segunda-feira, 10 de maio de 2021

ALEA JACTA EST


Dizem que o grande responsável pelos mais de 400 mil mortos pela Covid dá expediente no gabinete mais cobiçado do Palácio do Planalto e discursa todas as tardes, para uma claque de toupeiras amestradas, num chiqueirinho armado diante do Alvorada.

Para quem ainda não fez a devida associação, acrescento tratar-se de um ex-capitão do Exército que o general Ernesto Geisel definiu como um “caso completamente fora do normal, inclusive mau militar”, que o coronel Carlos Alfredo Pellegrino disse que não conseguia liderar a soldadesca devido a “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação dos argumentos”, e que foi acusado, durante seu julgamento no STM, de ter “grave desvio de personalidade”.

Observação: Comissão criada pela OAB concluiu que Jair Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade e contra a humanidade ao fundar uma "República da Morte" no País. Segundo o colegiado, o capitão agiu deliberadamente contra medidas de proteção à Covid e se omitiu em diversas situações que poderiam reduzir o número de óbitos causados pela doença. “A questão que se põe no presente momento é a seguinte: pode-se provar com segurança, e de acordo com as leis da natureza, que centenas de milhares de vidas teriam sido salvas, caso o presidente e outras autoridades tivessem cumprido com o seu dever constitucional de zelar pela saúde pública? A resposta é um retumbante sim”, apontou o relatório dos juristas.

Em 1991, no primeiro de seus sete mandatos de deputado, o mau militar em questão defendeu o retorno do regime de exceção e o fechamento temporário do Congresso. “Muitas leis atrapalham o exercício do poder”, asseverou o dito-cujo. “Num regime de exceção, o chefe, que não precisa ser um militar, pega uma caneta e risca a lei que está atrapalhando”, complementou, levando o corregedor do Congresso à época — deputado Vital do  Rego — a solicitar à Procuradoria Geral da República a abertura de uma ação penal por crime contra a segurança nacional, ofensa à Constituição e ao regimento interno da Casa.

Em 28 anos no baixo clero da Câmara, o ex-capitão promovido a deputado aprovou dois projetos de lei e colecionou mais de 30 processos — a maioria por ação de parlamentares de esquerda, notadamente do PT, mas isso é outra conversa. Em 2018, graças a uma récua de muares legalmente capacitados a votar, a parcela pensante do eleitorado se viu obrigada apoiar o bolsonarismo boçal para evitar o retorno do lulopetismo corrupto.

Como ensinou o oncologista Nelson Teich em seu pronunciamento de despedida do ministério da Saúde (que comandou por míseros 28 dias), “a vida é feita de escolhas”. A questão é que escolhas implicam consequências, e como bem assinalou o Conselheiro Acácio (personagem do romance O Primo Basílio, do escritor português Eça de Queiroz), o problema com as consequências é que “elas sempre vêm depois.” Duas frases singelas, mas que explicam muita coisa.  

Bolsonaro nunca foi o candidato a presidente com que a maioria de nós sonhava (como tampouco o foram Dilma, Lula, FHC e Collor). Por outro lado, era impossível imaginar que sua passagem pelo Palácio do Planalto seria tão funesta. Agora sabemos que o capitão jamais se converterá à democracia nem exercerá de forma republicana o cargo para o qual foi eleito em 2018 — e aqui peço perdão pela insistência, mas não há como não repetir mais uma vez que isso decorreu de absoluta falta de opção.

Águas passadas não movem moinhos, mas o diabo é que o brasileiro tem vocação inata para repetir os mesmos erros esperando que um dia sua perseverança seja recompensada com um acerto. Prova disso é que um terço da população apoia Bolsonaro (pelo menos é o que atestam as nem sempre confiáveis pesquisas de intenção de voto), embora ele deixe mais claro a cada dia seu absoluto descompromisso com o Estado Democrático de Direito e repita ad nauseam suas abjetas ameaças golpistas.

Se, em plena pandemia, Bolsonaro — “eleito” pelo jornal americano The Washington Post o pior líder mundial no enfrentamento da Covid — segue solapando as instituições, como esperar que venha a desempenhar um papel construtivo de ações conjuntas entre as várias correntes políticas? Além de ser determinante para a recuperação econômica, a vacinação em massa é a única solução para pôr termo ao crescimento da pilha de cadáveres produzidos pelo vírus maldito em parceria com o negacionismo atávico do mito de fancaria e das toupeiras que o veneram.

