No carnaval de 1930, Aracy de Almeida gravou uma marchinha de carnaval que começava assim: “Caramuru, uh, uh / Caramuru, uh, uh / Filho do fogo, sobrinho do trovão / Caramuru; Atirou no urubu / Mas errou a direção e Acertou no Gavião.”
Como nos foi ensinado no ginásio (que hoje corresponde às 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries), o náufrago português Diogo Álvares Correia, mais conhecido como Caramuru, chegou ao litoral na Bahia em 1510 e escapou de ser devorado pelos tupinambás pela pronta intervenção da índia Paraguaçu, filha do cacique Taparica. O apelido teria advindo do fato de Diogo ter disparado seu mosquete (os silvícolas tupiniquins não conheciam armas de fogo) e matado uma ave. "Caramuru" significa "pau que cospe fogo". Há, porém, quem afirme que ele foi alcunhado assim pelos nativos que o encontraram na praia, semiafogado e recoberto de algas (no idioma dos tupinambás, "caramuru" também significa “moreia”).
Fiz essa breve contextualização porque várias medidas tomadas pelo desgoverno
Bolsonaro parecem mirar o urubu e acertar o gavião. Aliás, a proliferação
de novas linhagens do vírus homônimo cresce na proporção direta da queda da
credibilidade sanitária do presidente, que expõe à luz detergente do sol sua
absoluta incapacidade de governar o país, superada apenas pelo Ministério da
Saúde, que ele próprio comanda, embora encarnado no bonifrate triestrelado que o
obedece com fidelidade canina.
Espremido por governadores e prefeitos às voltas com a falta
de vacinas, o general Pesadelo dá
explicações como as bananeiras dão bananas, enquanto o capitão reformado que o
subordina dá desculpas esfarrapadas (“tenho
um cheque de R$ 20 bilhões para
comprar vacina e que não tem culpa se falta vacina no mundo todo”).
A penúltima variante do vírus
bolsonaro (porque outras virão em breve) ignora o que disseram três
linhagens anteriores, no final de dezembro, em apenas 72 horas. Num sábado, uma
delas deu de ombros para o avanço da vacinação contra a Covid no exterior: "Eu
não dou bola pra isso." No domingo, outra disse o oposto: "Temos pressa em obter uma vacina segura,
eficaz e com qualidade..." No dia seguinte, a terceira culpou os
fabricantes de vacina pelo desabastecimento nacional: "O Brasil tem 210 milhões de habitantes.
Um mercado consumidor, de qualquer coisa, enorme. Os laboratórios não tinham
que estar interessados em vender para a gente? Por que eles, então, não
apresentam documentação na Anvisa? Pessoal diz que tenho que... Não, não. Quem
quer vender... Se eu sou vendedor, eu quero apresentar."
Todas as cepas desse vírus aziago e pernicioso odeiam a
mídia e almejam eliminar a oposição e governar por decreto, em parceria com os militares e o Centrão e as bençãos dos bispos
da sacolinha. Em Santa Catarina, onde passou o feriado de carnaval, uma das
variantes do patógeno disse ao fritador de hambúrguer ex-quase embaixador do
Brasil nos EUA, que ele chama de filho, que "o certo é tirar de circulação Globo, Folha de S. Paulo, Estadão, que
são fábricas de fake news, mas não vou fazer isso porque sou um democrata".
Depois misturou o spray milagroso do
amigo primeiro-ministro de Israel com controle
das plataformas sociais para se defender do aumento dos combustíveis, compondo um "samba do crioulo
doido" em pleno carnaval sem carnaval.
Na última sexta, após reclamar de seguidos aumentos no preço
dos combustíveis, nosso morubixaba colocou
um fardado (mais um) na presidência da Petrobrás (a efetivação da troca
depende de decisão do conselho de administração da petrolífera; amanhã, 23, o
colegiado discute a composição da diretoria, cujo mandato vence em março). E
como se falasse para um bando de idiotas, deixou claro nosso indômito capitão
que não vai interferir na política de
preços da empresa (assim como não interferiu na PF, não aparelhou a PGR, a Anvisa, o Ministério da Saúde, e por aí
afora).
