Dizem que o grande responsável pelos mais de 400 mil mortos pela Covid dá expediente no gabinete mais cobiçado do Palácio do Planalto e discursa todas as tardes, para uma claque de toupeiras amestradas, num chiqueirinho armado diante do Alvorada.
Para quem ainda não
fez a devida associação, acrescento tratar-se de um ex-capitão do Exército que o
general Ernesto Geisel definiu como um “caso
completamente fora do normal, inclusive mau militar”, que o
coronel Carlos Alfredo Pellegrino disse que não conseguia liderar a soldadesca devido a “falta
de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação dos argumentos”, e que foi acusado, durante seu julgamento no STM,
de ter “grave desvio de personalidade”.
Observação: Comissão criada pela OAB concluiu que Jair Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade e contra a humanidade ao fundar uma "República da Morte" no País. Segundo o colegiado, o capitão agiu deliberadamente contra medidas de proteção à Covid e se omitiu em diversas situações que poderiam reduzir o número de óbitos causados pela doença. “A questão que se põe no presente momento é a seguinte: pode-se provar com segurança, e de acordo com as leis da natureza, que centenas de milhares de vidas teriam sido salvas, caso o presidente e outras autoridades tivessem cumprido com o seu dever constitucional de zelar pela saúde pública? A resposta é um retumbante sim”, apontou o relatório dos juristas.
Em 1991, no primeiro
de seus sete mandatos de deputado, o mau militar em questão defendeu o
retorno do regime de exceção e o fechamento temporário do Congresso. “Muitas leis atrapalham o exercício do poder”, asseverou o dito-cujo. “Num regime de exceção, o chefe, que não
precisa ser um militar, pega uma caneta e risca a lei que está atrapalhando”, complementou, levando o corregedor do
Congresso à época — deputado Vital do Rego — a solicitar à Procuradoria Geral da República a abertura de uma ação penal por crime
contra a segurança nacional, ofensa à Constituição e ao regimento interno da Casa.
Em 28 anos no baixo
clero da Câmara, o ex-capitão promovido a deputado aprovou dois projetos de lei
e colecionou mais de 30 processos — a maioria por ação de parlamentares de
esquerda, notadamente do PT, mas isso é outra conversa. Em 2018, graças
a uma récua de muares legalmente capacitados a votar, a parcela pensante do
eleitorado se viu obrigada apoiar o bolsonarismo boçal para evitar o retorno do
lulopetismo corrupto.
Como ensinou o
oncologista Nelson Teich em seu pronunciamento de despedida do
ministério da Saúde (que comandou por míseros 28 dias), “a vida é feita de escolhas”. A questão é que escolhas implicam
consequências, e como bem assinalou o Conselheiro
Acácio (personagem do romance O Primo Basílio, do escritor português Eça
de Queiroz), o problema com as
consequências é que “elas sempre
vêm depois.” Duas frases singelas,
mas que explicam muita coisa.
Bolsonaro nunca foi o candidato a presidente com que a
maioria de nós sonhava (como tampouco o foram Dilma, Lula, FHC e Collor). Por outro lado,
era impossível imaginar que sua passagem pelo Palácio do Planalto seria tão
funesta. Agora sabemos que o capitão jamais se converterá à democracia nem
exercerá de forma republicana o cargo para o qual foi eleito em 2018 — e aqui peço
perdão pela insistência, mas não há como não repetir mais uma vez que isso decorreu
de absoluta falta de opção.
Águas passadas não movem
moinhos, mas o diabo é que o brasileiro tem vocação inata para repetir os
mesmos erros esperando que um dia sua perseverança seja recompensada com um
acerto. Prova disso é que um terço da população apoia Bolsonaro (pelo menos é o que atestam as nem sempre confiáveis pesquisas de
intenção de voto), embora ele deixe mais claro a cada dia seu absoluto
descompromisso com o Estado Democrático de Direito e repita ad nauseam suas
abjetas ameaças golpistas.
Se, em plena
pandemia, Bolsonaro — “eleito” pelo jornal americano The Washington Post o pior
líder mundial no enfrentamento da Covid — segue solapando as
instituições, como esperar que venha a desempenhar um papel construtivo de
ações conjuntas entre as várias correntes políticas? Além de ser determinante
para a recuperação econômica, a vacinação em massa é a única solução para pôr
termo ao crescimento da pilha de cadáveres produzidos pelo vírus maldito em
parceria com o negacionismo atávico do mito de fancaria e das toupeiras que o
veneram.
