quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

É DANDO QUE SE RECEBE. OU NÃO.

 


A eleição de Arthur Lira (por 302 votos a 145) e de Rodrigo Pacheco (por 57 a 21) foi uma vitória de Bolsonaro. Mas uma coisa é capítulo do dia, outra bem diferente é como a novela vai terminar.

Com notável sensibilidade para detectar bons negócios, o Centrão vislumbrou nas aflições da Famiglia Bolsonaro múltiplas oportunidades. Na sucessão interna do Congresso, o acerto que consolidou a aliança com o Planalto incluiu proteção contra o impeachment, veto à instalação de uma CPI sobre a pandemia e blindagem para Flávio Rachadinha em troca de verbas públicas e cargos federais, que o presidente empenhou com o ânimo de quem contrata um seguro contra acidentes.

Com a vitória dos comprados, digo, dos apadrinhados do capitão, a política brasileira volta a viver o seu eterno terror pendular. O roteiro é o de sempre: presidentes da República entram botando banca e vão deslizando docemente para a grande vala comum do Centrão. Sob Bolsonaro, o deslizamento começou no ano passado. A novidade é que o namoro evoluiu para o matrimônio — ou patrimônio. A pretexto de assegurar a assim chamada "governabilidade", azeitou-se o toma lá, dá cá. Sem uma agenda nítida de políticas públicas sobre o balcão, a tal "governabilidade" torna-se um mafuá organizado para justificar novos e velhos cambalachos.

A expressiva maioria de votos obtidos por Lira e Pacheco não reflete necessariamente o apoio que o governo terá nas votações cotidianas. Não por acaso nenhum dos dois eleitos fez em seu discurso sequer menção a qualquer dos pontos caros ao chamado grupo ideológico.

É um equívoco considerar que o Executivo poderá tratar o Legislativo como um quintal do Planalto e adjacências, sobretudo porque a submissão é má conselheira, seja no campo ideológico ou no terreno do fisiologismo. Além disso, tanto Pacheco como Lira foram eleitos com votos dissidentes da oposição. Não foram poucos e cobrarão os devidos preços. Mais que atenção ao Palácio do Planalto, os presidentes da Câmara e do Senado precisam atender às demandas do respectivos colegiados.

Bolsonaro ganhou, mas não levou tudo o que busca transparecer. Imprimiu o carimbo da vitória da agressiva ofensiva de pagamento de emendas em janeiro, mas contribuiu para esse resultado a inestimável contribuição dos erros de Rodrigo Maia e dos ressentimentos cultivados por ele.

Lira pendurou uma galinha morta no pescoço do presidente, que, por enquanto, a vê como um jantar. Mas a ficha vai cair quando ela começar a apodrecer, e o mesmo ocorrerá com sua alteza irreal. O que se verá nos próximos capítulos desse folhetim vai depender do comportamento de Bolsonaro e de quão estapafúrdia e inepta for sua conduta no comando da nação.

Com 28 anos de vida parlamentar, Bolsonaro fez diante do eleitorado uma pose de político atípico. Voltou gradativamente ao normal, revelando-se um típico político brasileiro. Terceiriza cofres públicos ao Centrão desde a prisão de Fabrício Queiroz, operador de rachadinhas da primeira-família. Entregou ao PP de Lira a presidência do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). Confiou a um apadrinhado do PL, partido controlado como um cartório pelo mensaleiro Valdemar Costa Neto, a Diretoria de Ações Educacionais do mesmo FNDE. As ideias educacionais dos oligarcas do PP e do PL são desconhecidas, mas o apetite das duas legendas por verbas públicas é de conhecimento geral, inclusive do Poder Judiciário. O que não impediu o presidente de acomodar os prepostos da suspeição na cúpula do FNDE, que tem orçamento anual de R$ 55 bilhões.

O Centrão beliscou no ano passado cargos que controlam um pedaço do Orçamento estimado em R$ 78 bilhões anuais. Entre eles, além do FNDE, o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, entregue ao PP; e a Secretaria de Mobilidade Urbana do Ministério do Desenvolvimento Regional, confiada ao Republicanos. As nomeações continuam sendo enviadas ao DOU. É dando que Bolsonaro espera receber proteção ao seu mandato.

A expressão "é dando que se recebe" está gravada no DNA do Centrão. Retirada da oração de São Francisco, passou a simbolizar a profana prática de exigir vantagens em troca de apoio político no Legislativo. Quem lançou a moda foi o deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996), do PMDB de São Paulo. Robertão, como era chamado pelos amigos, inaugurou a facção franciscana do fisiologismo em março de 1988. Na época, o Congresso Constituinte discutia a prorrogação do mandato do então presidente José Sarney para cinco anos. O eterno donatário da capitania do Maranhão deu e recebeu, e a prática jamais saiu de moda.

Em três décadas, "governabilidade" virou um outro nome para corrupção. Serve de álibi para que políticos invadam as arcas do Estado. A anomalia infelicitou todos os governos desde a redemocratização. Sob Lula e Dilma, ganhou escala industrial. Imaginou-se que a Lava-Jato representaria uma virada de página, mas Bolsonaro e seus novos aliados cuidam para que a página seja virada para trás. O Centrão deixou de ser uma mosca na sopa. Tornou-se a própria sopa.

Com Dora Kramer e Josias de Souza.