Até outro dia, o brasileiro morria de Covid. Hoje, morre por falta de vacinas — uma consequência da incompetência que Bolsonaro não tem como terceirizar.
Submetido a
panelaços e estatísticas duras de roer — 1.840 mortos pela Covid num único dia, 259.402 cadáveres em um ano —, Bolsonaro
declarou que dispõe de um plano para lidar com a pandemia, e que só não o
implantou porque o STF não deixou.
De acordo com Josias de Souza, um ministro daquela
Corte ironizou: "Os brasileiros
são seres azarados. Os mortos por covid logo somarão 300 mil. Perdem a vida
antes de conhecer os talentos ocultos do chefe da nação, Morrem sem saber que é
um gênio o presidente do Brasil." O jornalista não dá nome aos bois
(ao boi, no caso), mas eu apostaria em Marco Aurélio (posso até ouvi-lo pronunciando
as palavras).
"Se eu tiver poder para decidir, eu tenho o meu programa, o meu projeto pronto para botar em prática no Brasil. Agora, preciso ter autoridade. Se o Supremo Tribunal Federal achar que pode dar o devido comando dessa causa a um poder central, que eu entendo ser legítimo e meu, eu estou pronto para botar o meu plano em prática", declarou Bolsonaro.
"Lamento ter que dizer algo tão rude, mas Sua Excelência o presidente da República mente", rebateu o magistrado, que enviou à coluna link que conduz a uma nota divulgada pelo STF em 18 de janeiro. Pediu licença para ler um trecho:
"Na verdade,
o plenário decidiu, no início da pandemia, em 2020, que União, estados,
Distrito Federal e municípios têm competência concorrente na área da saúde
pública para realizar ações de mitigação dos impactos do novo coronavírus. Esse
entendimento foi reafirmado pelos ministros do STF em diversas ocasiões. Ou
seja, conforme as decisões [tomadas pelo STF], é responsabilidade de todos os
entes da federação adotarem medidas em benefício da população brasileira no que
se refere à pandemia." E concluiu o togado: "Ninguém amarrou o presidente.
Ele está livre para exercitar sua genialidade".
A crise sanitária
mudou de patamar para Jair Bolsonaro.
De franco-atirador, o presidente virou alvo. Deve-se a mudança a uma razão
singela:
Há três meses, Bolsonaro dizia que a crise da "gripezinha"
estava no "finalzinho". Desde então, o problemão fica cada vez
mais grandão. A mortandade diária se aproxima de 2 mil. O total de mortos passa
de 260 mil. Os sanitaristas estimam que logo o caos nas UTIs dividirá o noticiário com uma tragédia adicional: o colapso
funerário. O Brasil está na bica de virar uma espécie de Manaus hipertrofiada.
Todos já enxergaram
o novo calcanhar de vidro de Bolsonaro. Os aliados do centrão e auxiliares do
Planalto aconselham o presidente a ajustar o discurso, priorizando a vida. A
turma do "fique em casa" decidiu dar o troco. Como o sapo de Guimarães Rosa, governadores e
prefeitos, alvos preferenciais de Bolsonaro,
dão os seus pulos não por boniteza, mas por precisão. Eles precisam de socorro.
Bolsonaro, como se sabe, odeia a realidade. Mas a realidade ainda é o único
lugar onde se pode adquirir vacinas. O presidente faz por pressão o que deixou
de fazer por opção. Autorizados pelo Supremo,
estados e municípios ameaçam comprar vacinas sem a intermediação do governo
federal, a quem caberia apenas pagar a conta posteriormente.
Acossado, Bolsonaro viu-se compelido a autorizar
o Ministério da Saúde a ir às compras. Em dezembro, o capitão dizia que cabia
aos laboratórios cortejar o Brasil. Agora, o general Pesadelo, gênio da logística, corre atrás até da Pfizer, fabricante da vacina que faz
virar jacaré. A alegação de que só agora o Congresso autorizou é apenas uma
nova versão para a boa e velha conversa fiada.
Para se reposicionar
em cena, Bolsonaro teria de
reconhecer que seu governo caiu num buraco. O reconhecimento não resolveria
todo o problema. Mas evitaria que o presidente continuasse jogando terra sobre
si mesmo e em cima dos brasileiros, como voltou a fazer nos últimos dias. Na
sua tradicional live das quintas-feiras, o capitão até tentou soar como um
ex-negacionista. Mas foi pouco convincente.
Disse Bolsonaro: "Agora, vêm essas narrativas de que somos negacionistas, não
acreditamos em vacinas, aquela história toda para boi dormir..." O
negacionismo está grudado na imagem de Bolsonaro
como as escamas no peixe. Seu desprezo pelas vacinas está fartamente
documentado, inclusive em vídeo. Bolsonaro declarou no ano passado que não
compraria a vacina chinesa do Butantan
nem com autorização da Anvisa.
Refugou a vacina da Pfizer por sete
valiosos meses. Fez piada com o Programa
Nacional de Vacinação, declarando que, no Palácio da Alvorada, o único a se
vacinar seria Faísca, o cachorro da
família.
Ainda que persista, Bolsonaro terá dificuldades de se
livrar da pecha de negacionista. Ela aparece de repente, do nada. Como num
despacho emitido pela ministra Rosa
Weber, do STF. Ao ordenar ao
Ministério da Saúde que financie leitos de UTI
para os doentes do Piauí e de outros estados que necessitem, Rosa trocou o tom moderado por um
timbre de admoestação.
"O discurso negacionista é um desserviço
para a tutela da saúde pública nacional", declarou Rosa, exibindo os seus espinhos. "A omissão e a negligência com a saúde
coletiva dos brasileiros têm como consequências esperadas, além das mortes que
poderiam ser evitadas, o comprometimento, muitas vezes crônico, das capacidades
físicas dos sobreviventes que são significativamente subtraídos em suas esferas
de liberdades".
Ninguém imagina que Bolsonaro vire um ex-Bolsonaro. Ao contrário. Se as
declarações feitas nas últimas horas serviram para alguma coisa foi para
recordar que Bolsonaro quando
imprensado, torna-se ainda mais Bolsonaro.
A questão é que ficou mais fácil expor a falta de nexo do discurso oficial. O
presidente defende que os "maricas"
saiam às ruas para enfrentar o vírus de peito aberto. Simultaneamente, graças
às suas idiossincrasias e à inépcia do general
Pesadelo, o governo retarda o acesso às vacinas que livrariam os afrescalhados
do risco de acabar numa UTI.
Até Paulo Guedes já percebeu que Bolsonaro tornou-se um personagem
ilógico. Nesta quinta-feira, o presidente declarou: "Tem idiota que pede compra de vacina. Só se for na casa da tua mãe."
Horas depois, o ministro da Economia rendeu homenagens ao óbvio: "Primeiro a saúde. Sem saúde não há
economia. E, da mesma forma, a vacinação em massa é o que vai nos permitir
manter a economia em funcionamento."