sexta-feira, 12 de março de 2021

É UM GÊNIO!

Antes de qualquer outra coisa, sugiro assistir a este clipe de vídeo:  


Não como discordar. 

Dito isso, vamos adiante:

Até outro dia, o brasileiro morria de Covid. Hoje, morre por falta de vacinas — uma consequência da incompetência que Bolsonaro não tem como terceirizar.

Submetido a panelaços e estatísticas duras de roer — 1.840 mortos pela Covid num único dia, 259.402 cadáveres em um ano —, Bolsonaro declarou que dispõe de um plano para lidar com a pandemia, e que só não o implantou porque o STF não deixou.

De acordo com Josias de Souza, um ministro daquela Corte ironizou: "Os brasileiros são seres azarados. Os mortos por covid logo somarão 300 mil. Perdem a vida antes de conhecer os talentos ocultos do chefe da nação, Morrem sem saber que é um gênio o presidente do Brasil." O jornalista não dá nome aos bois (ao boi, no caso), mas eu apostaria em Marco Aurélio (posso até ouvi-lo pronunciando as palavras).

"Se eu tiver poder para decidir, eu tenho o meu programa, o meu projeto pronto para botar em prática no Brasil. Agora, preciso ter autoridade. Se o Supremo Tribunal Federal achar que pode dar o devido comando dessa causa a um poder central, que eu entendo ser legítimo e meu, eu estou pronto para botar o meu plano em prática", declarou Bolsonaro

"Lamento ter que dizer algo tão rude, mas Sua Excelência o presidente da República mente", rebateu o magistrado, que enviou à coluna link que conduz a uma nota divulgada pelo STF em 18 de janeiro. Pediu licença para ler um trecho: 

"Na verdade, o plenário decidiu, no início da pandemia, em 2020, que União, estados, Distrito Federal e municípios têm competência concorrente na área da saúde pública para realizar ações de mitigação dos impactos do novo coronavírus. Esse entendimento foi reafirmado pelos ministros do STF em diversas ocasiões. Ou seja, conforme as decisões [tomadas pelo STF], é responsabilidade de todos os entes da federação adotarem medidas em benefício da população brasileira no que se refere à pandemia." E concluiu o togado: "Ninguém amarrou o presidente. Ele está livre para exercitar sua genialidade".

A crise sanitária mudou de patamar para Jair Bolsonaro. De franco-atirador, o presidente virou alvo. Deve-se a mudança a uma razão singela:

Há três meses, Bolsonaro dizia que a crise da "gripezinha" estava no "finalzinho". Desde então, o problemão fica cada vez mais grandão. A mortandade diária se aproxima de 2 mil. O total de mortos passa de 260 mil. Os sanitaristas estimam que logo o caos nas UTIs dividirá o noticiário com uma tragédia adicional: o colapso funerário. O Brasil está na bica de virar uma espécie de Manaus hipertrofiada.

Todos já enxergaram o novo calcanhar de vidro de Bolsonaro. Os aliados do centrão e auxiliares do Planalto aconselham o presidente a ajustar o discurso, priorizando a vida. A turma do "fique em casa" decidiu dar o troco. Como o sapo de Guimarães Rosa, governadores e prefeitos, alvos preferenciais de Bolsonaro, dão os seus pulos não por boniteza, mas por precisão. Eles precisam de socorro.

Bolsonaro, como se sabe, odeia a realidade. Mas a realidade ainda é o único lugar onde se pode adquirir vacinas. O presidente faz por pressão o que deixou de fazer por opção. Autorizados pelo Supremo, estados e municípios ameaçam comprar vacinas sem a intermediação do governo federal, a quem caberia apenas pagar a conta posteriormente.

Acossado, Bolsonaro viu-se compelido a autorizar o Ministério da Saúde a ir às compras. Em dezembro, o capitão dizia que cabia aos laboratórios cortejar o Brasil. Agora, o general Pesadelo, gênio da logística, corre atrás até da Pfizer, fabricante da vacina que faz virar jacaré. A alegação de que só agora o Congresso autorizou é apenas uma nova versão para a boa e velha conversa fiada.

Para se reposicionar em cena, Bolsonaro teria de reconhecer que seu governo caiu num buraco. O reconhecimento não resolveria todo o problema. Mas evitaria que o presidente continuasse jogando terra sobre si mesmo e em cima dos brasileiros, como voltou a fazer nos últimos dias. Na sua tradicional live das quintas-feiras, o capitão até tentou soar como um ex-negacionista. Mas foi pouco convincente.

Disse Bolsonaro: "Agora, vêm essas narrativas de que somos negacionistas, não acreditamos em vacinas, aquela história toda para boi dormir..." O negacionismo está grudado na imagem de Bolsonaro como as escamas no peixe. Seu desprezo pelas vacinas está fartamente documentado, inclusive em vídeo. Bolsonaro declarou no ano passado que não compraria a vacina chinesa do Butantan nem com autorização da Anvisa. Refugou a vacina da Pfizer por sete valiosos meses. Fez piada com o Programa Nacional de Vacinação, declarando que, no Palácio da Alvorada, o único a se vacinar seria Faísca, o cachorro da família.

Ainda que persista, Bolsonaro terá dificuldades de se livrar da pecha de negacionista. Ela aparece de repente, do nada. Como num despacho emitido pela ministra Rosa Weber, do STF. Ao ordenar ao Ministério da Saúde que financie leitos de UTI para os doentes do Piauí e de outros estados que necessitem, Rosa trocou o tom moderado por um timbre de admoestação.

"O discurso negacionista é um desserviço para a tutela da saúde pública nacional", declarou Rosa, exibindo os seus espinhos. "A omissão e a negligência com a saúde coletiva dos brasileiros têm como consequências esperadas, além das mortes que poderiam ser evitadas, o comprometimento, muitas vezes crônico, das capacidades físicas dos sobreviventes que são significativamente subtraídos em suas esferas de liberdades".

Ninguém imagina que Bolsonaro vire um ex-Bolsonaro. Ao contrário. Se as declarações feitas nas últimas horas serviram para alguma coisa foi para recordar que Bolsonaro quando imprensado, torna-se ainda mais Bolsonaro. A questão é que ficou mais fácil expor a falta de nexo do discurso oficial. O presidente defende que os "maricas" saiam às ruas para enfrentar o vírus de peito aberto. Simultaneamente, graças às suas idiossincrasias e à inépcia do general Pesadelo, o governo retarda o acesso às vacinas que livrariam os afrescalhados do risco de acabar numa UTI.

Até Paulo Guedes já percebeu que Bolsonaro tornou-se um personagem ilógico. Nesta quinta-feira, o presidente declarou: "Tem idiota que pede compra de vacina. Só se for na casa da tua mãe." Horas depois, o ministro da Economia rendeu homenagens ao óbvio: "Primeiro a saúde. Sem saúde não há economia. E, da mesma forma, a vacinação em massa é o que vai nos permitir manter a economia em funcionamento."

Só os idiotas não enxergam a lógica do raciocínio de Guedes. Mas Bolsonaro, que não se considera um bobo, guia-se pela lógica de um candidato à reeleição em apuros. Vendo sua curva de popularidade decair, o capitão adula seus devotos mais radicais com um discurso eletrificado. Não é certo que vencerá a disputa presidencial de 2022. Mas já conseguiu dar ao trono uma aparência de cadeira elétrica.

Com Josias de Souza