Como instituição, o STF merece todo o nosso respeito. Mas tenho cá minhas dúvidas com relação aos togados que compõem nossa mais alta corte de Justiça. Guardadas as devidas proporções, esse mesmo raciocínio vale para os parlamentares que integram o Congresso Nacional e o chefe do Executivo desta republiqueta de bananas, onde sobram leis e falta vergonha na cara.
Não é a primeira vez que digo isso — e sempre que o faço, faço-o com extremo pesar. Desta feita, para não ferir suscetibilidades de pseudovestais de fancaria, vou calar sobre o que penso do espetáculo de quinta classe que o supremo cirquinho nos ofereceu na da última quinta-feira e passar a palavra a Josias de Souza — que não é instituição, mas merece minha mais profunda admiração.
Quatro em cada dez
brasileiros hospedados no sistema prisional comem na cadeia o pão que o Tinhoso
amassou sem nenhum julgamento. São chamados de "presos provisórios". Condenado um par de vezes na segunda e na
terceira instância do Judiciário, Lula
foi presenteado pelo Supremo com a anulação das sentenças. Era chamado de
"corrupto". Foi rebatizado
de "injustiçado". Ou
"perseguido".
Reza a Constituição que todos são iguais perante a lei. Isso
é uma lenda. O "injustiçado"
e os "presos provisórios"
são parecidos, pois ambos não têm sentença. Mas um está solto. Os outros,
presos. Com bolso para pagar bons advogados, Lula livrou-se dos veredictos invocando "questões processuais". As togas supremas não precisaram
analisar a qualidade das provas reunidas pela Lava-Jato.
Os sem-Supremo
são muito pobres, muito pretos e muito mal defendidos. Demoram a ser
apresentados àquilo que os advogados chamam de "devido processo legal". Quando personagens como Lula e seus benfeitores da Odebrecht e da OAS foram parar na cadeia, o país viveu a ilusão da mudança. Durou
pouco. O sentimento era de vidro e se quebrou. Nesta quinta-feira, o plenário
do Supremo reuniu-se apenas para cumprir tabela. O jogo estava jogado. As
sentenças de Lula já haviam sido
anuladas. Faltava definir a jurisdição que administraria a prescrição dos
crimes. Optou-se pela Justiça Federal de
Brasília.
A pecha de juiz suspeito também já estava grudada na
biografia de Sergio Moro. Faltava impedir
que o plenário anulasse o placar de 3 a 2 anotado na 2ª Turma. Ainda falta colher os votos de dois dos 11 ministros. Marco Aurélio Mello pediu vista dos
autos. Mas a maioria de 7 votos a favor da suspeição de Moro já foi alcançada.
A despeito da previsibilidade, a sessão terminou com uma eletrificada
discussão entre Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes sobre os métodos
utilizados pela 2ª Turma (assista lá
no alto). Minutos antes, Barroso e Ricardo Lewandowski protagonizaram uma
toga justa. Trocaram farpas numa discussão sobre corrupção.
Os curtos-circuitos ocorrem contra um pano de fundo marcado
pela restauração da imoralidade. Ninguém imagina a família presidencial, o
procurador-geral, alguns supremos magistrados e uma penca de "injustiçados" com os pés em cima
da mesa, uisquinho na mão, entoando o lema da moda: "A oligarquia unida jamais será vencida." Mas a reação dos
alvos da cruzada anticorrupção nunca foi tão nítida.
A contraofensiva dos oligarcas não chegou a tempo de salvar
o mandato de Romero Jucá, cassado pelo
eleitor nas urnas de 2018. Mas a sangria de que falava o ex-senador do MDB foi finalmente estancada —"com o Supremo, com tudo." O
processo foi apressado pela Vaza-Jato,
como ficou conhecida a divulgação a conta-gotas das mensagens trocadas no
escurinho do aplicativo do celular por Moro
e os procuradores da força-tarefa de Curitiba.