A despeito das dezenas
de ações e omissões que podem caracterizar crime de responsabilidade e dos quase 120 pedidos de impeachment que
dormitam em alguma gaveta do presidente da Câmara, as oposições reagem
timidamente. E quanto mais tempo passa, tanto pior a situação do país. Mesmo
assim os “representantes do povo” dão de ombros para as urgências
sociais, de saúde pública, econômicas e institucionais, pois interessa-lhes obter
cargos e verbas em troca da blindagem do chefe do Executivo contra um
impeachment ou uma investigação no STF.
Como em 2018, as
principais siglas mostram-se incapazes de projetar nos médio e longo prazos as
consequências de suas ações e/ou inações. Entrementes, Bolsonaro esbanja dinheiro público e abusa de artimanhas abjetas (fake news, discursos de ódio etc.) para sustentar seu projeto de poder — ou de
permanecer no poder, melhor dizendo.
DEM, PSDB, PSD e MDB empurram com a barriga a
possibilidade (cada vez mais remota) de construírem uma frente alternativa ao
bolsonarismo para 2022. Presos ao imediatismo de cargos e emendas, os nobres parlamentares
parecem não enxergar o óbvio: se a pandemia não for controlada e a economia não
se recuperar, o Orçamento em frangalhos não comportará todos os ministérios e
emendas prometidos em troca do apoio para as eleições de Lira na Câmara e Pacheco no Senado. E o Centrão não tem pruridos de
fazer a cobrança em alto e bom som — e na forma de votações.
Bolsonaro reclamava de Rodrigo Maia, mas vai
sentir falta do compromisso que o deputado fluminense sempre teve com o ajuste
fiscal. Sob a batuta do rei do Centrão, o teto de gastos é apenas um obstáculo ao
cumprimento das promessas de campanha e os cento e tantos pedidos de
impeachment, um alerta: se o capitão mijar fora do penico e não entregar tudo o
que prometeu, será rifado pelo presidente da Câmara que ajudou a eleger.
Da mesma forma que
nações não têm amigos, mas sim interesses, na política o aliado de hoje pode
ser o adversário de amanhã. E vice-versa. Não há, portanto, que falar em
fidelidade: nem o capitão hesitará em culpar o Centrão pelo fracasso de
seu governo, nem o Centrão em rifar o presidente caso sua popularidade
faça como a vaca do ditado e afunde de vez no brejo da pandemia. É como na fábula
do sapo e o escorpião, com a
diferença de que, no caso específico de Bolsonaro e o Centrão, os dois companheiros de travessia têm ferrão.
Acuado pelos relatos que estão surgindo na CPI, Bolsonaro recorre (mais uma vez) à estratégia da ameaça e do extremismo. Para acirrar os ânimos de seus apoiadores mais radicais, ele ameaça (mais uma vez) confrontar o STF para testar a sua força popular — uma jogada arriscada, dado o risco de transpor a linha que separa o legal do ilegal. As Forças Armadas já deixaram claro que querem distância de seus arroubos antidemocráticos, mas o capitão volta a falar (mais uma vez) em “meu Exército” e chama os militares para a confrontação. Suas ameaças cheiram a bazófia, mas podem se tornar realidade se as apurações da CPI deflagrarem um processo de impeachment (pedidos não faltam).
As manifestações populares foram coibidas pela pandemia, embora não faltem fanáticos dispostos a sair às ruas em protestos contra e a favor do presidente. Se o caldo entornar, as instituições terão de funcionar, inclusive o Exército, que terá de descer do muro e mostrar claramente se apoia a democracia ou um mandatário claramente desequilibrado, que faz de tudo para criar um ambiente político que dê azo ao autoritarismo. Resta saber se o capitão está mesmo disposto a esticar a corda até o final e testar as ruas.
Bolsonaro é um extremista. Sua política é a de
combate às instituições e desqualificação dos adversários (que ele vê como
inimigos). Tentar combatê-lo da forma tradicional tem levado à paralisia
institucional. Mesmo à sombra da pilha de corpos produzida pela Covid e com
uma economia em frangalhos, o capitão tem se equilibrado no cargo graças a preceitos constitucionais que ele próprio despreza. Aliás, ainda não ter sido
penabundado, na atual conjuntura, já é uma vitória. Mas a situação pode mudar
com a CPI da Covid.
Enfim, alea jacta
est (não para ele, mas para nós).