sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

LEITE CONDENSADO ERA PARA PROGRAMA DE FORMAÇÃO DE BRIGADEIROS


Um presidente que não governa, que age como se estivesse em plena campanha (e está), que não se empenha na aprovação das reformas (e joga a culpa o Congresso), que tripudia do vírus (gripezinha) e insulta as pessoas sensatas (maricas), que banca o curandeiro (quem não toma cloroquina toma tubaína), que aparelha a PGR, reforça a banda podre do STF e articula a eleição de apaniguados na Câmara e no Senado por razões, digamos, escusas, não é apenas uma figura inútil. É um estorvo, um encosto, um egun mal despachado, devendo ser exorcizado sob pena de o país regredir aos tempos nefandos de Sarney e Collor.

As despesas do governo federal com alimentação em 2020 (R$ 1,8 bilhão), reveladas pelo site Metrópoles na última 3ª feira, causaram indignação. Quando mais não seja porque R$ 15 milhões foram gastos com leite condensado, R$ 2,2 milhões com chicletes, R$ 32,7 milhões com pizza e refrigerante, R$ 6 milhões com frutos do mar e R$ 2 milhões com vinhos. Para além disso, o Portal Transparência saiu do ar e permaneceu inacessível por horas a fio.

Claro que para tudo existe uma explicação (não necessariamente convincente). Na pior das hipóteses, inventa-se uma desculpa — o que não costuma ser problema para um governo sem o menor apreço pela verdade. E com efeito. Na 4ª feira, o Ministério da Defesa soltou uma nota afirmando que houve redução em relação a 2019

Sobre o leite condensado, a pasta comandada pelo general Fernando Azevedo e Silva disse ser "um dos itens que compõem a alimentação por seu potencial energético, e eventualmente pode ser usado em substituição ao leite". No que tange ao chiclete, explicou que produto “ajuda na higiene bucal das tropas, que, às vezes, não têm tempo de fazer a escovação apropriada, como também é utilizado para aliviar as variações de pressão durante a atividade aérea”. Também ressaltou que há atualmente 370 mil militares na ativa, e que cada um recebe R$ 9 por dia para alimentação.

Também na 4ª feira, durante almoço com apaniguados e puxa-sacos numa churrascaria em Brasília, Bolsonaro reagiu às críticas com a finesse que lhe é peculiar: “Quando eu vejo a imprensa me atacar, dizendo que comprei 2 milhões e meio de latas de leite condensado, vai pra puta que pariu, imprensa de merda! É pra enfiar no rabo de vocês da imprensa essas latas de leite condensado. Essas acusações levianas não levam a lugar nenhum e se me acusam disso é sinal que não tem do que me acusar (…) Isso não é mordomia, não é privilégio”.

Segundo levantamento feito pelo Poder360, o governo federal reduziu em quase 55% os gastos com alimentos em 2020, na comparação com o ano anterior. No primeiro ano da gestão de Jair Bolsonaro, o valor efetivamente gasto — que é diferente daquilo que foi empenhado — foi de R$ 1,2 bilhão. Em 2020, marcado pela pandemia, o valor desembolsado foi de R$ 602 milhões.

Volto a lembrar que tanto é possível mentir dizendo a verdade quanto dizer a verdade mentindo. Conta-se que Fidel Castro, questionado sobre a penúria na ilha forçar universitárias a se prostituir para sobreviver, afirmou que era exatamente o contrário: a situação em Cuba era tão boa que até as prostitutas eram universitárias.

Observação: O senador Alessandro Vieira e os deputados Felipe Rigoni e Tabata Amaral pediram ao TCU que apure possíveis irregularidades: “Além do princípio da moralidade, o aumento vertiginoso dos gastos com alimentos — muitos dos quais inequivocamente supérfluos, repita-se — choca-se os princípios enunciados pelo art. 70 da Carta Maior.

Bolsominions costumam apelar para o “bom era o PT, né?” sempre que seu mito de araque é criticado, a exemplo do que fazia a patuleia petista em defesa do picareta dos picaretas. “E o Aécio”?, perguntavam. Mas o fato é que os gastos do capitão-cloroquina deixam os perdulários Lula e Dilma “no chinelo”. 

Também é fato que os petralhas gastavam melhor. Nada de leite condensado; a tigrada gostava mesmo era de vinho francês e charuto cubano. O amigão do Queiroz bem que poderia trocar o leite condensado por panetones de chocolate da loja do bolsokid das rachadinhas, ajudando o pimpolho a evitar os saques de R$ 2 mil, além de não precisar mais receber cheques de milicianos na conta da esposa.

Pode-se argumentar que o exemplo vem de cima. E com efeito. Em abril de 2019, diante da "forte e negativa repercussão popular" resultante de uma reportagem do jornal O Estado de S.Paulo que trazia à lume uma licitação do STF no valor de R$ 1,3 milhão, o MP pediu a adoção de "medidas necessárias a apurar a ocorrência de supostas irregularidades nos atos da administração do Supremo Tribunal Federal visando à 'contratação de empresa especializada para prestação de serviços de fornecimento de refeições institucionais, por demanda, incluindo alimentos e bebidas'”.

