Um presidente que não governa, que age como se estivesse em plena campanha (e está), que não se empenha na aprovação das reformas (e joga a culpa o Congresso), que tripudia do vírus (gripezinha) e insulta as pessoas sensatas (maricas), que banca o curandeiro (quem não toma cloroquina toma tubaína), que aparelha a PGR, reforça a banda podre do STF e articula a eleição de apaniguados na Câmara e no Senado por razões, digamos, escusas, não é apenas uma figura inútil. É um estorvo, um encosto, um egun mal despachado, devendo ser exorcizado sob pena de o país regredir aos tempos nefandos de Sarney e Collor.
As despesas do governo federal com alimentação em 2020 (R$
1,8 bilhão), reveladas pelo site Metrópoles na última 3ª feira, causaram indignação.
Quando mais não seja porque R$ 15 milhões foram gastos com leite condensado, R$
2,2 milhões com chicletes, R$ 32,7 milhões com pizza e refrigerante, R$ 6
milhões com frutos do mar e R$ 2 milhões com vinhos. Para além disso, o
Portal Transparência saiu do ar
e permaneceu inacessível por horas a fio.
Claro que para tudo existe uma explicação (não necessariamente convincente). Na pior das hipóteses, inventa-se uma desculpa — o que não costuma ser problema para um governo sem o menor apreço pela verdade. E com efeito. Na 4ª feira, o Ministério da Defesa soltou uma nota afirmando que houve redução em relação a 2019.
Sobre o leite condensado, a pasta comandada pelo general Fernando Azevedo e Silva disse ser "um dos itens que compõem a alimentação por seu potencial energético, e eventualmente pode ser usado em substituição ao leite". No que tange ao chiclete, explicou que produto “ajuda na higiene bucal das tropas, que, às vezes, não têm tempo de fazer a escovação apropriada, como também é utilizado para aliviar as variações de pressão durante a atividade aérea”. Também ressaltou que há atualmente 370 mil militares na ativa, e que cada um recebe R$ 9 por dia para alimentação.
Também na 4ª feira, durante almoço com apaniguados e
puxa-sacos numa churrascaria em Brasília, Bolsonaro reagiu às críticas com a finesse
que lhe é peculiar: “Quando eu vejo a
imprensa me atacar, dizendo que comprei 2 milhões e meio de latas de leite
condensado, vai pra puta que pariu, imprensa de merda! É
pra enfiar no rabo de vocês da imprensa essas latas de leite condensado.
Essas acusações levianas não levam a
lugar nenhum e se me acusam disso é sinal que não tem do que me acusar (…) Isso
não é mordomia, não é privilégio”.
Segundo levantamento feito pelo Poder360, o governo federal
reduziu em quase 55% os gastos com alimentos em 2020, na comparação com o ano
anterior. No primeiro ano da gestão de Jair
Bolsonaro, o valor efetivamente gasto — que é diferente daquilo que foi
empenhado — foi de R$ 1,2 bilhão. Em 2020, marcado pela pandemia, o valor
desembolsado foi de R$ 602 milhões.
Volto a lembrar que tanto
é possível mentir dizendo a verdade quanto dizer a verdade mentindo.
Conta-se que Fidel Castro, questionado sobre a penúria na
ilha forçar universitárias a se prostituir para sobreviver, afirmou que era
exatamente o contrário: a situação em Cuba era tão boa que até as prostitutas eram
universitárias.
Observação: O senador Alessandro
Vieira e os deputados Felipe Rigoni
e Tabata Amaral pediram ao TCU que apure possíveis irregularidades: “Além do princípio da moralidade, o aumento
vertiginoso dos gastos com alimentos — muitos dos quais inequivocamente
supérfluos, repita-se — choca-se os princípios enunciados pelo art. 70 da Carta
Maior.”
Bolsominions costumam apelar para o “bom era o PT, né?” sempre que seu mito de araque é criticado, a exemplo do que fazia a patuleia petista em defesa do picareta dos picaretas. “E o Aécio”?, perguntavam. Mas o fato é que os gastos do capitão-cloroquina deixam os perdulários Lula e Dilma “no chinelo”.
Também é fato que os
petralhas gastavam melhor. Nada de leite condensado; a tigrada gostava mesmo
era de vinho francês e charuto cubano. O amigão do Queiroz bem que poderia trocar o leite condensado por panetones de
chocolate da loja do bolsokid das
rachadinhas, ajudando o pimpolho a evitar os saques de R$ 2 mil, além de
não precisar mais receber cheques de milicianos na conta da esposa.
Pode-se argumentar que o exemplo vem de cima. E com efeito.
Em abril de 2019, diante da "forte
e negativa repercussão popular" resultante de uma reportagem do jornal
O Estado de S.Paulo que trazia à lume uma licitação do STF no valor de R$ 1,3 milhão, o MP pediu
a adoção de "medidas necessárias
a apurar a ocorrência de supostas irregularidades nos atos da administração do
Supremo Tribunal Federal visando à 'contratação de empresa especializada para
prestação de serviços de fornecimento de refeições institucionais, por demanda,
incluindo alimentos e bebidas'”.