A intervenção foi mal recebida, levando a empresa pública a
perder R$ 28,2 bilhões em valor de mercado. As ações preferenciais (mais
negociadas) fecharam em queda de 6,62%, a R$ 27,33 cada. Durante o pregão,
chegaram a cair 7,17%. As ordinárias (com direito a voto) tiveram queda de
7,91%, a R$ 27,10, a maior queda da sessão. Com a desvalorização, a
capitalização da estatal foi de R$ 383 bilhões na véspera para R$ 354,79
bilhões na sexta-feira.
No sábado, Bolsonaro
sinalizou que haverá mais trocas em seu
governo. "Vocês aprenderão
rapidamente que pior do que uma decisão mal tomada é uma indecisão. Eu tenho
que governar. Trocar as peças que porventura não estejam dando certo",
afirmou o presidente a novos soldados do Exército, numa formatura da Escola
Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas (SP). "E se a imprensa está preocupada com a
troca de ontem, na semana que vem teremos mais. O que não falta para mim é
coragem para decidir pensando no bem maior da nossa nação. O mais fácil é se
acomodar, é se aproximar daqueles que não têm compromisso com a pátria."
A troca no comando da Petrobras
representou (mais uma) uma derrota para o ex-superministro da Economia, que
defendia a permanência de Roberto
Castello Branco no cargo e era contra intervenções na estatal. Prevaleceu o
interesse da ala militar do governo. O general Joaquim Silva e Luna é ex-ministro da Defesa e atualmente é
diretor-geral da Itaipu Binacional (o
general da reserva João Francisco
Ferreira foi indicado para o cargo de diretor-geral da Itaipu).
Enquanto Bolsonaro
mostra que seu projeto de país é a manutenção dele, Bolsonaro, no poder, o ministro da Economia insiste na redução do
Estado. Ambos não demonstram muita coisa além disso. No dia 26 de janeiro, por
exemplo, Guedes afirmou: “Se deixarmos de lado essa psicologia
derrotista, esse descredenciando a democracia, essa vontade de ganhar de
qualquer forma o poder político, eu acho que podemos de novo surpreender. O
Brasil pode crescer 5%” — uma declaração lastreada apenas na força do
querer, como tantas outras que tem feito.
"Se
trabalharmos em vez de jogarmos pedra um no outro, vamos crescer mais",
completou, parecendo não se dar conta de que o último a descredenciar a democracia
foi um deputado bolsonarista que disse que daria uma surra de gato morto na
cara de um ministro do STF, e que é
o próprio Bolsonaro quem mais dá
pedrada nos brasileiros — e com uma pontaria irrepreensível, como atestam 250
mil vítimas fatais da Covid e mais
de 14 milhões de desempregados.
Sergio Moro, que foi
usado pelo presidente para vender a ideia de que seu governo promoveria uma “implacável
cruzada contra a corrupção” — e depois foi largado na beira da estrada —, deve
olhar para o Posto Ipiranga e pensar: eu
sou você amanhã. No segundo semestre do ano passado, Guedes percebeu que,
para Bolsonaro, ninguém é insubstituível,
noves fora Bolsonaro & filhos.
Há sempre um chinelo
velho para um pé cansado, lembra o jornalista e
colunista do UOL Leonardo Sakamoto. Em agosto, o chinelo quase foi trocado. Ao
final do ano, em um episódio de grande lucidez, Guedes afirmou: "Sou
demissível em 5 minutos. Quem é que é super[ministro] se pode ser demissível em
5 minutos? Sou um ministro como todos e sou o mais vulnerável". Ele é
super sim, desde que diga amém para o chefe.
Bolsonaro vai se
entregar ao populismo daqui até outubro de 2022. Vai ser divertido ver o
contorcionismo que Paulo Guedes terá
de fazer para justificar a permanência no cargo de ministro em meio a isso. E
ver o que uma parte do mercado vai continuar dizendo para apoiar o capitão.
Os 364 votos a favor de manter o pitbull bolsonarista na cadeia
deveriam servir de alerta ao capitão sem noção. Não pelo destino de um deputado
totalmente descartável ou pelo emparedamento de um comportamento golpista e
violento do bolsonarismo, mas pelo fato de o Centrão ter lembrado a Bolsonaro
que, se quiser, alia-se à oposição e aprova seu impeachment. Como bem salientou
ou ministro-interventor Eduardo Pesadelo,
manda quem pode, obedece quem tem juízo.