sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

QUE PAÍS É ESTE?


A prisão do deputado Daniel Silveira decorreu de ofensas “gravíssimas”, e imunidade parlamentar não pode ser confundida com impunidade, disse o ministro Alexandre de Moraes. No entanto, mesmo tendo sido chancelada por unanimidade no plenário do STF, a decisão envolve a prisão de um deputado federal e precisa passar pelo crivo da Câmara. E é aí que mora o perigo.

Segundo Moraes, o fato de o vídeo ter sido postado nas redes sociais caracteriza a “infração permanente” e justifica a “prisão em flagrante”. Com efeito, o art. 303 do CPP realmente fala em "infrações permanentes" — isto é, que não se dão só em um dado momento, mas se perpetuam no tempo. Portanto, se flagrante permanente é aquele onde os efeitos e os elementos do crime perpetuam no tempo, a manutenção do vídeo fez com que a modalidade de flagrante permanecesse. Mas o Direito está longe de ser uma ciência exata.

Para alguns juristas, a possibilidade de flagrante realmente teria se perpetuado enquanto o vídeo estava no ar, mas muitos entendem que, no caso em tela, não houve crime. Há quem diga inclusive que Moraes inovou o conceito de infração permanente, pois o que veio após a publicação do crime foi mera disponibilização; ao estender a noção de flagrante para o ambiente virtual, o togado criou um “flagrante fictício”.

Observação: A prisão em flagrante delito é uma prisão “processual” embasada no art. 5, inciso LXI da Constituição e regulamentada pelos artigos 301 a 310 do CPP. O que a configura, conforme, aliás, como o próprio nome sugere, é o momento em que o autor do delito é flagrado praticando-o ou acabado de praticá-lo (com as calças na mão e batom na cueca, para usar o bom português do asfalto). As hipóteses de prisão em flagrante estão elencadas nos incisos I e II do artigo 302 do CPP. No tocante ao inciso II, sua diferença em relação ao inciso I é que ele se aplica ao sujeito que acaba de cometer a infração penal (modalidade prevista no artigo 302) e só é possível se o autor do delito ainda é encontrado na cena do crime (os incisos III e IV do art. 302 só se aplicam ao sujeito que acabou de deixar o local do crime).

Outro ponto questionável é a liberdade de expressão. Há quem considere a prisão do deputado bolsonarista “mais uma mazela do ativismo judicial que tomou conta do STF”, que a justificativa do ministro (com base na Lei de Segurança Nacional) seria descabida, até porque a LSN foi criada sob uma égide de valores completamente díspares aos da Carta de 1988, e nenhum dos artigos citados pelo magistrado corresponde ao que o deputado fez em seu vídeo. O artigo 17, por exemplo, fala em “tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”, e o artigo 22 coíbe a propaganda “de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”.

Igualmente controversa é a questão da imunidade parlamentar. Segundo o artigo 53 da Constituição, deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, podendo ser presos somente em flagrante — como ocorreu no caso em tela — e por crime inafiançável, situação em que os autos devem ser remetidos à Casa respectiva, que terá prazo de vinte e quatro horas para ratificar ou revogar a prisão do parlamentar.

Moraes afirmou que “atentar contra as instituições, contra o Supremo, contra o Poder Judiciário, contra a democracia, contra o Estado de Direito não configura exercício da função parlamentar a invocar a imunidade constitucional do artigo 53, caput. As imunidades surgiram para a preservação do Estado de Direito”. Mas o jurista Ives Gandra, que participou das audiências públicas da Constituinte em 1987 e 1988, entende que essa interpretação é equivocada.

O ministro teria que pedir autorização para a Câmara dos Deputados para prender o deputado, como a Constituição determina. Sem autorização do Congresso, insisto, ele não poderia mandar prender, por manifestação, um deputado, que é inviolado em suas manifestações. Isso, a meu ver, pode representar cerceamento da livre expressão dos deputados”, frisou Gandra (que, by the way, é bolsonarista “no úrtimo”).

