segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM TEM JUÍZO

No carnaval de 1930, Aracy de Almeida gravou uma marchinha de carnaval que começava assim: “Caramuru, uh, uh / Caramuru, uh, uh / Filho do fogo, sobrinho do trovão / Caramuru; Atirou no urubu / Mas errou a direção e Acertou no Gavião.”

Como nos foi ensinado no ginásio (que hoje corresponde às 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries), o náufrago português Diogo Álvares Correia, mais conhecido como Caramuru, chegou ao litoral na Bahia em 1510 e escapou de ser devorado pelos tupinambás pela pronta intervenção da índia Paraguaçu, filha do cacique Taparica. O apelido teria advindo do fato de Diogo ter disparado seu mosquete (os silvícolas tupiniquins não conheciam armas de fogo) e matado uma ave. "Caramuru" significa "pau que cospe fogo". Há, porém, quem afirme que ele foi alcunhado assim pelos nativos que o encontraram na praia, semiafogado e recoberto de algas (no idioma dos tupinambás, "caramuru" também significa “moreia”).

Fiz essa breve contextualização porque várias medidas tomadas pelo desgoverno Bolsonaro parecem mirar o urubu e acertar o gavião. Aliás, a proliferação de novas linhagens do vírus homônimo cresce na proporção direta da queda da credibilidade sanitária do presidente, que expõe à luz detergente do sol sua absoluta incapacidade de governar o país, superada apenas pelo Ministério da Saúde, que ele próprio comanda, embora encarnado no bonifrate triestrelado que o obedece com fidelidade canina.

Espremido por governadores e prefeitos às voltas com a falta de vacinas, o general Pesadelo dá explicações como as bananeiras dão bananas, enquanto o capitão reformado que o subordina dá desculpas esfarrapadas (“tenho um cheque de R$ 20 bilhões para comprar vacina e que não tem culpa se falta vacina no mundo todo”).

A penúltima variante do vírus bolsonaro (porque outras virão em breve) ignora o que disseram três linhagens anteriores, no final de dezembro, em apenas 72 horas. Num sábado, uma delas deu de ombros para o avanço da vacinação contra a Covid no exterior: "Eu não dou bola pra isso." No domingo, outra disse o oposto: "Temos pressa em obter uma vacina segura, eficaz e com qualidade..." No dia seguinte, a terceira culpou os fabricantes de vacina pelo desabastecimento nacional: "O Brasil tem 210 milhões de habitantes. Um mercado consumidor, de qualquer coisa, enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente? Por que eles, então, não apresentam documentação na Anvisa? Pessoal diz que tenho que... Não, não. Quem quer vender... Se eu sou vendedor, eu quero apresentar."

Todas as cepas desse vírus aziago e pernicioso odeiam a mídia e almejam eliminar a oposição e governar por decreto, em parceria com os militares e o Centrão e as bençãos dos bispos da sacolinha. Em Santa Catarina, onde passou o feriado de carnaval, uma das variantes do patógeno disse ao fritador de hambúrguer ex-quase embaixador do Brasil nos EUA, que ele chama de filho, que "o certo é tirar de circulação Globo, Folha de S. Paulo, Estadão, que são fábricas de fake news, mas não vou fazer isso porque sou um democrata". Depois misturou o spray milagroso do amigo primeiro-ministro de Israel com controle das plataformas sociais para se defender do aumento dos combustíveis, compondo um "samba do crioulo doido" em pleno carnaval sem carnaval.

Na última sexta, após reclamar de seguidos aumentos no preço dos combustíveis, nosso morubixaba colocou um fardado (mais um) na presidência da Petrobrás (a efetivação da troca depende de decisão do conselho de administração da petrolífera; amanhã, 23, o colegiado discute a composição da diretoria, cujo mandato vence em março). E como se falasse para um bando de idiotas, deixou claro nosso indômito capitão que não vai interferir na política de preços da empresa (assim como não interferiu na PF, não aparelhou a PGR, a Anvisa, o Ministério da Saúde, e por aí afora).

