Transcrevo a seguir texto
publicado no site Jota sobre a decisão monocrática do ministro “novato”
Kássio
Nunes Marques, considerada pelos autores do artigo “uma das piores da
história do STF” (e olha que concorrência
é o que não falta). Sem mais delongas, vamos à matéria:
Quando a pandemia tiver passado, quando nossos mortos
tiverem sido finalmente contados e honrados, não podemos esquecer dos
sacrifícios da população, dos esforços heroicos de profissionais de saúde e
gestores públicos, e de responsabilizar a quem se deve.
Na véspera da Páscoa de 2021, o Brasil alcançava a marca
de 331.350 mortes em decorrência
da pandemia. Com apenas 3% da população mundial, o país responde por 33% das mortes diárias no mundo por Covid-19 — uma
doença que, como todos sabemos, se transmite pela proximidade física. Nesse
cenário, o ministro Nunes Marques
decidiu, individualmente, afastar restrições municipais e estaduais e liberar
cultos religiosos presenciais em todo o território nacional. O
Vaticano, que havia realizado as celebrações de Páscoa
remotamente em 2020, realizou a missa desta Páscoa com
duzentas em vez de milhares de pessoas. Mas, para Marques, era urgente permitir que os fiéis participassem de
cerimonias religiosas presenciais nesse domingo; exigir que celebrassem a
Páscoa em cultos remotos seria violar gravemente seus direitos fundamentais.
Em 2020, o Supremo
havia permitido, de maneira genérica, a edição de variadas restrições por
autoridades municipais e estaduais, desde que motivadas pela proteção à saúde
de seus cidadãos, assessoradas por especialistas, e informadas pelas
peculiaridades locais no enfrentamento da pandemia. Segundo Marques, porém, a variação de medidas
entre localidades – algumas permitindo cultos presenciais, outras não – seria
em si um problema a exigir a intervenção do Supremo. Ao impedir genericamente a proibição local de
cultos presenciais em todo o país, Marques
se substituiu ao mesmo tempo a seus colegas de hoje e ao que o Supremo decidiu no passado. Deve,
então, também se substituir a eles na responsabilidade pelas consequências de
seu ato.
Ao Supremo o
que é do Supremo, e a Marques o que é de Marques: devemos a ele uma das piores decisões da história do
tribunal.
I.
A concessão de liminares monocráticas exige
plausibilidade do pedido (fumus boni
iuris) e perigo na demora (periculum
in mora).
Com relação ao periculum, Nunes Marques salientou a proximidade da
Páscoa. Porém, essa urgência é artificial. A ação chegou ao Supremo em junho de 2020; com a
aposentadoria de Celso de Mello, Marques se tornou o seu relator em
novembro de 2020. Se o tema era urgente, Marques
poderia ter solicitado pauta no plenário, ou — alternativa mais drástica,
criada no contexto da pandemia da Covid-19
– simplesmente iniciado o julgamento no Plenário
Virtual, dando a seus colegas um prazo fixo para se manifestarem sobre a
cautelar. Não fez nenhuma das duas coisas.
A data da Páscoa já era conhecida. As novas medidas
restritivas já vêm de semanas. Não havia surpresa ou novidade. O absoluto
silêncio de Marques manufaturou
urgência totalmente desnecessária. Romper esse silêncio de meses no sábado
garantiu que a decisão produzisse efeitos antes de o colegiado apreciá-la. Um
caso claro e extremo de decisão individual contra o
poder do plenário – como usurpação, e não delegação, da autoridade
do colegiado.
Com relação à plausibilidade do pedido, essa mesma
dinâmica importa. Se a concessão da liminar provavelmente não seria
confirmada pelo plenário, como considerar presente o fumus? Se a
plausibilidade for apenas “o que o
ministro considera certo”, ela não servirá como critério específico da
concessão de liminar. É preciso se perguntar se o que se pede agora tem chance
significativa de ser mantido ao final do processo. Marques, porém, por livre escolha, jamais levou o tema ao
colegiado.
