O julgamento do impeachment de Donald Trump nos leva a duas conclusões: 1) há situações em
que o recurso se impõe independentemente da aprovação ou não (quando mais não
seja serve como um alerta de um país a um governante deletério); 2) num
processo no qual a acusação demonstrou, de forma incontestável, fatos que
justificariam o impedimento, político nenhum sai fortalecido, ainda que não
seja condenado. Por outro lado, se a acusação for débil, malposta, meramente
adjetivada e o Congresso servir de palco a invocações de caráter individual
referidas nas conveniências de cada um, aí realmente é melhor não fazê-la.
O mundo dá voltas e a vida vem em ondas, como o mar. Depois
do baque sofrido pelo populismo de esquerda, agora é a vez da direita de se
reinventar. A era Trump acabou
melancolicamente — embora o estrume alaranjado continue com impressionante
popularidade junto às bases, e não apenas nos Estados Unidos. Mas os Estados Unidos
têm um sistema de justiça criminal — coisa que falta em certa republiqueta de
almanaque que o togado supremo Luís Roberto
Barroso reputa “uma democracia bastante consolidada” e Trump não pode escapar de dois fatos: a) perdeu a reeleição; b) ferrou-se
ao incitar uma manifestação que virou ataque ao Congresso.
Talvez seja necessário um certo distanciamento histórico
para entender em profundidade como um ex-apresentador de televisão e
incorporador imobiliário nem sempre bem-sucedido conseguiu capturar a
imaginação de metade da população americana, diz a jornalista Vilma Gryzinski. Pelo poder de
influência dos Estados Unidos, ela continua, Trump também se tornou o arquétipo mundial do antipolítico que “fala as coisas como elas são”, compra
uma briga por minuto, não segue as regras do establishment, pula por cima das
instituições.
Num país onde elas são sistemicamente fortes, o salto final
acabou em gol contra. Mas o público sensível ao populismo de direita, seja onde
for, continua como sempre foi: gosta de armas e abomina bandidos, desconfia de
políticas sociais sem contrapartidas, tem forte aversão aos exageros
politicamente corretos e associa esquerda a corrupção, não só material, mas do
próprio tecido social.
Quem vai falar a essas camadas da sociedade, cuja ascensão,
no Brasil, marcou uma presença tão impressionante na eleição de 2018? Falsos
profetas proliferam no vácuo. Perscrutar os próprios erros é uma das atividades
mais desagradáveis que existem, mas a direita — ou simplesmente os que já foram
convencidos pela vida de que a esquerda sempre vai acabar liberando mais forças
para o mal do que para o bem — precisa procurar uma nova cara. E ela não pode
mais ser encimada por um topete tingido de acaju que desafia a lei da
gravidade. E talvez, também, o código penal.
Falando em código penal, a “PEC da Blindagem” — proposta de emenda à Constituição que reduz o
poder dos supremos togados de definir como e onde parlamentares presos em
flagrante delito devem ficar detidos, articulada a toque de caixa no Congresso
para blindar nossos nobres representantes após a prisão do deputado neandertal
bolsonarista Daniel Silveira —
colocou a Câmara em rota de colisão com o Supremo. O texto foi construído
por determinação de Arthur Lira
— em cuja opinião cabe ao parlamento definir um roteiro claro e preciso para o
“atual vácuo legal”. "O Congresso
vota contra organizações criminosas e grupos de interesses muito fortes. O
parlamentar precisa ter a imunidade em relação ao voto e a voz preservados".
Observação: Se houvesse no Brasil o que se chama normalidade democrática, o Supremo não teria prendido o deputado retrocitado, porque, em um país normal, um parlamentar não atacaria a democracia — e se atacasse, a própria Câmara cassaria seu mandato. No Brasil, o próprio chefe do Executivo Federal ataca a democracia, o Congresso livra a cara de parlamentares criminosos e o Supremo faz exatamente a mesma coisa com delinquentes bem fornidos, com cacife para bancar os honorários astronômicos cobrados por criminalistas chicaneiros para, servindo-se do vasto leque de recursos disponibilizados nas quatro instâncias do Judiciário, mantê-los longe da cadeia até a próxima encarnação. O Brasil vive hoje o que o filósofo Karl Popper chamou de “Paradoxo da Tolerância”: a democracia não pode ser excessivamente tolerante com quem a quer destruir.
Por uma dessas estranhas coincidências que acontecem em terra
brasilis, a proposta (aprovada com 304 votos a favor, 154 votos contrários
e duas abstenções, mas que ainda precisa ser avalizada por 308 deputados antes
de seguir para o Senado) foi colocada em discussão uma semana depois da prisão
do deputado troglodita destrambelhado — e recebeu críticas por ter sido levada
a plenário sem passar por nenhuma comissão para discutir sua
constitucionalidade.
Atualmente, a Constituição
Federal permite a prisão de deputados e senadores somente em flagrante e
por crime inafiançável. Aprovada a proposta, a prisão só poderá ser
realizada em casos de crimes
inafiançáveis expressamente descrito na Constituição — racismo, crimes hediondos, tortura, tráfico
de drogas, terrorismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a
ordem constitucional e o Estado democrático — o que não foi o caso do troglodita
boquirroto preso na semana passada por ordem do ministro Alexandre de Moraes com base na Lei de Segurança Nacional.
O texto da PEC prevê
que medidas cautelares contra parlamentares — como o uso de tornozeleira
eletrônica — somente poderão ser adotadas após decisão da maioria do plenário do Supremo — até a análise de
materiais apreendidos em operações policiais, seja no Congresso, seja nas
residências de parlamentares, demandará o crivo do plenário da Corte. A
proposta também atualiza nossa Lei Maior com a interpretação dada pelo Supremo
de que o foro por prerrogativa de função (foro
privilegiado) se limita a crimes
cometidos durante o exercício do mandato parlamentar e em decorrência dele,
e estabelece que deputados ou senadores sejam levados para a custódia do
Congresso depois do flagrante, e que seus pares decidirão onde eles devem ficar até a audiência de custódia (podendo
ser, por exemplo, prisão domiciliar).
Em conversas de bastidores, ministros supremos consideram a PEC em tela “um absurdo que pode levar à impunidade”. O Congresso foi respeitoso com a Corte ao confirmar a prisão de Daniel Silveira, mas afrontou-a ao se apressar a criar um arcabouço legal que limite os poderes dos togados numa resposta casuística para o caso do deputado. Portanto, se a proposta avançar, as relações entre o Congresso e o Supremo podem azedar. No entanto, há duas situações distintas, mas igualmente preocupantes, a avaliar: a primeira é que temos a raposa tomando conta do galinheiro; a segunda e que temos rotos criticando esfarrapados.