A eleição de Arthur
Lira (por 302 votos a 145) e de Rodrigo Pacheco (por 57 a 21) foi uma vitória de Bolsonaro. Mas uma coisa é capítulo do dia, outra bem diferente é como
a novela vai terminar.
Com notável sensibilidade para detectar bons negócios, o Centrão
vislumbrou nas aflições da Famiglia Bolsonaro múltiplas oportunidades. Na sucessão
interna do Congresso, o acerto que consolidou a aliança com o Planalto incluiu proteção
contra o impeachment, veto à
instalação de uma CPI sobre a pandemia
e blindagem para Flávio Rachadinha
em troca de verbas públicas e cargos federais, que o presidente empenhou com o
ânimo de quem contrata um seguro contra acidentes.
Com a vitória dos comprados, digo, dos apadrinhados do
capitão, a política brasileira volta a viver o seu eterno terror pendular. O
roteiro é o de sempre: presidentes da República entram botando banca e vão
deslizando docemente para a grande vala comum do Centrão. Sob Bolsonaro, o deslizamento começou no
ano passado. A novidade é que o namoro evoluiu para o matrimônio — ou
patrimônio. A pretexto de assegurar a assim chamada
"governabilidade", azeitou-se o toma lá, dá cá. Sem uma agenda nítida
de políticas públicas sobre o balcão, a tal "governabilidade"
torna-se um mafuá organizado para justificar novos e velhos cambalachos.
A expressiva maioria de votos obtidos por Lira e Pacheco não reflete necessariamente o apoio que o governo terá nas
votações cotidianas. Não por acaso nenhum dos dois eleitos fez em seu discurso
sequer menção a qualquer dos pontos caros ao chamado grupo ideológico.
É um equívoco considerar que o Executivo poderá tratar
o Legislativo como um quintal do Planalto e adjacências, sobretudo porque a
submissão é má conselheira, seja no campo ideológico ou no terreno do
fisiologismo. Além disso, tanto Pacheco
como Lira foram eleitos com votos
dissidentes da oposição. Não foram poucos e cobrarão os devidos preços. Mais
que atenção ao Palácio do Planalto, os presidentes da Câmara e do Senado
precisam atender às demandas do respectivos colegiados.
Bolsonaro
ganhou, mas não levou tudo o que busca transparecer. Imprimiu o carimbo da
vitória da agressiva ofensiva de pagamento de emendas em janeiro, mas
contribuiu para esse resultado a inestimável contribuição dos erros de Rodrigo Maia e dos ressentimentos
cultivados por ele.
Lira
pendurou uma galinha morta no pescoço do presidente, que, por enquanto, a vê como um jantar. Mas a ficha vai cair quando ela começar a apodrecer, e o mesmo ocorrerá com sua alteza irreal. O que se verá nos próximos
capítulos desse folhetim vai depender do comportamento de Bolsonaro e de quão
estapafúrdia e inepta for sua conduta no comando da nação.
Com 28 anos de vida parlamentar, Bolsonaro fez diante do eleitorado uma pose de político atípico.
Voltou gradativamente ao normal, revelando-se um típico político brasileiro.
Terceiriza cofres públicos ao Centrão desde a prisão de Fabrício Queiroz, operador de rachadinhas da primeira-família. Entregou
ao PP de Lira a presidência do FNDE
(Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). Confiou a um apadrinhado do PL, partido controlado como um cartório
pelo mensaleiro Valdemar Costa Neto,
a Diretoria de Ações Educacionais do mesmo FNDE.
As ideias educacionais dos oligarcas do PP
e do PL são desconhecidas, mas o
apetite das duas legendas por verbas públicas é de conhecimento geral,
inclusive do Poder Judiciário. O que não impediu o presidente de acomodar os
prepostos da suspeição na cúpula do FNDE,
que tem orçamento anual de R$ 55 bilhões.
O Centrão beliscou no ano passado cargos que controlam um
pedaço do Orçamento estimado em R$ 78 bilhões anuais. Entre eles, além do FNDE, o Departamento Nacional de Obras
Contra a Seca, entregue ao PP; e a
Secretaria de Mobilidade Urbana do Ministério do Desenvolvimento Regional,
confiada ao Republicanos. As
nomeações continuam sendo enviadas ao DOU. É dando que Bolsonaro espera receber proteção ao seu mandato.
A expressão "é
dando que se recebe" está gravada no DNA do Centrão. Retirada da
oração de São Francisco, passou a
simbolizar a profana prática de exigir vantagens em troca de apoio político no
Legislativo. Quem lançou a moda foi o deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996), do PMDB de São Paulo. Robertão, como era chamado pelos
amigos, inaugurou a facção franciscana do fisiologismo em março de 1988. Na
época, o Congresso Constituinte discutia a prorrogação do mandato do então
presidente José Sarney para cinco
anos. O eterno donatário da capitania do Maranhão deu e recebeu, e a prática
jamais saiu de moda.
Em três décadas, "governabilidade" virou um outro
nome para corrupção. Serve de álibi para que políticos invadam as arcas do
Estado. A anomalia infelicitou todos os governos desde a redemocratização. Sob Lula e Dilma, ganhou escala industrial. Imaginou-se que a Lava-Jato representaria uma virada de
página, mas Bolsonaro e seus novos
aliados cuidam para que a página seja virada para trás. O Centrão deixou de ser
uma mosca na sopa. Tornou-se a própria sopa.
Com Dora Kramer e Josias de Souza.