Os itens que compunham as tais “refeições institucionais”, objeto do Pregão Eletrônico 27/2019, contrastavam com a escassez e a
simplicidade dos gêneros alimentícios acessíveis — ou nem isso — à grande parte
da população brasileira. O menu
exigido pelos togadas —, que, segundo eles, seguia o padrão do Itamaraty — incluía café da
manhã, "brunch", almoço, jantar e coquetel. Na lista havia
produtos para pratos como bobó de
camarão, camarão à baiana e medalhões
de lagosta (as lagostas deviam
ser servidas com molho de manteiga
queimada). A corte exige ainda que fossem levados à mesa bacalhau à Gomes de Sá, frigideira de siri, moqueca (capixaba e baiana) e
arroz de pato. O cardápio incluía ainda vitela assada, codornas
assadas, carré de cordeiro, medalhões e tornedores de filé.
Em sua representação, o subprocurador-geral do MP junto ao TCU afirmou que a despesa que se pretendia realizar por meio daquela licitação encerrava “afronta ao princípio da moralidade administrativa" prevista na Constituição. "Não se pode exigir, pois, dos administradores públicos, simplesmente o mero cumprimento da lei. De todos os administradores, sobretudo daqueles que ocupam os cargos mais altos na estrutura do Estado, deve-se exigir muito mais. Dos ocupantes dos altos cargos do Estado, deve-se exigir conduta impecável, ilibada, exemplar, inatacável. A violação da moralidade administrativa importa em ilegitimidade do ato administrativo e, sempre que for constatada essa violação, deve ser declarada, quer pela via judicial, quer pela via administrativa, a nulidade do ato ilegítimo". Até onde eu me lembro, não deu em merda nenhuma.
Encerro com um texto publicado por Marcos Nogueira no Blog Cozinha Bruta:
A associação com pessoas desagradáveis, vis, perversas,
repulsivas, asquerosas, abjetas, repugnantes pode contaminar objetos e
palavras. Ninguém se chama Judas por
causa de um certo Iscariotes, apesar
de ter havido também o Tadeu, que
era sangue-bom e até virou santo. Ninguém quer morar na casa onde viveu um
psicopata assassino em série. As roupas e tralhas pessoais desse tipo de
criminoso só são aceitas por gente que ignora sua origem. Quem aí quer a boneca
da menina Suzane? Ou a câmera do Maníaco do Parque?
Quando o bandido ocupa um cargo de poder, a rejeição se
estende por campos menos palpáveis. Na Alemanha e por onde migrou, a família Hitler abandonou o sobrenome. O prenome
Adolf, incluindo Adolfo e outras variantes, se tornou
muito raro. A obra musical de Richard
Wagner, a despeito de quaisquer predicados artísticos, é alvo de ranço
porque o Führer o idolatrava. Os cartórios não registram Calígulas, Mussolinis, Maos, Saddams ou Kadafis.
Nunca ouvi falar de comida ou alimento que tenha entrado em
desuso por ser o favorito de um tirano. Saddam
Hussein gostava de peixe, Idi Amin
Dada curtia arroz de cabrito. Pol
Pot tomava sua sopinha condimentada. As pessoas continuam a comer essas
coisas no Iraque, em Uganda e no Camboja. Mas tudo tem uma primeira vez.
No Brasil, a repetida associação do leite condensado ao nome
de Jair Messias Bolsonaro está
começando a saturar. Há quem condene o leite condensado por suas propriedades
intrínsecas. É doce demais, admito. Mas dá para equilibrar se o resto da
receita levar pouco açúcar. Há o argumento de que o leite condensado — criado
como substituto do leite de vaca in natura, quando não havia
refrigeração artificial — é um predador exótico que ameaça a tradição da
doçaria brasileira. Não considero a tese válida, pois elementos novos mudam as
tradições, e isso sempre vai ocorrer. Goste ou não, o leite condensado virou
ingrediente da tal cozinha de vó.
Há ainda a antipatia decorrente do uso indiscriminado de
leite condensado em tudo o que é tosco e mal-acabado: barcas de açaí, paletas
recheadas, doces melados de vídeos lacradores. Compartilho desse sentimento,
mas ele não basta para eu abandonar o leite condensado.
Gosto muito de brigadeiro, gosto muito de pudim, às vezes me
entrego a prazeres tacanhos inconfessáveis para quem posa de gourmet. Mas a
insistente aparição conjunta do leite condensado e de Jair Messias periga tornar a associação tão automática quanto a do
sobrenome Hitler ao holocausto.
Por favor, Jair.
Não nos roube o leite condensado da mesma forma como você roubou nossa
bandeira.