quinta-feira, 11 de março de 2021

SOBRE LULA E A DECISÃO DE FACHIN (PARTE III)

 

À primeira vista, a decisão de anular as condenações de Lula parece uma vitória do petista sobre o ex-juiz Sergio Moro, mas, como dito nos posts anteriores, a ideia do relator da Lava-Jato no STF era salvar o legado da força-tarefa que Jair Bolsonaro extinguiu (porque, segundo ele, não há mais corrupção no governo). 

Observação: Fachin havia dito, no início do mês passado, que a Lava-Jato chegou ao “andar de cima” e “não só não acabou como mal começou”, embora reconhecesse “sintomas de revigoramento” da corrupção por parte de agentes do Estado e afirmasse que o que estava prestes a acabar é o “lavajatismo”, que de um lado só vê defeitos nas apurações e, de outro, só enxerga qualidades na atuação da operação. Mas também demonstrou preocupação com as eleições de 2022 e criticou a participação de militares da ativa no governo federal.

Ao anular as condenações de Lula, o ministro decidiu que outros recursos do petista não precisariam mais ser julgados, inclusive o habeas corpus que questiona a imparcialidade de Moro ao julgar seus processos (recurso esse que dormitou na gaveta de Gilmar Mendes por mais de dois anos). 

Gilmar Mendes pretendia levar o caso a julgamento neste mês e, em entrevistas, disse considerar que a Lava-Jato e Moro conspiraram para prender Lula, apoiar a eleição de Bolsonaro e integrar o atual governo. Cármen Lúcia fez chegar a Fachin que avaliava se declarar impedida no julgamento porque, entre as mensagens vazadas da Lava-Jato, há uma, de 2018, em que o procurador Deltan Dallagnol diz que a magistrada teria orientado o então ministro da Justiça, Raul Jungmann, a não cumprir imediatamente uma ordem do TRF-4 para soltar Lula

Observação: Se Cármen se abstiver de julgar (os togados podem alterar seus votos a qualquer tempo, desde que o façam antes do encerramento de um julgamento) e Nunes Marques acompanhar o voto de Fachin (o que está longe de ser uma certeza), o placar ficaria em 2 x 2, e o empate tende a favorecer o réu. Mas resta saber quem será considerado réu nesse caso; se Lula, que, em tese, foi prejudicada pela “parcialidade” de Moro, ou se o próprio Moro, que é acusado de ter sido parcial no julgamento do petralha.

Entraram no cálculo do relator de Fachin o recado de Cármen Lúcia e a intenção de Gilmar de pautar (agora a toque de caixa, depois de ter suspendido o julgamento em dezembro de 2018, quando percebeu que seria voto vencido) a questão da parcialidade de Moro. Após a decisão de Fachin, os ministros críticos à Lava-Jato reagiram e o "mandachuva de fato" do STF decidiu pautar para o dia seguinte (no caso, anteontem) o julgamento desse pedido, ignorando a perda de objeto. Fachin tentou adiar o julgamento, propondo que o caso fosse analisado pelo plenário da corte, mas foi derrotado por seus pares na 2ª Turma.

Diante desse cenário nebuloso, atender a defesa de Lula ao declarar que cabe à Justiça Federal do DF julgar os casos seria "o menor de dois males", pois a decisão que não colocaria em xeque a imparcialidade de Moro. Oficialmente, porém, há uma explicação técnica para Fachin só ter decidido a favor de Lula nesse pedido depois de rejeitar recursos semelhantes feitos pela defesa: nas decisões anteriores, as instâncias inferiores ainda não haviam julgado habeas corpus com o mesmo teor, obrigando o Supremo, em tese, a esperar que se esgotassem os recursos antes de se posicionar a respeito.


A estratégia de Fachin pode acabar não dando certo. Ignorando a moção de Fachin no sentido de aguardar uma análise do plenário, Mendes insistiu em prosseguir com o julgamento, no que foi acompanhado por Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Nunes Marques. Resta agora saber quando Nunes Marques — que pediu vista do processo — liberará o caso para ser novamente pautado (mesmo se for derrotado, Fachin poderá levar a decisão para ser referendada pelo plenário do Supremo).