É notável que Marques
passe boa parte da decisão discutindo decisões anteriores do Supremo que, a princípio, iriam contra a
concessão da liminar. É o caso da ADPF
703, de relatoria do ministro Alexandre
de Moraes. Em fevereiro de 2021, o tribunal confirmou, por unanimidade, a
decisão monocrática do relator considerando que a Associação de Juristas Evangélicos não tinha legitimidade ativa
para propor ADPF. Segundo a decisão
de Moraes, a Associação não podia
ser considerada “entidade de classe
de âmbito nacional”, nos termos da Constituição e da jurisprudência do Supremo. Não houve dúvida, naquele
julgamento, com relação a esse ponto. Nem por parte de Marques.
Para nublar esse evidente obstáculo no colegiado, Marques procura apontar para outras
decisões, reconhecendo a legitimidade de outras “associações de juristas”.
Sobre esta associação, porém, não há até o momento qualquer dúvida ou
divergência. Ao trazer essas decisões e tentar mostrar que não se aplicariam
aqui, o próprio Marques reconhece
implicitamente as dificuldades que sua posição terá à frente, no colegiado.
Tudo isso sem sequer entrarmos no mérito do pedido. Se a chance de confirmação
é baixa, como falar em plausibilidade jurídica do pedido?
II.
Quanto ao mérito da liminar, Marques, como vimos, registra que a “disciplina desuniforme
sobre a liberdade de culto” justificaria a intervenção do STF. Contudo, essa variação é, em
princípio, uma implicação direta das decisões que o tribunal tomou em 2020. Marques, porém, não discute a
jurisprudência do STF sobre a
pandemia. Em vez dela, recorre à decisão da Suprema Corte dos EUA, de fevereiro de 2021, que anulou restrições
a cultos religiosos presenciais no estado da Califórnia.
Marques
procura justificar a relevância da decisão dos EUA com o fato de que,
desde 1891, nosso direito constitucional foi influenciado pelas ideias e
práticas do sistema estadunidense. A influência em 1891 é clara; sua relevância
para uma decisão em 2021, não. E nem mesmo os republicanos de 1889
considerariam que uma decisão da Suprema
Corte dos EUA dispensa a discussão da jurisprudência nacional existente.
O Decreto 848/1890 do governo revolucionário afirmou que
“Os estatutos dos povos cultos e
especialmente os que regem as relações jurídicas na Republica dos Estados
Unidos da America do Norte (…) serão também subsidiários da jurisprudência e
processo federal” (art. 386). O dispositivo ilustra colonialismo
intelectual disseminado à época, cujos efeitos perduram até hoje no direito
constitucional e no próprio Supremo.
Entretanto, limitava-se a tratar decisões da Suprema Corte dos EUA como fontes subsidiárias.
Marques
afirma que “a solução adotada pela
Suprema Corte (592 U.S. 2021) no caso acima mencionado compatibiliza a
necessidade de distanciamento social, decorrente da epidemia da Covid-19, com a
liberdade religiosa”. É difícil entender, porém, como o ministro
pretende sustentar essa conclusão sem discutir a substância da decisão da Suprema Corte dos EUA. Como observa o
Município de Belo Horizonte em petição de Suspensão de Liminar, a questão
perante a Suprema Corte envolvia
também saber se era possível tratar serviços religiosos com restrições mais
gravosas do que as adotadas para outras atividades. Esse elemento está ausente
da decisão de Marques, que procura
estabelecer um direito geral de celebrar a Páscoa presencialmente,
independentemente do conjunto total de medidas restritivas que cada localidade
tenha adotado.
Marques
não menciona que a decisão nos EUA dividiu profundamente a Suprema Corte.
