domingo, 24 de janeiro de 2021

A HORA "H"

 

Junte-se o mal-estar do presidente da República na presença da vacina com a falta de auxílio de emergência aos pobres, acrescente-se a inépcia do poder público para atender à necessidade da população, adicione-se um robusto passivo de atos passíveis de enquadramento no rol dos crimes de responsabilidade e teremos a receita de um governo em apuros.

Se o dia D ocorrerá em outubro de 2022 ou se será antecipado por impedimento constitucional é uma questão em aberto. Certo, porém, é que a hora H chegou para Jair Bolsonaro como um momento de decisão definidor de seu destino. A situação de adversidade extrema em todos os campos, com destaque para a saúde pública e o isolamento político, foi construída pele presidente com as próprias mãos.

Sendo ele o engenheiro da obra, é também o responsável por decidir se investe na desconstrução da arapuca em que se enfiou ou se insiste na destruição de suas condições objetivas e subjetivas para governar. Bolsonaro teve inúmeras oportunidades de se recompor, mas optou por queimar cartuchos de maneira inútil e, sobretudo, imprudente. Uma ocasião em particular serviria para ele de exemplo de como uma atuação positiva em relação ao coletivo rende dividendos naquilo que o interessa, a boa vontade do eleitorado: a proposição do auxílio emergencial de R$ 600 quando o Congresso contrapôs R$ 500 à sugestão original de R$ 200.

Os beneficiários se esqueceram da iniciativa parlamentar, puseram a ajuda na conta do presidente, que viu sua avaliação positiva crescer substancialmente num eleitorado que não o havia levado ao Planalto. O resultado teria sido adverso se ele tivesse cedido ao hábito de brigar com a realidade e decidido confrontar deputados e senadores.

Ali teve o tirocínio que lhe faltou nos atributos necessários para enfrentar a crise sanitária, diante da qual fez todas as escolhas erradas, a começar por falar a um nicho em detrimento da atenção devida à maioria. O desdém à dimensão da pandemia, e a guerra contra a vacinação levaram-no à derrota política e à demonstração inequívoca de incapacidade governamental. A conta chega na hora de os brasileiros terem as vidas salvas e, no entanto, veem o chefe da nação preso às consequências dos equívocos em série, incapaz de responder à emergência e, por causa disso, com seus seguidores aturdidos e sem discurso.

Se lá atrás, quando foi obrigado a moderar o comportamento devido a reações da Justiça a atos antidemocráticos e por ofensiva contra ilegalidades cometidas por família e amigos, o presidente agora ainda não viu nada a respeito do esforço a ser empreendido para sair das cordas.

Ataques ao Congresso e ao Supremo, preocupações com investigações que alcançam Carlos, Eduardo, Flávio ou Queiroz, bem como grosserias verbais, são fichinha em termos do poder de provocar a reação robusta de um país. Enquanto os problemas são vistos como pontuais e até questionáveis, a depender do ponto de vista de cada um, o conjunto da sociedade tende a não se incomodar tanto.

Quando é a saúde de todos que se vê diante de uma ameaça concreta que o governante poderia tornar menos grave, a coisa muda de figura. É possível que ele encontre, mas é difícil enxergar algum espaço para Bolsonaro esticar ainda mais a corda da sua insubordinação às restrições inerentes ao exercício do poder em regimes democráticos e ao preceito constitucional de inviolabilidade à vida.

Em seu diapasão de exorbitâncias, o presidente acabou provocando a volta do tema do impeachment que havia conseguido tirar da agenda. Assim como a pandemia, a segunda onda do debate sobre a interrupção do mandato volta mais forte. Agora até seus aliados no Congresso já aventam a hipótese, sinalizando esgotamento na defesa. Uma hora rompe-se o lacre da fidelidade e da submissão ao poder.

Como demonstrado pelo distanciamento de Trump por parte de republicanos de peso a partir das cenas da invasão do Capitólio, que estiveram para o agora ex-presidente americano como talvez venham estar para Bolsonaro as imagens das pessoas morrendo por asfixia no Amazonas.

Não foi preciso que o povo saísse às ruas para que Donald Trump tivesse dois processos de impeachment aprovados. Se o governante dá margem, tem vez que bastam as provas, um bom grau de intolerância cívica e a firmeza das instituições.

Com Dora Kramer.