A intervenção foi mal recebida, levando a empresa pública a perder R$ 28,2 bilhões em valor de mercado. As ações preferenciais (mais negociadas) fecharam em queda de 6,62%, a R$ 27,33 cada. Durante o pregão, chegaram a cair 7,17%. As ordinárias (com direito a voto) tiveram queda de 7,91%, a R$ 27,10, a maior queda da sessão. Com a desvalorização, a capitalização da estatal foi de R$ 383 bilhões na véspera para R$ 354,79 bilhões na sexta-feira.

No sábado, Bolsonaro sinalizou que haverá mais trocas em seu governo. "Vocês aprenderão rapidamente que pior do que uma decisão mal tomada é uma indecisão. Eu tenho que governar. Trocar as peças que porventura não estejam dando certo", afirmou o presidente a novos soldados do Exército, numa formatura da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas (SP). "E se a imprensa está preocupada com a troca de ontem, na semana que vem teremos mais. O que não falta para mim é coragem para decidir pensando no bem maior da nossa nação. O mais fácil é se acomodar, é se aproximar daqueles que não têm compromisso com a pátria."

A troca no comando da Petrobras representou (mais uma) uma derrota para o ex-superministro da Economia, que defendia a permanência de Roberto Castello Branco no cargo e era contra intervenções na estatal. Prevaleceu o interesse da ala militar do governo. O general Joaquim Silva e Luna é ex-ministro da Defesa e atualmente é diretor-geral da Itaipu Binacional (o general da reserva João Francisco Ferreira foi indicado para o cargo de diretor-geral da Itaipu).

Enquanto Bolsonaro mostra que seu projeto de país é a manutenção dele, Bolsonaro, no poder, o ministro da Economia insiste na redução do Estado. Ambos não demonstram muita coisa além disso. No dia 26 de janeiro, por exemplo, Guedes afirmou: “Se deixarmos de lado essa psicologia derrotista, esse descredenciando a democracia, essa vontade de ganhar de qualquer forma o poder político, eu acho que podemos de novo surpreender. O Brasil pode crescer 5%” — uma declaração lastreada apenas na força do querer, como tantas outras que tem feito.

"Se trabalharmos em vez de jogarmos pedra um no outro, vamos crescer mais", completou, parecendo não se dar conta de que o último a descredenciar a democracia foi um deputado bolsonarista que disse que daria uma surra de gato morto na cara de um ministro do STF, e que é o próprio Bolsonaro quem mais dá pedrada nos brasileiros — e com uma pontaria irrepreensível, como atestam 250 mil vítimas fatais da Covid e mais de 14 milhões de desempregados.

Sergio Moro, que foi usado pelo presidente para vender a ideia de que seu governo promoveria uma “implacável cruzada contra a corrupção” — e depois foi largado na beira da estrada —, deve olhar para o Posto Ipiranga e pensar: eu sou você amanhã. No segundo semestre do ano passado, Guedes percebeu que, para Bolsonaro, ninguém é insubstituível, noves fora Bolsonaro & filhos.

Há sempre um chinelo velho para um pé cansado, lembra o jornalista e colunista do UOL Leonardo Sakamoto.  Em agosto, o chinelo quase foi trocado. Ao final do ano, em um episódio de grande lucidez, Guedes afirmou: "Sou demissível em 5 minutos. Quem é que é super[ministro] se pode ser demissível em 5 minutos? Sou um ministro como todos e sou o mais vulnerável". Ele é super sim, desde que diga amém para o chefe.

Bolsonaro vai se entregar ao populismo daqui até outubro de 2022. Vai ser divertido ver o contorcionismo que Paulo Guedes terá de fazer para justificar a permanência no cargo de ministro em meio a isso. E ver o que uma parte do mercado vai continuar dizendo para apoiar o capitão.

Os 364 votos a favor de manter o pitbull bolsonarista na cadeia deveriam servir de alerta ao capitão sem noção. Não pelo destino de um deputado totalmente descartável ou pelo emparedamento de um comportamento golpista e violento do bolsonarismo, mas pelo fato de o Centrão ter lembrado a Bolsonaro que, se quiser, alia-se à oposição e aprova seu impeachment. Como bem salientou ou ministro-interventor Eduardo Pesadelo, manda quem pode, obedece quem tem juízo.