A Mesa Diretora da Câmara dos Deputados decidiu (finalmente) reativar o Conselho de Ética da Casa — que não estava funcionando devido à pandemia. Talvez então os nobres deputados defenestram Aécio Neves e a dublê de cantora gospel e pastora papa-dízimo Flordelis, apontada como mandante da morte do marido, Anderson do Carmo, que desde junho de 2019 se escuda na imunidade parlamentar e segue firme na vidinha de deputada, religiosa e cantora, com fé na expectativa de que a providência divina irá livrá-la da cadeia (mas, por via das dúvidas, alinhava no plano terreno alianças políticas para se salvar na Câmara e, ao mesmo tempo, evitar a derrocada de sua igreja).

A audiência de custódia de Silveira estava marcada para as 14h30 de ontem, por videoconferência. Às 16h30 eu recebi a informação de que o juiz Airton Vieira, auxiliar do ministro Alexandre de Moraes, determinou a manutenção da prisão do parlamentar até que a Câmara dos Deputados delibere sobre o assunto. O que deve acontecer na tarde de hoje.

De acordo com Monica Bergamo, os togados devem relaxar a prisão e determinar que o deputado cumpra a pena em casa, com tornozeleira eletrônica e sem poder usar as redes sociais. Ainda segundo a colunista da Folha, a Corte deve mantê-lo preso por uma semana. A possibilidade foi discutida após a Câmara sinalizar que pode autorizar a prisão do parlamentar, e assim evitar uma crise com o Supremo. Ocorre que, quando Monica deu esse pitaco, não se sabia que a PF encontraria dois celeulares na cela, ou sala, em que o Daniel estava preso. Ainda não foi revelado quem os contrabandeou (se um advogado, alguém que visitou o detido, ou mesmo os próprios policiais), nem o uso que o brucutu fez dos aparelhos, mas só o fato de eles terem sido descobertos pode mudar o rumo dos acontecimentos e a sorte do fiduma.

Também estava prevista para ontem uma reunião de líderes da Câmara com o presidente Arthur Lira e a Mesa Diretora. A sessão ficou para o final da terde de hoje e a decisão será tomada por maioria simples (bastam 257 votos dos 513 deputados). Em plenário, os deputados definirão ainda se será aberto um processo disciplinar no Conselho de Ética. PT, PDT, PSB, PCdoB, PSOL e Rede, que somam 126 deputados, protocolaram uma representação no Conselho, pedindo a cassação de Silveira por quebra de decoro.

Silveira também foi denunciado pela PGR por agressões verbais e graves ameaças contra ministros da Corte para favorecer interesse próprio (em três ocasiões); incitar o emprego de violência e grave ameaça para tentar impedir o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário, por duas vezes, e incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o STF, ao menos uma vez. Com isso, sua conduta também terá implicações jurídicas, e os crimes a ele atribuídos têm pena de reclusão entre um e quatro anos (em havendo condenação antes da eleição do ano que vem, ele será enquadrado na Lei da Ficha Limpa e ficará inelegível).

Mudando de um ponto a outro: embrulhada na sacrossanta imunidade parlamentar, a deputada Flordelis segue desfrutando imóvel funcional, salário de R$ 33,7 mil por mês, dois carros, passagens aéreas e consultoria de mídias sociais — utilíssima na preservação de sua arranhada imagem. E também faz questão de cultivar boas relações com o poder, tecendo elogios nas redes sociais, entre outros, a Jair Bolsonaro e a Arthur Lira.

