Só o ministro Fachin e o Senhor das Esferas sabem ao certo se a decisão da última segunda-feira visava salvar o legado da Lava-Jato a despeito de favorecer Lula ou favorecer Lula e, en passant, esvaziar o pedido de suspeição de Moro. Mas ficou evidente que a estratégia do relator dos processos da força-tarefa no STF foi sopa no mel para o ex-presidente ficha-lavada e serviu de sinal de alerta para o ex-juiz pôr as barbichas de molho.
Observação: A decisão do ministro não
transformou Lula na “alma viva mais honesta do Brasil”; apenas
transferiu os processos da 13ª Vara Federal de Curitiba para a Justiça
Federal do DF, para que sejam
refeitos. Mas concedeu ao petista tempo precioso para evitar o
restabelecimento das condenações, sem mencionar que a tramitação das ações manterá suas culpas sob os holofotes da mídia.
Num contragolpe
veloz, o todo-poderoso Gilmar Mendes
levou a julgamento na 2ª Turma um
trunfo que mantinha na gaveta havia mais de dois anos: o pedido de suspeição de
Sergio Moro. Em 2018, depois que Fachin e Cármen Lúcia rejeitaram
a tese esposada pela defesa de Lula,
o semideus togado, receando que o fiel da balança (na época, o decano Celso de Mello) pendesse para o “lado
errado” e atrapalhasse seus planos, valeu-se de um pedido de “vista obstrutiva” para suspender o
julgamento do processo. Agora, com Mello
aposentado, o “peixe” de Bolsonaro ocupando
o lugar do ex-decano na 2ª Turma e a
mudança dos ventos produzida pela “vaza-jato
de Verdevaldo
das Couves”, a
encarnação de Amon-Rá decidiu que o
dia do ajuste de contas finalmente chegou.
Observação: Em teoria, um juiz pede vista (e não “vistas”, como muita gente diz) quando precisa de
mais tempo para estudar o processo. Na prática, esses pedidos têm por objetivo
interromper o julgamento da ação. Essa prática espúria veio do Legislativo, de
carona com o deputado Nelson Jobim
— que FHC nomeou ministro
da Justiça em 1995 e promoveu a ministro do STF em 1997. Pelo regimento interno do Supremo, a devolução dos autos deve ser
feita até a segunda sessão
subsequente à do pedido de vista, mas ninguém se atém a isso, e o autor do
pedido pode devolver o processo somente quando vislumbrar a possibilidade de um
ou mais magistrados mudarem o voto, ou quando a maioria formada já não fizer
mais diferença.
Deu-se início a uma
nova fase do esquartejamento da Lava-Jato.
Na decisão da véspera, Fachin
anotara que a anulação dos processos contra Lula tornara desnecessária a conclusão do julgamento sobre a
alegada parcialidade de Moro.
Abespinhado, Gilmar decidiu
atropelar o colega. Em ofício enviado ao presidente da Corte, Fachin pediu a retirada do processo da
pauta. Aliado tradicional da Lava-Jato,
Fux se fingiu de morto.
Iniciada a sessão, Fachin reiterou o ponto de vista
segundo o qual o veredicto sobre o comportamento de Moro tornara-se inútil depois que as condenações de Lula foram anuladas por ele. Dos cinco
membros da 2ª Turma, quatro votaram
contra sua posição, promovendo-o de uma posição minoritária para o total
isolamento. Nem mesmo Cármen Lúcia,
tida e havida como aliada da força-tarefa de Curitiba, acompanhou o voto do
relator. Coube a Nunes Marques,
ministro de estimação de Bolsonaro,
esclarecer que “não se trata de
anular o processo, mas de saber se as provas que foram colhidas pelo então juiz
Sergio Moro são válidas ou não".
Ao promover a
ressurreição eleitoral do sumo pontífice da Petelândia, Fachin favoreceu por linhas tortas os interesses eleitorais de Bolsonaro, reforçando a dicotomia
político-ideológica que as forças de centro tentavam desmontar. Lula e Bolsonaro tornaram-se cabos eleitorais um do outro, já que
interessa a ambos repetir em 2022 a polarização de 2018. Mas com duas
diferenças: a primeira é que se abre agora a perspectiva de Bolsonaro enfrentar o próprio Lula, não o poste indicado por ele; a
segunda é que o ainda presidente, beneficiário do antipetismo, maior força
eleitoral da sucessão passada, passou a fornecer material para o surgimento de
uma segunda onda: o antibolsonarismo.
A pandemia levou Lula a intensificar os ataques ao
capitão, numa demonstração de que joga o mesmo jogo do rival. No momento, os
dois operam para evitar o surgimento de uma terceira via capaz de representar o
centro político na disputa de 2022. Na outra ponta, aquele Bolsonaro eleito por mais de 57 milhões de brasileiros lida com o
seu encolhimento. Em dois anos de mandato, o capitão perdeu parte do eleitorado
que votou nele para evitar a volta do PT
ao poder, e agora espanta a plateia fabricando crises desnecessárias em meio a
uma pandemia mortal. Nesse pôquer polarizado entre dois extremos há espaço para
o surgimento de uma carta nova. O que não existe, pelo menos por enquanto, é
capacidade de articulação do centro político para produzir a novidade. O país
ainda não sabe como se chega ao centro.
Caso seja reconhecida a parcialidade de Moro, o juiz federal de Brasília não poderá aproveitar as provas, e os processos contra Lula retornarão ao zero absoluto, abrindo-se a perspectiva de prescrição dos crimes atribuídos ao ex-presidente petista no caso do tríplex. A defesa, naturalmente, pedirá a extensão da nulidade para os outros casos. Em seu voto, Gilmar atirou contra a reputação de Moro o material que o próprio ex-juiz e os procuradores da Lava-Jato forneceram nas mensagens hackeadas dos seus celulares. Como previsto, avalizou a posição dos advogados de Lula, declarando a suspeição de Moro. A hipótese de o ex-juiz sair do julgamento com a reputação preservada é virtualmente inexistente. A dúvida é quanto ao placar. Se Nunes Marques se juntar a Gilmar e Lewandowski e Cármen Lúcia mudar de ideia, Fachin amargará outra derrota por 1 a 4.
Gilmar não disse, mas Fachin acabou facilitando a vida dos advogados de Lula, pois o que está em julgamento na 2ª Turma é a imparcialidade de Moro no caso do tríplex. Confirmando-se o veredicto de suspeição, Lula continuaria ficha suja, pois foi condenado em segunda instância também no caso do sítio de Atibaia, que teve a participação de Moro. Ao anular todas as condenações, Fachin poupou o trabalho dos advogados, que não precisarão ralar um novo habeas corpus.
A Lava-Jato já havia perdido uma perna quando o STF reverteu a regra que permitia a prisão de larápios condenados em segunda instância. A operação movia-se pela conjuntura como um saci, pulando entre uma amputação e outra. Graças à manobra de Fachin, a força-tarefa perdeu os anéis e os dedos. Logo será decepada a última perna da operação, que descerá à cova junto com as provas vivas que o Supremo enterra sem uma análise de mérito.
Com Josias de Souza