Tachado de "lavajatista"
por colegas que abominam a "República
de Curitiba", Barroso
atribuiu o roubo eletrônico das mensagens ao que chamou de "projeto de vingança". Para ele,
"a corrupção reagiu com vigor e
ousadia. O meio que escolheu foi o
hackeamento criminoso dos celulares de todos os que ousaram enfrentá-la. Um dia
se saberá quem bancou a empreitada criminosa."
Para Gilmar Mendes,
as mensagens permitem concluir que a Lava-Jato
é comparável a uma organização criminosa como o PCC. Ricardo Lewandowski,
responsável pela liberação do material roubado para a defesa de Lula, já declarou que a comunicação
eletrônica demonstra que o pajé do PT
foi perseguido por seus algozes com o deliberado propósito de excluir Lula das urnas eletrônicas de 2018 e
abrir caminho para a vitória de Bolsonaro.
Barroso disse ter
encontrado no material apenas "pecadilhos,
fragilidades humanas, maledicências." Sem citar nomes, tachou a reação
de "show de hipocrisia",
protagonizado por "gente cuja
reputação não resistiria a meia hora de vazamento de suas conversas privadas."
Presidente da 2ª Turma, Gilmar
sustenta que a comunicação da Lava-Jato
não foi utilizada como prova no julgamento do pedido de suspeição de Moro. Conversa mole. A força-tarefa de
Curitiba havia sido empurrada para a cova há tempos. Mas foi depois das
mensagens que o Supremo começou a jogar terra em cima.
Gilmar e Lewandowski ferveram depois que Barroso desqualificou as mensagens que
os colegas consideram escandalosas. "Não
vazou a existência de uma prova fabricada ou de um propósito de se condenar
alguém, mesmo que sem prova alguma", disse Barroso. "Vazou que
juiz e membros do Ministério Público conversavam. Acontece diariamente, em todo o Brasil, em todas as
comarcas. Aliás, a prática de o juiz atender o representante de uma das partes,
sem a presença da outra, é altamente discutível. Mas é uma tradição brasileira."
As supremas togas continuam soando bem-intencionadas. Lewandowski, por exemplo, fez questão
de reafirmar seu empenho pelo combate à corrupção. Os fatos é que de vez em
quando conspurcam as boas intenções. A imagem rachadinha da primeira-família, o
procurador que não procura, o Supremo isento de supremacia, os corruptos
convertidos em heróis da resistência...
Diante de um cenário assim, tudo que está no futuro do
Brasil é restauração do passado. O esforço anticorrupção definhou quando
aguardavam na fila por uma condenação personagens como Aécio Neves, José Serra
e Michel Temer, amigos de Gilmar e Alexandre de Moraes.
Reconquistaram o meio-fio personagens como Lula
e José Dirceu, amigos de Lewandowski e Dias Toffoli.
A pretexto de proteger a Lava-Jato, evitando contaminar a operação com a suspeição de Moro, Fachin anulou as condenações de Lula. Armou o palanque do PT
e não deteve o funeral de Moro.
Ex-aliada da Lava-Jato, Carmen Lúcia deu um cavalo de pau
diante das câmeras da TV Justiça, revendo o voto na frente das crianças.
Graças à conjuntura tisnada pelo compadrio e entrecortada
pelo malabarismo retórico, quem estava solto relaxou. Quem estava preso se
livrou. Restabeleceu-se o ambiente que vigorava antes do mensalão. Abortou-se o
cenário benigno que estava projetado para fase pós-petrolão.
O centrão agora preside a Câmara, sem intermediários.
Assumiu a coordenação política da Presidência e o cofre das emendas
orçamentárias. Lula se equipa para
2022. Bolsonaro prepara-se para
reforçar a blindagem pessoal e familiar com a indicação de uma segunda toga
para o Supremo. Tudo mudou, exceto a situação dos pretos e pobres, que
continuam recheando as cadeias como "presos
provisórios". Não é que o crime não compensa. A questão é que, no
Brasil, quando ele compensa muda de nome. Passa a se chamar "questão processual".