segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

DO GENERAL PARA O CAPITÃO


Senhor Presidente,

Quem lhe escreve é o João, companheiro de caserna. O senhor era paraquedista, eu fui cavalariano, mas isso pouco importa. O verde-oliva de nossa farda é um laço indissolúvel.

Não sei se o senhor vai se lembrar, já faz algum tempo, mas, no final de 1988, lhe transmiti minhas felicitações por sua eleição como vereador. Naquela data, o senhor se elegera com pouco mais de 11 mil votos. Exatos trinta anos depois, teria 57 milhões. Nenhum de nós dois poderia imaginar que isso viria acontecer.

Escrevo-lhe para lhe contar o que eu vivi, um dia, exatamente na cadeira em que o senhor se senta hoje. Fiquei seis anos aí e sei bem o que lhe passa pela cabeça. Aliás, conheço todas as suas dores de cabeça, pois experimentei as piores que podem existir.

Quando a linha-dura se viu desmoralizada no estacionamento do Riocentro, tive o meu momento de dúvida. Hesitei. Naquela ocasião, um dos meus colaboradores mais próximos me descreveu como apoplético. Pode ser. Pouco depois, meu coração cobrou a fatura e eu tive que ir a Cleveland cuidar dele.

Voltei para o Brasil melhor — pelo menos, era o que eu achava. Muitos ao meu redor diziam que eu havia me tornado outra pessoa. Balela. Sempre fui o mesmo, refém do meu próprio temperamento. Se eu tivesse consciência disso antes, talvez tivesse feito muita coisa diferente. A começar pela confusão em Florianópolis, quando fui brigar na rua com estudantes.

Xingaram minha mãe e eu não levo desaforo para casa. Certa tarde, recebi um telegrama de professores da Unicamp que protestavam ante a punição de um colega. Mandei-os ir à merda, e o fiz por escrito. Até hoje a história registra esses fatos, dos quais não me orgulho.

Para mim, infelizmente, não há um novo amanhã.

Como o senhor sabe, assinei a maior anistia da história do Brasil. Fui órfão de pai vivo e vi de perto o amargo do exílio. Não desejo isso para ninguém, nem para os comunistas. Até o Brizola eu anistiei, embora não gostasse dele — como sei que o senhor também não. Pouco importa. Fiz o que me parecia ser o correto.

Exatos vinte anos depois, passava meus últimos meses por aí, mas ninguém lembrou do meu gesto. Passei o aniversário de vinte anos da anistia olhando o mar de São Conrado e lhe confesso que senti um vazio. Foi um dia triste, embora marcasse meu melhor momento na Presidência. Talvez fosse melhor que lembrassem de mim.

Mas não lembraram. Se anistiei adversários políticos, hoje reconheço que fui incapaz de anistiar a mim mesmo, e bati a porta pedindo publicamente que me esquecessem. Não deveria ter feito isso. Senhor, volto a lembrar: pode ser que não haja tempo para um novo amanhã.

Por isso lhe escrevo, evocando nossa fraternidade de armas. Não politize aquilo que é o bem mais essencial por aí. Esqueça se a vacina é de São Paulo, da China ou de Marte. O importante é que salva vidas. Já fora da Presidência, chamei a China de “uma porcaria”, porque era isso que eu achava. Também achava que o atentado do Riocentro havia sido coisa de comunistas. Quanta bobagem. Hoje eu vejo, Presidente, que o tempo é o senhor da razão.

Gostaria de lembrá-lo, ainda, de um episódio ocorrido em setembro de 1984. Tentavam meter na minha cabeça que o Tancredo era comunista. Até cartaz contendo uma imagem dele com a foice e o martelo apareceu. Outro dia, o Tancredo passou por aqui e demos boas gargalhadas.

Se hoje achamos graça, na época foi diferente: chegaram a sugerir que, caso ele fosse eleito, eu virasse a mesa. Isso, só comigo morto ou deposto. Também chegaram a sugerir a prorrogação de meu mandato. Também não topei. Mais uma vez, fiz o que me pareceu ser o correto.

Lembre-se, senhor Presidente: o futuro é implacável. Assim como eu, o senhor será lembrado pelo que fez e pelo que deixou de fazer. Eu fiz a anistia, recusei quando o Reagan me pediu que invadisse o Suriname e resisti ao apelo populista de sediar uma Copa do Mundo com o Brasil quebrado. Ninguém lembra. Outro dia, divulgou-se por aí um documento da CIA me envolvendo com execuções de opositores. Juro que não tenho nada com isso. De pouco adianta. As versões sobrevivem aos fatos.

Por isso, senhor Presidente, recordo nosso compromisso de posse: servir ao país. Esqueça as desavenças, a eleição de 2022, nossa aversão aos comunistas ou seja lá o que for. Conduza um plano nacional de vacinação, tome para si a responsabilidade que é sua, e, principalmente, não transforme uma questão prioritária de saúde pública em algo menor. Não é.

Daqui de cima, vejo as coisas evoluindo perigosamente, como se o maior cataclismo dos últimos cem anos pudesse ser tratado como uma disputa pessoal entre o senhor e o governador de São Paulo. Não pode.

De quem torce verdadeiramente pelo seu governo,

João Figueiredo

P.S.: Me esqueçam.

Texto publicado em Época por Bernardo Pasqualette, advogado, pesquisador e autor do livro ME ESQUEÇAM — FIGUEIREDO: A BIOGRAFIA DE UMA PRESIDÊNCIA