domingo, 21 de fevereiro de 2021

SOBRE O TIGRE QUE VIROU GATINHO

 

Era tão certo quanto a morte, os impostos e as estultices deste governo que a Câmara chancelaria a prisão do deputado troglodita bolsonarista (redundância, mas enfim...), até porque reverter uma liminar decretada monocraticamente pelo ministro Alexandre de Moraes era uma coisa e revogar uma decisão unânime dos 11 togados, outra, bem diferente.

A situação do deputado falastrão, que já não era muito confortável, piorou depois que agentes da PF encontraram dois celulares escondidos no meio de suas roupas, no alojamento em que ele ficou detido antes de ser transferido para o Batalhão Especial Prisional (BEP). Estranhamente, um dos aparelhos havia sido apreendido no dia em que da prisão e entregue a um assessor parlamentar na terça-feira passada.

O rufião de lupanar de quinta rugiu como um tigre no vídeo malcriado, latiu como um poodle na audiência de custódia e ronronou como um gatinho na sessão plenária em que seus pares decidiram não afrouxar sua prisão (confira neste vídeo). Mas o mais surpreendente foi o placar, que superou as previsões mais ousadas: 364 votos favoráveis à mantença da prisão e 130 contrários (e 3 abstenções).

Observação: O pagode “Bicho Feroz”, do inesquecível Bezerra da Silva (1927-2005), parece ter sido inspirado no nobre deputado. Confira: “Você com revólver na mão é um bicho feroz. Sem ele, anda rebolando e até muda de voz. É que a rapaziada não sabe. Quando você entrou em cana, lavava a roupa da malandragem e dormia no canto da cama. Hoje está em liberdade e anda trepado com marra de cão. Eu conheço seu passado na cadeia; seu negócio é somente pagar sugestão. Olha aí, vacilão, simplesmente eu tô dando esse alô porque sei que você não é de nada. Quando leva um arrocho dos homens, de bandeja entrega toda rapaziada. Acha bonito ser bicho solto, mas não tem disposição. Quando entrar em cana novamente, vai passar lua de mel outra vez na prisão. Olha aí, safadão!

A Constituição de 1988 foi promulgada durante a gestão do primeiro presidente civil desde o golpe militar de 1964, ainda em meio à “ressaca” dos 21 anos de ditadura. É compreensível, portanto, que os constituintes buscassem resguardar ao máximo o direito de livre expressão dos parlamentares. Mas daí ao transformar a imunidade parlamentar em salvo-conduto para cometer crimes impunemente vai uma longa distância. Ou deveria. Basta lembrar o caso emblemático da dublê de cantora gospel e pastora papa-dízimo Flordelis, que responde a processo como mandante do assassinato do marido e continua dando expediente na Câmara (deputados são eleitos para representar o povo no Congresso Nacional, e sua principal tarefa consiste na elaboração de leis).

A Carta Magna também garantiu ao plenário da Câmara Federal a prerrogativa de abrir a cela de deputados presos em flagrante. No caso em exame, as ponderações do decano do STF me parecem irretorquíveis:

"Vão calar o Supremo para dar voz a um deputado desqualificado? (...) Estou com 74 anos, 42 em colegiado judicante. E jamais imaginei vivenciar o que vivenciei. Jamais imaginei que uma fala pudesse ser tão ácida, tão agressiva, tão chula no tocante a instituições. O ato do Supremo fica submetido a uma condição resolutiva. Confirmado, prevalece. Não confirmado, ele cai. Essa condição resolutiva é acionada pela Câmara."

Na noite de sexta-feira, a despeito de alguns discursos vergonhosos — como os do Major Vitor Hugo e sua colega bolsonarista Carla Zambelli —, os nobres parlamentares acharam por bem não se arriscar a transformar a operação de salvamento de um Zé Ninguém num processo de desmoralização do Judiciário. Até porque, quem tem juízo não cutuca onça com vara curta, e como a terça parte dos deputados federais é composta por investigados e réus no STF, a conclusão é óbvia.

Não arrisco um palpite sobre como o conselho de ética (?!) da Câmara vai se pronunciar. Se a decisão fosse tomada nos próximos dias, acredito que o brucutu do capitão seria cassado. Mas se demorar semanas (ou meses), é bem possível que ele seja apenas suspenso ou advertido — embora devamos ter em mente que o congressista falastrão será julgado como réu em ação penal a ser aberta pelo STF a pedido da PGR e, como bem sintetizou Josias de Souza, logo perceberá que se meteu num enrosco que faz com que seu pesadelo seja melhor do que o despertar”.

No momento, a cassação do mandato seria um grande negócio para o despejador de vitupérios. Sem prerrogativa de foro, a denúncia formulada contra ele pela PGR baixaria para a primeira instância, e sua defesa teria acesso ao caudaloso manancial de recursos protelatórios que o ordenamento jurídico brasileiro oferece aos réus. Preservando o mandato, a bênção do foro privilegiado se tornará uma maldição, porque será julgado no Supremo pelos ministros que ele disse que gostaria de ver surrados nas ruas — e, se for condenado, não terá a quem recorrer.

Vejam como são as coisas... O tigre selvagem que se achava a última bolacha do pacote descobriu em menos de uma semana que é um pacote sem bolachas. Tinha-se na conta de amigo do morubixaba e achava que o corporativismo dos guerreiros da tribo o protegeria das consequências de seus rosnados. Não considerou o fato (notório, diga-se) de que o grande chefe caga e anda para os guerreiros que tombam feridos no campo de batalha, e que seus pares concluíram que não valia a pena acionar o espírito de porco, digo, de corpo, para defender um corpo estranho no ninho. De repente, “nada” tornou-se para o Daniel Silveira “uma palavra que ultrapassa tudo”.