quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

UM DELIRA, O OUTRO BABA, AMBOS MENTEM E NINGUÉM FAZ NADA

Enquanto as mortes se acumulam — já são quase 210 mil em todo o país — o suserano que manda e o vassalo que obedece exibem sua arrogante incompetência e se recusam a reconhecer que, mesmo jogando sujo, perderam a disputa pela vacina — não para o governador João Doria, mas para todos os brasileiros. O problema é que a derrota numa batalha não significa necessariamente perder a guerra. Não sei o que essa dupla pretende fazer, mas sinto calafrios só de pensar no que pode fazer se ninguém tomar urgentes providências.

Animal acuado, perigo dobrado. Não é da natureza do tamanduá ser agressivo, mas, acuado por onças ou lobos, o papa-formigas se ergue nas patas traseiras, abre as dianteiras, “dá um abraço” no agressor e lhe crava nas costas suas poderosas garras de 10 cm.

Quando todos estão preocupados com a vacinação, o capitão-delírio resolve dizer que "quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas", e que “o Brasil ainda tem liberdade, mas tudo pode mudar". 

Parlamentares rebateram as declarações nas redes sociais. O deputado federal Samuel Moreira, por exemplo, afirmou que “[Bolsonaro] é um irresponsável que cultiva o hábito de provocar a opinião pública, com o objetivo de criar confusão, porque é na confusão que ele pensa reinar”. Ele disse ainda que “quem garante a democracia é a Constituição”, e recomendou que “pare de blábláblá e comece a governar”. 

As chances de alguém se curar de um câncer dependem em grande medida do diagnóstico precoce. Em sendo preciso extirpar o tumor, há que fazê-lo enquanto ele ainda for operável. A partir de determinado momento, não há mais o que fazer... E não há nada como o tempo para passar.

A notória dificuldade de raciocinar impede a primeira-família tupiniquim e seus asseclas de perceber que vêm da China os ingredientes de que o Butantan e a Fiocruz necessitam para produzir as duas únicas vacinas (pelo menos por enquanto) que estão ao alcance do Brasil. 

Diuturnamente hostilizado pela alta cúpula do governo brasileiro, o país asiático posterga o envio dos insumos. Se esse nó diplomático não for desatado nas próximas semanas, a realidade logo transformará a esperança das vacinas aprovadas pela Anvisa na frustração da escassez de doses.

Semanas atrás, nosso suposto ministro da Saúde assegurou a uma comissão de senadores que seriam repassados aos estados, neste mês de janeiro, 9 milhões de doses da CoronaVac, 15 milhões da Oxford-AstraZeneca e 500 mil da Pfizer. Faltando 10 dias para o fim do mês, o país conta com apenas 6 milhões de doses da CoronaVac

Humilhado pelas circunstâncias, Bolsonaro se viu compelido a rebatizar de "vacina do Brasil" o que chamava de "vacina chinesa do Doria". Na manhã de segunda-feira, no “ato simbólico de recebimento das vacinas” que promoveu com governadores, o arremedo de ministro da Saúde disse que todos estariam liberados para aplicar suas doses naquela mesma tarde. Como era esperado, a pasta não cumpriu sua planilha de horários dos voos e, como de costuma, falhou na comunicação. 

A previsão passou do meio-dia para 16h, depois para 18h. “Fui dormir no domingo com uma planilha de horários de voos, acordei já era outra e agora à tarde recebi uma terceira”, reclamou o secretário de Saúde da Bahia, Fábio Vilas-Boas.  O estado já tinha aeronaves e veículos terrestres prontos para distribuir o carregamento aos municípios do interior, mas precisou mudar tudo.

O problema, de acordo com o obelisco da logística, foi o pedido dos governadores para antecipar o começo da vacinação. O próprio interventor reconhece que a quantidade de imunizante disponível dá para vacinar apenas 3 milhões de pessoas — 0,5% dos idosos e 34% dos profissionais de saúde

O Butantan pode produzir um milhão de doses por dia, mas a transferência de tecnologia ainda não foi concluída e os laboratórios não têm como fabricar a vacina do zero, ou seja depende do IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo), que é importado — a quantidade disponível no Brasil é suficiente apenas para mais 4,8 milhões de doses

O contrato celebrado com a SinoVac prevê o envio de matéria-prima para mais 46 milhões de doses, que deveria chegar aqui ainda este mês, mas cuja remessa o governo chinês ainda não autorizou. Para piorar, não há previsão para a chegada dos 2 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca, produzidos na Índia. Pazuello disse vem mantendo reuniões diplomáticas com o governo indiano, mas o problema é o “fuso horário“.

Vista e examinada essa magnífica baderna, infere-se que o Brasil não deu início a um processo real de imunização, mas a uma encenação política que, para evoluir da fase cenográfica para a de contenção efetiva da pandemia, precisa imunizar como 70% da população. Graças à inépcia do governo federal, isso deve se arrastar até o final do ano.

Para tornar realidade seu sonho da reeleição (e pesadelo da nação), o capitão-falastrice depende da retomada econômica. Mas a ideia de que a resolução da crise passa por iniciativas do rival Doria e pela colaboração da China provocou um novo curto-circuito na sua retórica.

Não parece haver militares interessados em virar a mesa, mas a palavra impeachment voltou a soar em Brasília. O que não deixa de ser um indício de que, sob Bolsonaro, não se deve excluir a hipótese de que tudo realmente possa mudar.