Senhor Presidente,
Quem lhe escreve é o
João, companheiro de caserna. O senhor era paraquedista, eu fui
cavalariano, mas isso pouco importa. O verde-oliva de nossa farda é um laço indissolúvel.
Não sei se o senhor
vai se lembrar, já faz algum tempo, mas, no final de 1988, lhe transmiti minhas
felicitações por sua eleição como vereador. Naquela data, o senhor se elegera
com pouco mais de 11 mil votos. Exatos trinta anos depois, teria 57 milhões.
Nenhum de nós dois poderia imaginar que isso viria acontecer.
Escrevo-lhe para lhe
contar o que eu vivi, um dia, exatamente na cadeira em que o senhor se senta
hoje. Fiquei seis anos aí e sei bem o que lhe passa pela cabeça. Aliás, conheço
todas as suas dores de cabeça, pois experimentei as piores que podem existir.
Quando a linha-dura
se viu desmoralizada no estacionamento do Riocentro, tive o meu momento de
dúvida. Hesitei. Naquela ocasião, um dos meus colaboradores mais próximos me
descreveu como apoplético. Pode ser. Pouco depois, meu coração cobrou a fatura
e eu tive que ir a Cleveland cuidar dele.
Voltei para o Brasil
melhor — pelo menos, era o que eu achava. Muitos ao meu redor diziam que eu
havia me tornado outra pessoa. Balela. Sempre fui o mesmo, refém do meu próprio
temperamento. Se eu tivesse consciência disso antes, talvez tivesse feito muita
coisa diferente. A começar pela confusão em Florianópolis, quando fui brigar na
rua com estudantes.
Xingaram minha mãe e
eu não levo desaforo para casa. Certa tarde, recebi um telegrama de professores
da Unicamp que protestavam ante a punição de um colega. Mandei-os ir à merda, e
o fiz por escrito. Até hoje a história registra esses fatos, dos quais não me
orgulho.
Para mim,
infelizmente, não há um novo amanhã.
Como o senhor sabe,
assinei a maior anistia da história do Brasil. Fui órfão de pai vivo e vi de
perto o amargo do exílio. Não desejo isso para ninguém, nem para os comunistas.
Até o Brizola eu anistiei, embora não gostasse dele — como sei que o
senhor também não. Pouco importa. Fiz o que me parecia ser o correto.
Exatos vinte anos
depois, passava meus últimos meses por aí, mas ninguém lembrou do meu gesto.
Passei o aniversário de vinte anos da anistia olhando o mar de São Conrado e
lhe confesso que senti um vazio. Foi um dia triste, embora marcasse meu melhor
momento na Presidência. Talvez fosse melhor que lembrassem de mim.
Mas não lembraram.
Se anistiei adversários políticos, hoje reconheço que fui incapaz de anistiar a
mim mesmo, e bati a porta pedindo publicamente que me esquecessem. Não deveria
ter feito isso. Senhor, volto a lembrar: pode ser que não haja tempo para um
novo amanhã.
Por isso lhe
escrevo, evocando nossa fraternidade de armas. Não politize aquilo que é o bem
mais essencial por aí. Esqueça se a vacina é de São Paulo, da China ou de
Marte. O importante é que salva vidas. Já fora da Presidência, chamei a China
de “uma porcaria”, porque era isso que eu achava. Também achava que o atentado
do Riocentro havia sido coisa de comunistas. Quanta bobagem. Hoje eu vejo,
Presidente, que o tempo é o senhor da razão.
Gostaria de
lembrá-lo, ainda, de um episódio ocorrido em setembro de 1984. Tentavam meter
na minha cabeça que o Tancredo era comunista. Até cartaz contendo uma
imagem dele com a foice e o martelo apareceu. Outro dia, o Tancredo passou por
aqui e demos boas gargalhadas.
Se hoje achamos
graça, na época foi diferente: chegaram a sugerir que, caso ele fosse eleito,
eu virasse a mesa. Isso, só comigo morto ou deposto. Também chegaram a sugerir
a prorrogação de meu mandato. Também não topei. Mais uma vez, fiz o que me
pareceu ser o correto.
Lembre-se, senhor
Presidente: o futuro é implacável. Assim como eu, o senhor será lembrado pelo
que fez e pelo que deixou de fazer. Eu fiz a anistia, recusei quando o Reagan
me pediu que invadisse o Suriname e resisti ao apelo populista de sediar uma
Copa do Mundo com o Brasil quebrado. Ninguém lembra. Outro dia, divulgou-se por
aí um documento da CIA me envolvendo com execuções de opositores. Juro que não
tenho nada com isso. De pouco adianta. As versões sobrevivem aos fatos.
Por isso, senhor
Presidente, recordo nosso compromisso de posse: servir ao país. Esqueça as
desavenças, a eleição de 2022, nossa aversão aos comunistas ou seja lá o que
for. Conduza um plano nacional de vacinação, tome para si a responsabilidade
que é sua, e, principalmente, não transforme uma questão prioritária de saúde
pública em algo menor. Não é.
Daqui de cima, vejo
as coisas evoluindo perigosamente, como se o maior cataclismo dos últimos cem
anos pudesse ser tratado como uma disputa pessoal entre o senhor e o governador
de São Paulo. Não pode.
De quem torce
verdadeiramente pelo seu governo,
João Figueiredo
P.S.: Me esqueçam.
Texto publicado em Época
por Bernardo Pasqualette, advogado, pesquisador e autor do livro ME
ESQUEÇAM — FIGUEIREDO: A BIOGRAFIA DE UMA PRESIDÊNCIA