quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

NA MESMA CANOA...

Bolsonaro detesta Lula e vice-versa, diz Josias de Souza. Pode até ser. Mas há que considerar dois aspectos importantes: 1) O bolsonarismo e o lulopetismo se retroalimentam; 2) O bolsonarismo boçal só existe graças ao lulopetismo corrupto.

Apesar de as duas seitas ocuparem posições diametralmente opostas no espectro político-ideológico, há mais semelhanças entre elas do que supõe nossa vã filosofia, começando pelo fanatismo apedeuta dos respectivos sectários.

A compreensão do jogo bruto da política exige a sutileza de identificar as semelhanças que unificam os personagens diferentes, ensina Josias. No momento, Bolsonaro e Lula igualam-se na montagem do cenário para a disputa presidencial de 2022 e se tornam cabos eleitorais um do outro.

Na estratégia para lidar com processos por corrupção, ambos agem para matar provas. A 5ª Turma do STJ fez a festa de Bolsonaro ao anular a quebra dos sigilos bancário e fiscal de seu primogênito no caso da rachadinha, enquanto a 2ª Turma do STF ensaia a anulação da sentença referente ao caso do tríplex do Guarujá, que rendeu a Lula uma temporada na cadeia e um jejum de urnas. Nos dois casos, o sonho do extermínio de provas nunca foi tão palpável.

A eventual impunidade de zero um poupará Bolsonaro de explicar os depósitos de R$ 89 mil que Fabrício Queiroz e sra. borrifaram na conta da primeira-dama Michelle. A reversão da condenação de Lula envernizará a pose de vítima e abrirá o caminho para a lavagem da ficha-suja que mantém o abjeto sumo pontífice do PT longe das urnas.

O placar de 4 a 1 (vencido o ministro Felix Fischer) que favoreceu Flávio no STJ foi puxado pelo voto do ministro João Otávio Noronha, que cultiva em privado o desejo de ser indicado pelo pai de Flávio à poltrona que ficará vazia no Supremo com a aposentadoria iminente de Marco Aurélio Mello, e com quem Bolsonaro diz ter um caso de "amor à primeira vista".

Durante a cerimônia de posse de André Mendonça como ministro da Justiça e de José Levi como advogado-geral da União, Bolsonaro proferiu as seguintes palavras: "Prezado Noronha, permita-me fazer assim, presidente do STJ. Eu confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com Vossa Excelência. Temos conversado com não muita persistência, mas as poucas conversas que temos o senhor ajuda a me moldar um pouco mais para as questões do Judiciário. Muito obrigado a Vossa Excelência". 

Além de conceder a Queiroz o mimo da prisão domiciliar — respaldando-se na pandemia e na “saúde debilitada” do velho amigo do pai, ex-assessor do filho e factótum do clã —, Noronha estendeu o benefício à Márcia Aguiar, que ficou foragida até o advento da prisão de Fabrício Gasparzinho, num imóvel do duble de advogado e mafioso de comédia Fred Wassef, então advogado de Flávio e consultor jurídico informal da Famiglia Bolsonaro. Voltando ao “love at first sight” de Bolsonaro por Noronha, já dizia Blaise Pascal que “o coração tem razões que a própria razão desconhece” — e um velho amigo meu, que “amor de p*** onde bate fica”.

Dá-se de barato que Nunes Marques presenteará Lula com o voto de minerva na sessão em que será revogada a sentença de Sergio Moro no caso do tríplex, já que a desqualificação do ex-juiz da Lava-Jato interessa a Bolsonaro, que, empenhado em retirar seu ex-ministro da Justiça do rol de alternativas presidenciais de centro-direita para 2022, cogita inclusive requisitar cópias de um papelório que o STF já repassou à defesa de Lula: as mensagens trocadas no aplicativo de celular entre Moro e os procuradores de Curitiba, especialmente Deltan Dallagnol.

Cavalgando o material roubado dos celulares pelos cibercriminosos de Araraquara — que o dublê de senador e cangaceiro das Alagoas quer inocentar e cujos “inestimáveis serviços prestados ao país” ele propõe homenagear —, Lula reitera o discurso da perseguição política. Algoz da família Bolsonaro, responsável pela abertura dos sigilos do zero um, o juiz Flávio Itabaiana, do Rio de Janeiro, não teve diálogos expostos nas manchetes. Mas isso não impediu a primeira-família de mimetizar a pregação petista do conluio. "É muito claro pra mim que há uma perseguição absurda no Rio de Janeiro, porque querem me atingir para atingir o presidente da República", já declarou Flávio Bolsonaro. "Há, sim, um conluio de várias pessoas poderosas para —dia sim, dia também— atacar o presidente da República, causar uma instabilidade e tentar tirá-lo na força".

Nem só de perseguição é feita a estratégia de Bolsonaro e Lula. Os dois não têm do que reclamar, por exemplo, da forma como o ministro Gilmar Mendes administra suas gavetas no Supremo. Graças a um pedido de vista obstrutiva de Gilmar, o julgamento do tríplex aguarda desde 2018 pelo surgimento das condições mais apropriadas para a anulação da sentença, e ao senso de oportunidade do semideus togado a protelação da análise do recurso em que o Ministério Público contesta a decisão judicial que concedeu a Flávio Bolsonaro o foro privilegiado do TJ-RJ.

Serão julgados na mesmíssima 5ª Turma do STJ outros recursos do primogênito do presidente, entre os quais um que reivindica o reconhecimento da incompetência do juiz de primeira instância Flávio Itabaiana para atuar no caso. Se for deferido, todos os atos praticados pelo magistrado irão para o beleléu.

Num país lógico, esse julgamento do STJ não poderia ocorrer antes que a Suprema Corte decidisse se o filho do presidente tem mesmo direito ao foro especial. A jurisprudência do STF indica o contrário, pois Flávio já não exercia o mandato de deputado estadual quando as investigações deixaram sua imagem rachadinha.

O processo político, sempre tão obscuro, fica subitamente clarificado quando se verifica que personagens como Bolsonaro e Lula não estão imunes às tentações um do outro. Nos meandros da estratégia eleitoral e das aflições criminais somem as pseudodiferenças. Só não desaparecem as provas.

O que fazer com a corrupção? Como apagar a confissão do empreiteiro que trocou o acesso aos cofres da Petrobras pelos confortos da família Lula da Silva? Que fazer com as evidências de que a empreiteira corrupta ajustou o tríplex ao gosto da ex-primeira-dama Marisa? Onde enfiar depoimentos, documentos e perícias?

Como esconder o vaivém de dinheiro vivo usado na aquisição de imóveis pelo primogênito do capitão? Onde enfiar as evidências de que a loja de chocolates virou lavanderia? Que borracha apagará os pagamentos de despesas familiares com verbas recolhidas pelo faz-tudo Queiroz? Quem levará à vitrine a explicação sobre a origem dos R$ 89 mil que gotejaram na conta da primeira-madame?

O desejo compartilhado de matar provas produz uma inusitada “despolarização” dos movimentos de BolsonaroLula. O enterro de evidências prossegue. Mas em algum momento será necessário responder às interrogações que se acumulam ao longo do cortejo fúnebre.