Tampouco que, em decisão anterior, de junho de 2020 – antes da substituição da
ministra Ruth Bader Ginsburg por Amy Coney Barret –, uma outra
maioria havia decidido a mesma questão em sentido
oposto. Ou seja, a questão não é pacífica sequer no tribunal que Nunes Marques cita como autoridade para
resolver o caso no direito constitucional (e no contexto epidemiológico)
brasileiro.
Em seu voto vencido, a ministra Kagan criticou a maioria por tratar questões complexas de saúde
pública como se fossem apenas questões legais e constitucionais. Observou que “em meio à pior crise de saúde pública do século,
essa incursão em epidemiologia de gabinete não pode terminar bem”. Nos
EUA, a maioria dos ministros aceitou assumir essa responsabilidade, contra Kagan e a minoria; no Brasil, porém, um
ministro sozinho arrastou a autoridade do Supremo
em uma direção que, sem dúvida, não pode terminar bem.
O tema é delicado, lá e cá, mas os contextos são bem
distintos. Lá, a nova ministra foi um voto decisivo para mudar um placar
apertado, em um julgamento colegiado em um tribunal dividido. No
Brasil, o novo ministro decidiu sozinho, contra um Supremo que, até
aqui, tem estado unido com relação às medidas restritivas na Covid-19. Marques já teria agido melhor se, em vez de apenas seguir o
resultado da decisão da Suprema Corte
dos EUA, adotasse também a seriedade do seu procedimento.
Em um ponto na decisão, porém, a decisão de Nunes Marques é representativa do
vocabulário político nacional do momento. O ministro menciona os mecanismos do Estado de Defesa e de Sítio, que têm
aparecido no debate público recente na voz do presidente Jair Bolsonaro, o
procurador-geral Augusto Aras e
outros atores políticos. Segundo Marques,
não haveria previsão constitucional para restrição de cultos religiosos
presenciais sequer nos estados de defesa e de sítio. Nessa leitura da Constituição,
o Brasil não poderia impedir a realização de cultos religiosos presenciais nem
mesmo se estivesse em guerra externa. Como o artigo 136 não fala
especificamente da suspensão do direito de reunir para cultuar, não estaria
enquadrado na suspensão do direito de reunião de maneira geral. Difícil
colocar, em uma democracia, o direito de reunião religiosa acima do direito de
reunião política. O absurdo da interpretação é evidente, mas Marques não está sozinho na referência
aos estados de Sítio e de Defesa.
III.
Embora haja mais problemas na decisão, os pontos acima
deveriam ser suficientes para deixar clara a responsabilidade moral de Marques por atender a um pedido nocivo
nas consequências e frágil no direito. O Supremo
está se preparando para decidir o caso já nesta quarta-feira [ontem]. Essa
velocidade do tribunal manda mensagem importante para comportamentos
individuais futuros. Mas, com o estrago já está feito, é preciso duas outras
mensagens adicionais.
Primeiro, no mérito, que o Supremo dê uma decisão institucionalmente responsável,
cientificamente informada e juridicamente cuidadosa, em contraste com a
inconsequente monocrática de Marques.
Desde 2020, o tribunal vem exigindo dos poderes públicos que as decisões sobre
a pandemia sejam devidamente fundamentadas em estudos técnicos. Deixar claro
que uma monocrática tão frágil e ligeira não representa a postura do Supremo nesse tema é dar o exemplo
dentro de casa.
A segunda mensagem exige do tribunal algo que raramente
aceita fazer: criticar não a decisão do ministro, mas o seu comportamento.
Sinalizar que a concessão dessa liminar, nessas condições, está fora dos
padrões até para um tribunal que garante excessiva margem de atuação
individual. Há muitas propostas de reforma do regimento que tramitam para
limitar esse tipo de arroubo individual; algumas delas suspensas por pedido de
vista do presidente Fux. Essas
necessárias reformas, sim, são de responsabilidade de todos os ministros. Mas,
enquanto não vêm, o Supremo deve
aproveitar oportunidades de dizer que, apesar de ser profundamente fragmentado
no exercício de poder, ainda é um tribunal.