ATUALIZAÇÃO: Com a definição dos novos comandantes da Câmara e do Senado, os mandarins de Brasília terão de encarar uma realidade que vem sendo negligenciada desde meados do ano passado. Legislativo e Executivo vinham se dedicando às intrincadas articulações que deram ao centrão uma aparência de protagonista. Agora, terão de se dedicar a atividades menos estéreis do que os rodopios políticos. Serão compelidos a trabalhar.
O Brasil vive uma emergência sanitária e econômica. Faltam vacinas, empregos e equilíbrio fiscal. Mas os operadores de Brasília dedicavam-se a empurrar os problemas com a barriga. Primeiro alegou-se que o Congresso não podia votar nada de relevante porque os parlamentares estavam com as atenções voltadas para as eleições municipais. Depois, argumentou-se que a sucessão interna do Legislativo envenenava o ambiente político. Avolumaram-se os problemas. E acabaram-se as desculpas.
O Congresso não aprovou nem mesmo o Orçamento da União para este ano de 2021. Foram represadas reformas econômicas estratégicas —as privatizações; a reforma administrativa; a tributária; a emenda da emergência fiscal, que autoriza o governo a suspender concursos, reduzir jornada e salários de servidores para evitar o estouro do teto de gastos públicos. Paulo Guedes avalia que as reformas serão destravadas. Falta ao ministro da Economia convencer Jair Bolsonaro a esquecer sua pauta de costumes e suar o paletó pela agenda liberal.
Há nos debates de Brasília um déficit de interesse público. Estudo feito pela FGV revelou que o auxílio emergencial da pandemia —nas suas versões de R$ 600 e de R$ 300— produziu em nove meses o efeito de nove anos de Bolsa Família. Algo como 16 milhões de brasileiros saíram da pobreza repentinamente. Essas pessoas voltaram a viver com menos de meio salário mínimo na virada do Ano Novo. Acabou o socorro, continua a pandemia. A maioria do Congresso defende a volta do auxílio emergencial. Resta informar de onde virá o dinheiro. Por enquanto, os articuladores do Congresso preocuparam-se em restaurar "o toma lá, dá cá". Acertaram com o Planalto o "toma lá". Falta definir o "dá cá".
Palavra de rei não volta atrás, e quem já foi rei nunca perde a majestade. Bolsonaro nunca foi rei, e como não se perde o que nunca se teve, sua alteza irreal não tarda, não falha e não desconversa, apenas mente um pouco. Como fez em Propriá (SE), ao prometer vacinar toda a população "num curto espaço de tempo” e pregar contra o isolamento social após ter dito na véspera que a pandemia era coisa inventada.
Bolsonaro já declarou que não cogita tomar a vacina. Mas não abre mão de imunizar o seu mandato. Dos cinco presidentes eleitos no Brasil pós-redemocratização, dois foram expulsos de campo antes do apito final — uma taxa de mortalidade política de (se 40%) oito vezes maior que a da Covid no Amazonas (5%). A proliferação de pedidos de impeachment empurra o atual governo para o grupo de risco. Caindo o capitão, o índice subiria para 60%. Para evitar o massacre, os operadores do Planalto articulam a eleição de Lira na Câmara e Pacheco no Senado, escancarando o cinismo partidário.
Os partidos, que um dia representaram os interesses de
grupos ou corporações, ora representam apenas os próprios interesses. Das 33
legendas com registro no TSE, 27
ocupam assentos no Congresso. Um país com tantos partidos não tem partido
nenhum, apenas falsos oposicionistas que negociam cargos e governistas que
abocanham nacos do Orçamento e boquinhas na máquina federal.
Bolsonaro, o candidato
antissistema que se tornou um presidente sistêmico, joga o jogo num sistema
partidário apinhado de legendas que perderam a função e se tornaram
superestruturas financiadas pelo déficit público. Antes de decidir sobre a
compra das vacinas, ele orça o valor do apoio legislativo do Centrão — que anda
com o código de barras na lapela e uma maquininha de remarcar preços em cada
mão. Os 63 pedidos de impeachment inflacionaram o mercado da baixa política.
Na campanha, o Centrão foi agredido por Bolsonaro. Mas Centrão que é Centrão não fica com raiva. Fica com
tudo. A blindagem custará caro. Com os votos das marafonas do parlamento pela
hora da morte, é natural que o capitão esmiuçasse o preço da imunização do seu
mandato. Paulo Guedes deve estar
orgulhoso da responsabilidade fiscal exibida pelo chefe.
Bolsonaro decidiu
provar ao mundo que é errando que se aprende... a errar. Alguém precisa
suspender o leite condensado servido no café da manhã do Alvorada. Do contrário,
o capitão alucinado continuará enxergando a terra arrasada da pandemia como um
paraíso edulcorado.
Com Josias de Souza.