Os itens que compunham as tais “refeições institucionais”, objeto do Pregão Eletrônico 27/2019, contrastavam com a escassez e a simplicidade dos gêneros alimentícios acessíveis — ou nem isso — à grande parte da população brasileira. O menu exigido pelos togadas —, que, segundo eles, seguia o padrão do Itamaraty — incluía café da manhã, "brunch", almoço, jantar e coquetel. Na lista havia produtos para pratos como bobó de camarão, camarão à baiana e medalhões de lagosta (as lagostas deviam ser servidas com molho de manteiga queimada). A corte exige ainda que fossem levados à mesa bacalhau à Gomes de Sáfrigideira de siri, moqueca (capixaba e baiana) e arroz de pato. O cardápio incluía ainda vitela assada, codornas assadas, carré de cordeiro, medalhões e tournedos de filé.

Os vinhos exigiram um capítulo à parte no edital. Se fossem tintos, tinham de ser tannat ou assemblage, contendo esse tipo de uva, de safra igual ou posterior a 2010, que tivessem ganhado pelo menos 4 (quatro) premiações internacionais e sido envelhecidos em barril de carvalho francês, americano ou ambos, de primeiro uso, por período mínimo de 12 (doze) meses. Se a uva fosse do tipo Merlot, só seriam aceitas garrafas de safra igual ou posterior a 2011 e vencedoras de pelo menos quatro premiações internacionais. Nesse caso, o vinho teria de ser envelhecido em barril de carvalho, de primeiro uso, por período mínimo de 8 (oito) meses. Para os vinhos brancos, uva tipo Chardonnay, de safra igual ou posterior a 2013, com no mínimo quatro premiações internacionais.

Em sua representação, o subprocurador-geral do MP junto ao TCU afirmou que a despesa que se pretendia realizar por meio daquela licitação encerrava “afronta ao princípio da moralidade administrativa" prevista na Constituição. "Não se pode exigir, pois, dos administradores públicos, simplesmente o mero cumprimento da lei. De todos os administradores, sobretudo daqueles que ocupam os cargos mais altos na estrutura do Estado, deve-se exigir muito mais. Dos ocupantes dos altos cargos do Estado, deve-se exigir conduta impecável, ilibada, exemplar, inatacável. A violação da moralidade administrativa importa em ilegitimidade do ato administrativo e, sempre que for constatada essa violação, deve ser declarada, quer pela via judicial, quer pela via administrativa, a nulidade do ato ilegítimo". Até onde eu me lembro, não deu em merda nenhuma. 

Encerro com um texto publicado por Marcos Nogueira no Blog Cozinha Bruta:

A associação com pessoas desagradáveis, vis, perversas, repulsivas, asquerosas, abjetas, repugnantes pode contaminar objetos e palavras. Ninguém se chama Judas por causa de um certo Iscariotes, apesar de ter havido também o Tadeu, que era sangue-bom e até virou santo. Ninguém quer morar na casa onde viveu um psicopata assassino em série. As roupas e tralhas pessoais desse tipo de criminoso só são aceitas por gente que ignora sua origem. Quem aí quer a boneca da menina Suzane? Ou a câmera do Maníaco do Parque?

Quando o bandido ocupa um cargo de poder, a rejeição se estende por campos menos palpáveis. Na Alemanha e por onde migrou, a família Hitler abandonou o sobrenome. O prenome Adolf, incluindo Adolfo e outras variantes, se tornou muito raro. A obra musical de Richard Wagner, a despeito de quaisquer predicados artísticos, é alvo de ranço porque o Führer o idolatrava. Os cartórios não registram Calígulas, Mussolinis, Maos, Saddams ou Kadafis.

Nunca ouvi falar de comida ou alimento que tenha entrado em desuso por ser o favorito de um tirano. Saddam Hussein gostava de peixe, Idi Amin Dada curtia arroz de cabrito. Pol Pot tomava sua sopinha condimentada. As pessoas continuam a comer essas coisas no Iraque, em Uganda e no Camboja. Mas tudo tem uma primeira vez.

No Brasil, a repetida associação do leite condensado ao nome de Jair Messias Bolsonaro está começando a saturar. Há quem condene o leite condensado por suas propriedades intrínsecas. É doce demais, admito. Mas dá para equilibrar se o resto da receita levar pouco açúcar. Há o argumento de que o leite condensado — criado como substituto do leite de vaca in natura, quando não havia refrigeração artificial — é um predador exótico que ameaça a tradição da doçaria brasileira. Não considero a tese válida, pois elementos novos mudam as tradições, e isso sempre vai ocorrer. Goste ou não, o leite condensado virou ingrediente da tal cozinha de vó.

Há ainda a antipatia decorrente do uso indiscriminado de leite condensado em tudo o que é tosco e mal-acabado: barcas de açaí, paletas recheadas, doces melados de vídeos lacradores. Compartilho desse sentimento, mas ele não basta para eu abandonar o leite condensado.

Gosto muito de brigadeiro, gosto muito de pudim, às vezes me entrego a prazeres tacanhos inconfessáveis para quem posa de gourmet. Mas a insistente aparição conjunta do leite condensado e de Jair Messias periga tornar a associação tão automática quanto a do sobrenome Hitler ao holocausto.

Por favor, Jair. Não nos roube o leite condensado da mesma forma como você roubou nossa bandeira.