segunda-feira, 24 de maio de 2021

SOBRE BOLSONARO, FHC E LULA


O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez muita besteira em seus quase noventa anos de vida, mas ter participado do “fatídico” almoço promovido por Nelson Jobim não foi uma delas. Ter sido ministro da Defesa nos governos Lula e Dilma não muda o fato de Jobim ser um profundo conhecedor dos meandros políticos e humores jurídicos das mais altas cortes no país. E ter discutido com Lula o descaso do Governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia não desabona o pomposo grão duque do tucanato. Afinal, política não é guerra, embora seja vista como tal nesta republiqueta de bananas. 

A rivalidade faz parte da política e a divergência de opiniões, da democracia. Mas o abjeto “nós contra eles”, semeado pelo demiurgo de Garanhuns, levou o povo tupiniquim — noves fora quem tem ao menos um par de neurônios funcionais — a se alinhar a uma das duas facções possíveis e promover a inimigos figadais todos os que se juntaram à outra facção. (Vale lembrar que o bolsonarismo boçal só existe devido ao lulopetismo corrupto.)

FHC foi, a meu ver um dos melhores presidentes da história do Brasil (em terra de cego, quem tem um olho é rei, embora continue sendo caolho). O problema é que a picada da mosca azul o fez mover mundo$ e fundo$ pela aprovação da PEC da reeleição. E como é burro ou não tem arte quem parte, reparte e não fica com a melhor parte, ele próprio foi o primeiro presidente a se beneficiar da emenda: no pleito de 1998, o tucano emproado derrotou Lula (em turno único) por 53,06% a 31,71% dos votos válidos, conquistando, assim, seu segundo mandato.

Voltando ao almoço promovido por Jobim (o ex-ministro, não o saudoso maestro), não vejo razão para tanta celeuma. É fato que Fernando Henrique, enquanto presidente, viu todos os projetos que enviou ao Congresso — entre os quais o da lei de Responsabilidade Fiscal e as propostas vinculadas ao Plano Real — serem rejeitados pela bancada do PT. Também é fato que, dois meses depois de derrotar o deus pai da Petelândia pela segunda vez, o tucano viu o deputado Tarso Genro lançar a campanha Fora FHC, que foi prontamente abraçada pelo partido dos trabalhadores que não trabalham, dos estudantes que não estudam e dos intelectuais que não pensam.

Se realmente respeitasse as normas republicanas, o ex-presidente, ex-presidiário e “ex-corrupto” ao qual o mandatário de turno classifica (com a finesse que lhe é peculiar) de “ladrão de nove dedos” respeitaria o Código Penal e a verdade. E fosse esta republiqueta de bananas um país sério, esse abjeto palanque ambulante estaria cumprindo a pena que lhe foi imposta por magistrados de três instâncias do Judiciário.

Dias antes do tal almoço, FHC revelou ter anulado o voto em 2018, mas disse que a história será diferente em 2022 se o PT chegar à reta final com Bolsonaro. Litteris"Não sou lulista. Se tiver terceira solução, melhor. Mas ele [Lula] sente o momento. O presidente atual do Brasil não sente o momento, não sente nada. O outro [Lula] tem suficiente esperteza para sentir. Acho melhor terceira via, mas, se não houver, quem não tem cão caça com gato. E, no caso, o gato não é tão feroz, não é uma onça. É um gato pacificado, já tem experiência. A vida ensina. Pelo menos alguns aprendem. É melhor apostar." 

Traduzido para o português do asfalto: "Se não houver um candidato tucano no segundo turno da eleição de 2022, votarei no adversário de Bolsonaro. Qualquer adversário. Se eu for intimado pela conjuntura a optar entre o Bolsonaro e o capeta, eu apertarei na urna eletrônica o número do Tinhoso."

É possível até que FHC tenha votado em Lula em 1989, no segundo turno. Com o impeachment instaurado, a renúncia de Collor e a promoção do vice (Itamar Franco) a titular, FHC ganhou evidência, foi Ministro da Fazenda e protagonizou a confecção do Plano Real, cujo sucesso no combate à hiperinflação lhe assegurou a vitória sobre Lula em 1994 e em 1998 — ambas as vezes no primeiro turno. Mais adiante, Lula derrotou os tucanos José Serra (em 2002) e Geraldo Alckmin (em 2006), sempre no segundo turno, e se fez suceder por Dilma em 2010 (“poste” que ajudou a reeleger em 2014, naquela que foi, talvez, a pior decisão que tomou ao longo de sua trajetória política, mas isso é outra conversa). 

Por estratégia política — e como uma das primeiras narrativas da fábrica lulopetista —, construiu-se a narrativa da “herança maldita” para caracterizar a Era FHC. A potoca pegou a tal ponto que até mesmo os tucanos, em 2002 e 2006, esconderem o ex-presdiente em suas campanhas (o que faz parte do jogo). Ironicamente, os petistas tiveram que se defrontar com a herança de Dilma, que, se não foi maldita, passa longe de ser bendita para o Brasil.

Resumo da ópera:  Há paixão demais e razão de menos na celeuma criada pelo fato de FHC e Lula almoçarem juntos e discutirem os descalabros produzidos pela atual gestão (que está mais para “indigestão”). Mas uma parte substancial dos atores políticos, sobretudo entre os democratas, entende que a reeleição de Bolsonaro colocará nossa democracia e instituições republicanas em risco de anomia e desintegração

Olhando o imbróglio por esse prisma, faz sentido a declaração de FHC de apoiar Lula no segundo turno caso a alternativa seja o capitão-cloroquina. Sua revelação provocou alvoroço no ninho tucano, embora seu grão-duque seja apenas o “presidente de honra” do partido. Há quem diga até que o episódio reordenará as forças bolsonaristas, ou que PT e PSDB são farinha do mesmo saco. A questão é que os seguidores da seita do capitão-negação já dividiram a política em “nova” e “velha”, como o lulopetismo a dividiu entre “nós” e “eles”.

Para o bolsonarismo, o Centrão era a “velha política”. Para Bolsonaro, isso foi apenas conversa de palanque, ainda que ele não dê o braço a torcer. Em sua narrativa, seu governo é composto por um conjunto impoluto de homens públicos que querem o bem do Brasil, e a provável chapa adversária, por “um ladrão e um vagabundo”. 

No âmbito do Direito, isso se chama jus sperniandi — expressão jocosa, em falso latim vulgar, que significa “direito de espernear” —, no da política,  pura estratégia. O capitão e seus acólitos já se deram conta de que seu projeto de poder está em risco, e partem para o ataque, até porque nãos lhes resta alternativa que não manter mobilizada a militância bolsonarista (daí a espetáculo circense promovido ontem no Rio de Janeiro).

A eleição de 2022 está distante no calendário, mas os movimentos no tabuleiro político já são evidentes. Na hipótese (nada improvável) de os dois extremistas mais extremados do espectro político ideológico disputarem o segundo turno, é possível que surja uma conjunção de forças de oposição ao projeto de poder bolsonarista como não se via desde os estertores da ditadura militar. 

Como bem Rodrigo Augusto Prado, graduado em Sociologia, Mestre e Doutor pela Unesp e professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie, “política é a força do argumento contra o argumento da força”.