A despeito das dezenas de ações e omissões que podem caracterizar crime de responsabilidade e dos quase 120 pedidos de impeachment que dormitam em alguma gaveta do presidente da Câmara, as oposições reagem timidamente. E quanto mais tempo passa, tanto pior a situação do país. Mesmo assim os “representantes do povo” dão de ombros para as urgências sociais, de saúde pública, econômicas e institucionais, pois interessa-lhes obter cargos e verbas em troca da blindagem do chefe do Executivo contra um impeachment ou uma investigação no STF.

Como em 2018, as principais siglas mostram-se incapazes de projetar nos médio e longo prazos as consequências de suas ações e/ou inações. Entrementes, Bolsonaro esbanja dinheiro público e abusa de artimanhas abjetas (fake news, discursos de ódio etc.) para sustentar seu projeto de poder — ou de permanecer no poder, melhor dizendo.

DEM, PSDB, PSD e MDB empurram com a barriga a possibilidade (cada vez mais remota) de construírem uma frente alternativa ao bolsonarismo para 2022. Presos ao imediatismo de cargos e emendas, os nobres parlamentares parecem não enxergar o óbvio: se a pandemia não for controlada e a economia não se recuperar, o Orçamento em frangalhos não comportará todos os ministérios e emendas prometidos em troca do apoio para as eleições de Lira na Câmara e Pacheco no Senado. E o Centrão não tem pruridos de fazer a cobrança em alto e bom som — e na forma de votações.

Bolsonaro reclamava de Rodrigo Maia, mas vai sentir falta do compromisso que o deputado fluminense sempre teve com o ajuste fiscal. Sob a batuta do rei do Centrão, o teto de gastos é apenas um obstáculo ao cumprimento das promessas de campanha e os cento e tantos pedidos de impeachment, um alerta: se o capitão mijar fora do penico e não entregar tudo o que prometeu, será rifado pelo presidente da Câmara que ajudou a eleger.

Da mesma forma que nações não têm amigos, mas sim interesses, na política o aliado de hoje pode ser o adversário de amanhã. E vice-versa. Não há, portanto, que falar em fidelidade: nem o capitão hesitará em culpar o Centrão pelo fracasso de seu governo, nem o Centrão em rifar o presidente caso sua popularidade faça como a vaca do ditado e afunde de vez no brejo da pandemia. É como na fábula do sapo e o escorpião, com a diferença de que, no caso específico de Bolsonaro e o Centrão, os dois companheiros de travessia têm ferrão.

Acuado pelos relatos que estão surgindo na CPI, Bolsonaro recorre (mais uma vez) à estratégia da ameaça e do extremismo. Para acirrar os ânimos de seus apoiadores mais radicais, ele ameaça (mais uma vez) confrontar o STF para testar a sua força popular — uma jogada arriscada, dado o risco de transpor a linha que separa o legal do ilegal. As Forças Armadas já deixaram claro que querem distância de seus arroubos antidemocráticos, mas o capitão volta a falar (mais uma vez) em “meu Exército” e chama os militares para a confrontação. Suas ameaças cheiram a bazófia, mas podem se tornar realidade se as apurações da CPI deflagrarem um processo de impeachment (pedidos não faltam).  

As manifestações populares foram coibidas pela pandemia, embora não faltem fanáticos dispostos a sair às ruas em protestos contra e a favor do presidente. Se o caldo entornar, as instituições terão de funcionar, inclusive o Exército, que terá de descer do muro e mostrar claramente se apoia a democracia ou um mandatário claramente desequilibrado, que faz de tudo para criar um ambiente político que dê azo ao autoritarismo. Resta saber se o capitão está mesmo disposto a esticar a corda até o final e testar as ruas.

Bolsonaro é um extremista. Sua política é a de combate às instituições e desqualificação dos adversários (que ele vê como inimigos). Tentar combatê-lo da forma tradicional tem levado à paralisia institucional. Mesmo à sombra da pilha de corpos produzida pela Covid e com uma economia em frangalhos, o capitão tem se equilibrado no cargo graças a preceitos constitucionais que ele próprio despreza. Aliás, ainda não ter sido penabundado, na atual conjuntura, já é uma vitória. Mas a situação pode mudar com a CPI da Covid.

Enfim, alea jacta est (não para ele, mas para nós).