Junte-se o mal-estar do presidente da República na presença
da vacina com a falta de auxílio de emergência aos pobres, acrescente-se a
inépcia do poder público para atender à necessidade da população, adicione-se
um robusto passivo de atos passíveis de enquadramento no rol dos crimes de
responsabilidade e teremos a receita de um governo em apuros.
Se o dia D
ocorrerá em outubro de 2022 ou se será antecipado por impedimento
constitucional é uma questão em aberto. Certo, porém, é que a hora H chegou para Jair Bolsonaro como um momento de decisão definidor de seu destino.
A situação de adversidade extrema em todos os campos, com destaque para a saúde
pública e o isolamento político, foi construída pele presidente com as próprias
mãos.
Sendo ele o engenheiro da obra, é também o responsável por
decidir se investe na desconstrução da arapuca em que se enfiou ou se insiste
na destruição de suas condições objetivas e subjetivas para governar. Bolsonaro teve inúmeras oportunidades
de se recompor, mas optou por queimar cartuchos de maneira inútil e, sobretudo,
imprudente. Uma ocasião em particular serviria para ele de exemplo de como uma
atuação positiva em relação ao coletivo rende dividendos naquilo que o
interessa, a boa vontade do eleitorado: a proposição do auxílio emergencial de R$
600 quando o Congresso contrapôs R$ 500 à sugestão original de R$ 200.
Os beneficiários se esqueceram da iniciativa parlamentar,
puseram a ajuda na conta do presidente, que viu sua avaliação positiva crescer
substancialmente num eleitorado que não o havia levado ao Planalto. O resultado
teria sido adverso se ele tivesse cedido ao hábito de brigar com a realidade e
decidido confrontar deputados e senadores.
Ali teve o tirocínio que lhe faltou nos atributos
necessários para enfrentar a crise sanitária, diante da qual fez todas as
escolhas erradas, a começar por falar a um nicho em detrimento da atenção
devida à maioria. O desdém
à dimensão da pandemia, e a guerra
contra a vacinação levaram-no à derrota política e à demonstração inequívoca
de incapacidade governamental. A conta chega na hora de os brasileiros
terem as vidas salvas e, no entanto, veem o chefe da nação preso às consequências
dos equívocos em série, incapaz de responder à emergência e, por causa disso,
com seus seguidores aturdidos e sem discurso.
Se lá atrás, quando foi obrigado a moderar o comportamento
devido a
reações da Justiça a atos antidemocráticos e por ofensiva contra ilegalidades
cometidas por família e amigos, o presidente agora ainda não viu nada a
respeito do esforço a ser empreendido para sair das cordas.
Ataques ao Congresso e ao
Supremo, preocupações com investigações
que alcançam Carlos, Eduardo, Flávio ou Queiroz, bem como grosserias
verbais, são fichinha em termos do poder de provocar a reação robusta de um
país. Enquanto os problemas são vistos como pontuais e até questionáveis, a
depender do ponto de vista de cada um, o conjunto da sociedade tende a não se
incomodar tanto.
Quando é a saúde de todos que se vê diante de uma ameaça
concreta que o governante poderia tornar menos grave, a coisa muda de figura. É
possível que ele encontre, mas é difícil enxergar algum espaço para Bolsonaro esticar ainda mais a corda da
sua insubordinação às restrições inerentes ao exercício do poder em regimes
democráticos e ao preceito constitucional de inviolabilidade à vida.
Em seu diapasão de exorbitâncias, o presidente acabou
provocando a
volta do tema do impeachment que havia conseguido tirar da agenda.
Assim como a pandemia, a segunda onda do debate sobre a interrupção do mandato
volta mais forte. Agora até
seus aliados no Congresso já aventam a hipótese, sinalizando
esgotamento na defesa. Uma hora rompe-se o lacre da fidelidade e da submissão
ao poder.
Como demonstrado pelo distanciamento
de Trump por parte de republicanos de peso a partir das cenas da
invasão do Capitólio, que estiveram para o agora ex-presidente americano como
talvez venham estar para Bolsonaro
as imagens das pessoas
morrendo por asfixia no Amazonas.
Não foi preciso que o povo saísse às ruas para que Donald Trump tivesse dois processos de
impeachment aprovados. Se o governante dá margem, tem vez que bastam as provas,
um bom grau de intolerância cívica e a firmeza das instituições.
Com Dora Kramer.