sexta-feira, 21 de maio de 2021

UMA AULA DE MITOMANIA

 

mitomania, também conhecida como pseudologia fantástica ou mentira patológica, é um transtorno psicológico em que a pessoa possui uma tendência compulsiva por mentir. Mas mentir, mais que uma falha de caráter, é uma questão de sobrevivência. E não só para o ser humano.

Nas onças, as pintas servem de camuflagem. O urso polar cobre a ponta do nariz com as patas para que a foca que ele pretende almoçar o veja como um inofensivo monte de neve. As orquídeas mimetizam feromônios e/ou sinais visuais e tácteis de insetos fêmeas para atrair os machos e usá-los como meio de transporte para o pólen. Os vírus enganam o sistema imunológico dos hospedeiros.

Sem a mentira, a vida em sociedade entraria em colapso (imagine o que aconteceria se todos fôssemos telepatas). Na implacável luta pela sobrevivência e pela reprodução da espécie, o moralismo não tem espaço. Mentir é fundamental para se obter êxito na vida social, nos negócios e na política. 

Quem mente bem leva vantagem sobre quem diz a verdade. Para se tornar um bem-sucedido reprodutor da espécie, o indivíduo precisa ser sedutor o bastante para despertar desejo em seus pares do sexo oposto e intimidador o suficiente para afugentar os concorrentes do mesmo sexo (ou não necessariamente do mesmo sexo, mas isso é outra conversa).

De todos os seres vivos, nenhum mente tão bem e com tanta desenvoltura quanto os humanos. Mas tudo tem limites, e a mentira não é exceção. 

Para produzir os efeitos desejados pelo mentiroso, a “narrativa” (usando aqui um termo que está em voga) precisa ser crível. Isso exige o cuidado de não descambar para a desfaçatez — como fizeram Fabio WajngartenErnesto Araújo ao afrontar a inteligência dos senadores com suas potocas. Mas nenhum dos dois superou em descaramento o general Eduardo Pazuello.

No final da tarde de quarta-feira, depois de sei lá quantas horas tentando engabelar os senadores, o ex-ministro-vassalo do capitão-suserano teve uma síndrome vasovagal. Foi prontamente socorrido pelo senador Otto Alencar, que é médico. “Deitamos ele no sofá. Se recuperou. Até poderia retomar o depoimento. Isso é muito comum. Acontece com quem está muito nervoso, emocionado e fica muito tempo sentado”, disse o parlamentar. Pazuello negou que tenha passado mal. Alencar replicou: “O depoente negou tanto na CPI que mente até sobre a própria saúde.”

As mentiras que o noticiário divulgou em tempo real e os jornais detalharam no dia seguinte estão desvelando o descalabro do governo Bolsonaro. Juntando isso à operação da Polícia Federal sobre a venda ilegal de madeira aos Estados Unidos — denunciada pelo próprio governo americano —, têm-se a prova cabal de que não é apenas a questão ideológica que conspurca o já disfuncional governo federal.

O (ainda?) ministro Ricardo Salles e diversos escalões do Ibama — entre os quais o presidente do órgão — foram apanhados por uma investigação sigilosa que incomodou o (ainda!?) presidente, que fez substituições no Ministério da Justiça e na PF visando controlar as instituições do Estado brasileiro (artimanha que não logrou êxito, ao menos no que concerne à PF). 

Um exemplo dessa disfuncionalidade é a ideia (errônea) de que as lives e postagem do capitão nas redes sociais fariam parte de seu “ato político”, não representando, portanto, orientações do governo — como Pazuello disse ao tentar explicar o autoexplicável “um manda e o outro obedece”.

Nas palavras do general, sua confissão de subserviência foi apenas uma “frase de internet”, uma aceno à militância bolsonarista que caiu de pau sobre o “mito” quando o Ministério da Saúde declarou a intenção de comprar a “vacina chinesa” do Doria”. 

Se o capitão tivesse um "alter ego" que agisse com bom senso, não teríamos tido a tragédia sanitária de que Pazuello é cúmplice. Basta assistir ao vídeo da famosa reunião ministerial que precipitou a saída do então ministro Sergio Moro para ver que o Bolsonaro das redes sociais age da mesma maneira que o Bolsonaro que comanda o Executivo.

Ao mentir na CPI para livrar o rabo do suserano despótico, o vassalo subserviente cometeu um crime que continua em curso mesmo depois de sua saída do ministério. Crime, porque ele mente na condição de testemunha — mentiras lhe brotam da boca do general em caudalosa torrente, na mesma velocidade com que os fatos o desmentem. Já o ex-chanceler Ernesto Araújo escarneceu dos senadores (e da parcela pensante da população) ao afirmar, entre outras coisas, que jamais hostilizou o governo chinês.