Em suma, trata-se de um julgamento eminentemente político (embora não devesse ser) que evidencia a cizânia que divide o STF entre ministros que querem desqualificar a Lava-Jato por inteiro e os que pretendem resguardar as principais condenações. Fachin é uma das principais vozes favoráveis ao saldo da operação. Teriam avaliação semelhante à dele os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Marco Aurélio Mello. Em contrapartida, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Kássio Nunes Marques e Ricardo Lewandowski se revelam inimigos figadais da Lava-Jato, restando ao ministro Alexandre de Moraes o papel de "fiel da balança". E o placar desse jogo pode determinar o futuro da Lava-Jato e de Lula.

Anuladas as condenações de Lula nos processos do tríplex e do sítio (a primeira foi confirmada em segunda e terceira instâncias e a outra, pelo TRF-4), o demiurgo de Garanhuns poderá subir nos palanques dos grotões miseráveis onde ainda é rei para pedir votos e, eventualmente, voltar ao poder, mas, ainda assim, para todos os efeitos — morais e políticos —, terá seu nome indelevelmente vinculado a múltiplos escândalos de corrupção, marca que nenhuma chicana será capaz de apagar. 

Lula jamais conseguiu explicar os mimos generosos que recebeu de empreiteiros delinquentes, objeto de suas condenações ora contestadas, e, principalmente, os monstruosos esquemas de roubalheira que marcaram o espúrio reinado lulopetista. A decisão de Fachin não entrou no mérito das condenações e, portanto, não considerou o chefão petista inocente de nada. O que o ministro fez foi entender que a 13ª Vara Federal em Curitiba, então sob a pena de Sérgio Moro, não era competente para julgar os casos envolvendo Lula, pois, em tese, eles não tinham vínculo direto com o Petrolão — foco da Lava-Jato.

De fato, era preciso um grande esforço interpretativo para incluir os casos envolvendo Lula diretamente no organograma do petrolão. Esse, aliás, é um dos pecados capitais cometidos pela força-tarefa de Curitiba — a pretensão de ser o patíbulo de todos os políticos e empresários corruptos do Brasil, como se todos os casos fossem conexos e como se Sérgio Moro fosse o juiz natural de qualquer processo de corrupção. 

Enfatize-se (de novo) que isso nada tem a ver com a materialidade dos crimes monumentais cometidos sob as bênçãos de Lula. Mesmo com a suspeita de que Moro foi parcial ao julgar o petralha, não é possível simplesmente considerar que não houve assalto lulopetista à Petrobrás, que não houve escandalosa promiscuidade no Congresso, que não houve indecente relação de Lula com empreiteirosO imbróglio, ademais, diz muito sobre o Judiciário, que sai lanhado. 

Não há explicação para o fato de que se tenha levado tanto tempo para processar, julgar e condenar Lula, mesmo diante de tantas evidências; para que a defesa do ex-presidente tenha tido tantas possibilidades de recurso mesmo com condenações em três instâncias; para que o Supremo decidisse pela enésima vez mudar a jurisprudência sobre prisão após condenação em segunda instância, o que permitiu a libertação de Lula; e finalmente para que se tenha decidido somente agora que Curitiba não era o foro correto para os casos do sumo pontífice da seita do inferno, sendo que havia jurisprudência específica sobre o escopo da Lava-Jato desde 2015 — aliás, citada pelo próprio ministro Fachin em sua intempestiva decisão. É como se o juiz resolvesse marcar, no final do segundo tempo, um pênalti supostamente cometido no primeiro. Há muitas explicações possíveis para esse casuísmo, mas nenhuma delas encanta ou fascina os defensores do bom Direito.

Que, em meio a esse furdunça, o eleitor não perca de vista: Lula, que sempre contou com chicanas e prescrições para voltar a concorrer à Presidência, pode ser agora provisoriamente ficha-limpa, mas continua moralmente ficha-suja. Seu retorno à ribalta eleitoral, nessas condições, atira o País num turbilhão de incertezas, em meio a uma pandemia mortal e ao desgoverno extremista do atual mandatário. É o pior dos mundos — situação que interessa somente aos populistas radicais e irresponsáveis que protagonizam a vida nacional há tantos anos. 

Mais do que nunca, quem ainda acredita na democracia e nos valores republicanos precisa se organizar, e rápido, para convencer os brasileiros de que há alternativa civilizada ao caos.

Com BBC News e Reuters