Principal nome na trama macabra que resultou no homicídio de Anderson, com quem foi casada por 25 anos, Flordelis nega participação no crime e põe a culpa em parte da prole. Uma neta e sete filhos estão na cadeia por envolvimento no caso. Todos, com exceção de Lucas, que comprou a arma do crime, apoiam a mãe e se esforçam por inocentá-la. A filha biológica Simone dos Santos confessou em juízo que foi a mentora intelectual do assassinato, junto com uma irmã adotiva, para se livrar das investidas sexuais do padrasto. A polícia, no entanto, considera que o pivô do crime é mesmo a deputada, interessada em se livrar do controle do marido, que dominava tanto sua carreira quanto as suas finanças.

As investigações mostram que, junto com parte dos filhos, Flordelis arquitetou um plano para envenená-lo que começou em maio de 2018, mais de um ano antes do assassinato, quando ele foi internado pela primeira vez com gastroenterite aguda. “As persistentes tentativas de envenenamento geraram cada vez mais internações”, aponta o inquérito. A certa altura, uma das noras do casal passou cinco dias hospitalizada depois de tomar, por engano, um suco destinado ao sogro. “Ele é ruim de morrer, não morre nunca”, teria dito a filha Simone, segundo relato de um irmão, Luan dos Santos, de acordo com reportagem publicada na edição de Veja da semana passada.

Nascida e criada na favela do Jacarezinho, prossegue a matéria, Flordelis fez diversas plásticas nos seios, glúteos e nariz, repaginou o guarda-roupa com grifes caras e, para disfarçar um início de calvície, passou a desfilar com perucas variadas — seriam seis, cada uma de R$5mil. Depois da morte do marido, o processo de embelezamento se acentuou, com direito a aplicações de Botox pelo menos três vezes por ano e outros tratamentos estéticos. Há três anos, ela se lançou candidata a deputada federal e foi a quinta mais votada no Rio de Janeiro (mais uma prova incontestável que o dedo podre do eleitorado está por trás de toda a merdeira que assola nosso país).

Com a renda da igreja secando, a deputada se sustenta atualmente com o mandato parlamentar — salário, verba de gabinete de R$ 2,1 milhões e, em 2020, um adendo de R$ 1,3 milhão para despesas extras. Também teve liberados R$ 10,1 milhões em emendas parlamentares, que distribui a seu bel-prazer. Infratora contumaz de medidas cautelares, que a impedem de viajar e a obrigam a estar em casa entre 23 e 6 horas, ela também desliza no uso da tornozeleira: segundo a central de monitoramento da Secretaria de Administração Penitenciária, as baterias foram descarregadas nos dias 11, 25 e 27 de dezembro. Até agora, Flordelis teve sorte: todos os seus pecados foram perdoados.

Voltando (de novo) ao caso do deputado puxa-saco do capitão, dá-se de barato que Lira convencerá o STF a “aliviar” a situação, substituindo a prisão por medidas cautelares. Mas vai ser preciso “combinar com os russos”, e o ministro Marco Aurélio já deixou claro que não é a favor da ideia: Esse cachimbo eu não fumo. Não ocupo uma cadeira voltada às relações públicas. Sou juiz. Terminarei em julho meus dias de juiz. Não pretendo mudar meu modo de agir. Que acordo faríamos? Um acordo para passar a mão na cabeça desse rapaz?

Segundo Josias de Souza, o presidente da Câmara passou a quarta-feira tentando costurar um entendimento. Em troca da abertura da cela, os deputados se comprometeriam a julgar Silveira rapidamente no Conselho de Ética da Câmara, podendo suspender-lhe o mandato ou até cassá-lo. Todavia, um acordo desqualificaria o Supremo e a Câmara ficará mal se não referendar a prisão — algo que depende dos votos de 257 dos 513 deputados.

"Vamos ver o que o Arthur Lira vai conseguir com os seus pares. Eles prestam contas não ao Supremo, mas à sociedade. Embora a memória do brasileiro seja ruim, é preciso lembrar que há eleições de quatro em quatro anos", pontuou Marco Aurélio, que enxerga as agressões do deputado bolsonarista aos togados, ao Supremo e à própria democracia como "visão totalitária de uma corrente do populismo de direita”. Mas aprovou o silêncio de Bolsonaro diante da prisão do baba-ovo: "É uma posição nova. Ele está colocando as barbas de molho", disse Mello.

