natureza fiscal que podem trazer problemas jurídicos ao inquilino de turno do Palácio do Planalto. A presença do diretor-presidente da Abin, delegado Alexandre Ramagem, e do chefe do GSI, general Augusto Heleno, na reunião para tratar da defesa jurídica de um filho do presidente é claro indício de uso indevido do aparato público em benefício particular, o que constitui crime de responsabilidade. E mais ainda se a agência produziu relatórios informais para os advogados do pimpolho.

Ao levar o caso da rachadinha para dentro do gabinete presidencial, Bolsonaro pai pode ter pavimentado o próprio caminho para o inferno. A encrenca começou a se formar em agosto, quando o presidente promoveu, em seu gabinete, um encontro sobre a rachadinha. Presentes, além do anfitrião, o general Heleno, o delegado Ramagem e as advogadas Bolsonaro filho. A realização desse encontro é um fato incontroverso. Os participantes admitiram sua existência. Na reunião, a defesa do senador expôs a tese segundo a qual FB sofrera uma devassa fiscal ilegal. Nessa versão, dados recolhidos à margem da lei nos arquivos da Receita teriam sido despejados no processo. O que poderia levar ao arquivamento do caso.

Em nota divulgada na ocasião, a Abin afirmou que a agência "não realizou qualquer ação decorrente [da reunião], por entender que, dentro das suas atribuições legais, não lhe competia qualquer providência a respeito do tema". Na semana passada, essa versão subiu no telhado quando a revista Época revelou a existência de dois relatórios produzidos no âmbito da agência para orientar a defesa de Zero Um em seu esforço para anular o inquérito. O papelório foi enviado em setembro ao primogênito do capetão, que o repassou a suas advogadas.

O general Heleno reiterou o desmentido, mas Luciana Pires, uma das advogadas do pimpolho, atribuiu os relatórios ao delegado Alexandre Ramagem — o amigo dos Bolsonaro que dirige a Abin. "Nenhuma orientação do Ramagem o Flávio seguiu ou me pediu para seguir", disse a doutora, numa entrevista veiculada nesta semana por Época. A pretexto de negar o uso das sugestões, a advogada confirmou a existência dos relatórios que o general Heleno e o delegado Ramagem dizem que a Abin não produziu.

Com pouca disposição para procurar, o PGR pontuou que “para a abertura de inquérito é preciso haver elementos judiciários". Diferentemente de Aras, a ministra Cármen achou que não se deve ignorar a seriedade do quadro. Daí ela ter mandado o procurador-geral investigar para tentar descobrir tais provas ou demonstrar que a denúncia é inepta.

A julgar pela ferocidade com que Bolsonaro voltou a atacar a imprensa que o imprensa, o inquérito que está por vir não é uma gripezinha. Ao contrário. No início da semana, disse numa entrevista que Fabrício Queiroz, o operador de rachadinhas da primeira-família, "pagava conta minha também. Ele era de confiança". Faltou explicar a origem do dinheiro e definir "confiança".

O relacionamento monetário do clã Bolsonaro com Queiroz é coisa anterior à chegada do Messias ao Planalto. Enquanto durar o mandato, como dito, o presidente não pode ser punido por eventuais crimes cometidos antes da posse. Mas a regra é invertida quando há crimes cometidos no curso do mandato presidencial. Daí sua preocupação com a “curiosidade” de Cármen Lúcia sobre os desdobramentos da reunião que ocorreu no gabinete presidencial em agosto.

Observação: Desde que a revista Época publicou a entrevista onde a advogada de FB afirma jamais ter cogitado seguir as orientações do relatório da Abin, Augusto Heleno e Alexandre Ramagem declararam guerra aberta à advogada Luciana Pires. Falam mal dela a quem podem, inclusive ao presidente. Flávio segue defendendo sua defensora, e não à toa: foi quando ela assumiu sua defesa, com a saída de Frederick Wassef, que os ventos do TJ-RJ começaram a soprar a seu favor.