O texto reproduzido a seguir foi publicado originalmente na coluna de Ricardo Rangel em Veja #2724. Trata-se da mais lúcida interpretação do contexto atual que tive a honra e o privilégio de ler até este momento.
Jair Bolsonaro,
amante de ditaduras, ameaçou fechar o Congresso
e o Supremo. Em troca, o Congresso submeteu-se a ele
espontaneamente e pode nomear uma bolsonarista radical, golpista, à frente da
mais importante comissão da Câmara.
Bolsonaro faz
campanha contra o isolamento, máscara e vacina. Por sua causa, não temos
vacinas suficientes — e, se as tivéssemos, não teríamos seringas nem agulhas.
Muitos dos quase 230 000
brasileiros mortos por Covid
morreram por sua causa. A economia vai muito mal, o desemprego bate recorde.
Mas a popularidade de Bolsonaro,
apesar de alguma queda, segue alta.
Bolsonaro se
comporta como racista, misógino, homofóbico, persegue índios, tenta armar a
população, defende licença para matar para a polícia, ofende padrões mínimos de
civilidade. E é o favorito para 2022.
Enlouquecemos?
“Mas a alternativa, o
PT, é pior!” Conversa. O PT saiu
do poder há cinco anos e sua única chance de vencer é contra Bolsonaro — que, por isso mesmo, se
esforça para mantê-lo vivo. Bolsonaro
tem a mesma visão desenvolvimentista do PT
e também loteou o governo para o Centrão.
E esse desmonte de hoje o PT nunca
fez: é incrível, mas Bolsonaro consegue ser pior.
“Mas é honesto.”
Lorota. Bolsonaro interferiu no Coaf, na Receita, na PGR, sabotou
o projeto anticrime de Moro e expulsou-o do governo, enterrou a Lava-Jato. Gastou bilhões de dinheiro
público para eleger seus candidatos no Congresso.
Muitos de seus atos são considerados criminosos. Sua conduta quando deputado
sugere desvio de dinheiro público e a família está envolvida em transações
financeiras espúrias. E ainda tem o Queiroz
e as milícias.
“Mas tem a política
‘liberal’ do Guedes.” Ridículo. Bolsonaro
sabotou a reforma da Previdência (que foi encaminhada por Temer e aprovada por Maia).
A reforma tributária é inócua, a administrativa foi esvaziada pelo presidente,
que é contra as privatizações e interfere na gestão de estatais. Em abertura
comercial nem se fala. Com Bolsonaro
de olho em 2022 e o Centrão no
poder, só tolos acreditam em reformas expressivas.
Resta a alternativa desconfortável: o presidente é popular
não apesar de ser quem é, mas porque é quem é.
Bolsonaro é o
Brasil do século XVII: arcaico, tosco, patriarcal, patrimonialista,
preconceituoso, espoliador. Essa herança está entranhada em todas as camadas do
Brasil atual, até na camada mais alta e sofisticada, lida e viajada, que se
fascina com a arquitetura de Paris, mas em geral não se incomoda que metade dos
brasileiros não tenha esgoto.
Há muita gente que acha que negro não precisa ser escravo
desde que fique longe da vista. Que mulher pode sair de casa desde que não
progrida demais na profissão. Que pobre pode comer desde que “saiba seu lugar”.
Que homossexual pode existir desde que viva sua sexualidade no gueto. Que índio
pode viver desde que vire um “ser humano normal”. Bolsonaro é popular em grande medida porque autoriza tais eleitores
a serem preconceituosos e torpes sem culpa (ainda que tantos ignorem ser esse o
motivo).
Mas Bolsonaro também presta um serviço ao Brasil como um todo: ele nos mostra um espelho. A imagem é repugnante, mas é preciso contemplá-la. Reconhecê-la. Transformá-la.