O decano afirmou também que jamais viu “algo tão virulento” em seus 40 anos de magistratura; que esses fatos têm sido reiterados de forma cada vez mais estarrecedora; que ouviu dizer que esse deputado teria sido eleito impulsionado por um Estado paralelo representado pela delinquência, sobretudo pelas milícias, e acabou eleito, a despeito de todo o seu currículo de transgressões. Na avaliação do ministro, a Câmara poderia vir a reverter a decisão monocrática de Alexandre de Moraes, mas suspender um ato de todo o colegiado, sem qualquer voto divergente, repercutiria mal junto à sociedade.

Pelo artigo 53 da Constituição, ponderou o magistrado, os deputados podem afastar a prisão, mas, se não há nesse caso concreto base para a confirmação da prisão, em que caso haverá? O Supremo não pode fazer acordo. Não se pode dar o dito pelo não dito. Isso desqualificaria a Corte, que é a última trincheira da cidadania. Embora a memória do brasileiro seja ruim, é preciso lembrar que de quatro em quatro anos há eleições.

Sobre a manifestação do general Eduardo Villas Bôas, usada por Silveira como pretexto para atacar o Supremo, o togado disse ser matéria requentada, que na época do julgamento de um habeas corpus de Lula o general insinuou que as Forças Armadas estavam preocupadas, mas que ao Comandante do Exército cabe comandar o Exército. Nada disso ajuda, disse. “Com essas crises, o presidente tende para um grupo de apoiadores. E é um grupo grande. O que se vê é uma fragilização das instituições.

Antes de concluir, vale a pena dedicar algumas linhas a um assunto que costuma suscitar dúvidas. Sem mais delongas, vamos a ele:

O termo “prisão provisória” abrange vários “tipos” de prisão. Uma pessoa presa provisoriamente pode cumprir essa prisão em caráter preventivo ou temporário. Mas note que uma prisão provisória” não é necessariamente temporária, pois o acusado pode ser mantido preso até o julgamento ou ser solto, a depender do entendimento do juiz. Algumas prisões provisórias têm caráter cautelar, ou seja, visam impedir o acesso a eventuais provas (e respectiva destruição), o que poderia comprometer a investigação. Mas vale salientar que essa medida costuma se limitar a crimes graves.

A prisão preventiva é um “tipo” de prisão provisória, e pode ser solicitada a qualquer momento da investigação, sempre que surgirem provas que incriminem o suspeito. Nesse caso, o acusado pode ser mantido preso por tempo indefinido (até o julgamento ou pelo tempo que for preciso para não comprometer a investigação). Essa medida costuma ser aplicada em casos que envolvem violência doméstica ou familiar, sobretudo quando a vítima é mulher, adolescente, criança, idoso ou pessoa com deficiência ou algum tipo de doença. Mas também pode ser aplicada em alguns casos de crimes dolosos (com o objetivo de proteger a vítima, testemunhas, provas etc. visando ao não comprometimento da investigação criminal).

A prisão temporária é outro “tipo” de prisão provisória com caráter cautelar, mas sua duração é limitada a 5 dias, podendo ser prorrogada por outros cinco. Quando o crime é considerado hediondo, o período limite de prisão temporária é de 30 dias, podendo também ser prorrogado. Ela costumar ser aplicada no início de uma investigação policial, visando permitir que as provas sejam coletadas sem qualquer interferência do acusado, que fica sob vigilância durante o período estipulado. Além disso, ela pode ser decretada quando o investigado não possui residência fixa ou quando envolve crimes coo homicídio doloso, roubo, sequestro, estupro, tráfico de entorpecentes, cárcere privado etc. 

Note que a prisão temporária pode evoluir para preventiva, a depender das provas coletadas no transcurso da investigação.