O então ministro-interventor da Saúde soube que havia um avião dos Estados Unidos pronto para trazer oxigênio, mas não fez nada porque, segundo ele, não lhe perguntaram nada, só informaram. O chanceler de fancaria disse que cabia à pasta da Saúde dar as informações técnicas para o voo. Os dois não se falaram, demonstrando quão estapafúrdios e inaceitáveis foi o comportamento de autoridades do governo durante a crise humanitária em Manaus.

Pazuello disse que mostrou ao representante da Pfizer o tamanho do Brasil num mapa, assim como Bolsonaro dissera anteriormente que o mercado brasileiro era tão grande que poderíamos negociar o preço das doses. Deu tudo errado. Ao final, acabamos comprando a vacina da Pfizer pelo preço definido no início das negociações, e a demora causou a morte de milhares de brasileiros.

Pazuello continua depondo. E mentindo. A tropa de choque governista, capitaneada pelo senador das rachadinhas e da mansão de R$ 6 milhões, tenta tumultuar os trabalhos da Comissão, mas os parlamentares de oposição (e os autodeclarados “independentes”) se valeram do intervalo entre o final da tarde de quarta-feira e a manhã de ontem para se municiar e aumentar a pressão sobre o general — que foi espremido feito limão ao longo da sessão de ontem (que vai pela metade enquanto eu redijo este texto). Pelo visto, será preciso muito açúcar para o caldo desse limão resultar numa limonada palatável para o governo federal, a despeito da interpretação estrambótica de alguns membros da ala governista — caso do centrista Ciro Nogueira, a julgar pelo que disse à CNN Brasil na noite de anteontem.

Na avaliação de Willian Waack, âncora do Jornal da CNN, é nítido que Bolsonaro governa para e pela Internet, e que os trabalhos da CPI demonstram claramente a existência de uma espécie de dualidade de mando com prejuízos diretos no combate às diversas crises. As redes sociais foram determinantes para a vitória do capitão em 2018, mas são instrumentos precários para governar — e é pensando nelas que o presidente baseia suas ações. 

Postagens na internet não são ordens”, disse Pazuello aos senadores, num esforço bem orientado por advogados para desmentir o óbvio. Talvez não, mas isso não se aplica ao caso específico do mandatário de turno. Para justificar o vídeo em que reconheceu sua subserviência ao capitão, o general repetiu o ramerrão de “coisa da Internet” sempre que alguém o questionava a respeito de uma ordem de Bolsonaro contra a vacina ou pela adoção da cloroquina como instrumento de política pública.

Foi assim que o ex-ministro explicou a resposta do presidente a um seguidor no Facebook. Pazuello acabara de anunciar a compra de 46 milhões de doses de CoronaVac numa reunião com governadores, mas o bolsonarista apelou na rede social para que o presidente não comprasse a vacina chinesa. “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém”, escreveu Bolsonaro. “Qualquer coisa publicada, sem qualquer comprovação, vira TRAIÇÃO”, arrematou. Para Pazuello, no entanto, não foi nada demais: “apenas uma posição do agente político na internet”.

Coisa da Internet ou não, o efeito é o mesmo: Bolsonaro consagrou essa dualidade de mando dentro do próprio governo. Nas redes sociais, suas “ordens” que não são “ordens” servem no mínimo (com muita boa vontade) para criar confusão interna. 

No caso da pandemia, a CPI foi razoavelmente bem-sucedida também em demonstrar a existência de uma estrutura paralela de assessoramento governamental — que, no fundo, é a avaliação de quais conteúdos obtêm melhor resposta nas redes digitais que Bolsonaro pretende atingir. O diabo é que a dualidade de mando paralisa qualquer administração complexa, como é o caso do governo brasileiro. 

Na prática, Pazuello e seus antecessores se viram divididos entre o que eram as posturas recomendadas pelas áreas técnicas (na questão de uso de medicamentos, por exemplo) e o que o presidente pregava nas suas redes — além da exigência aos ministros de um tipo de lealdade já fartamente comparado ao “Führerprinzip”, a ideia de que o líder tudo sabe e nunca falha.

O que aconteceu no combate à pandemia já era repetição do que afetara anteriormente setores como economia ou política externa, entre outros. Na economia, nosso indômito mandachuva promoveu grande alarido (com enormes prejuízos para a Petrobrás) ao dizer que ia interferir na formação de preços de combustíveis. E repetiu o feito com o Banco do Brasil, deixando os agentes econômicos nos mais diversos níveis preocupados sobre qual seria, afinal, o limite da intervenção estatal. O que valia, afinal? O que vinha dizendo o ministro da Economia ou o que o presidente falava para sua turma na Internet? 

Na política externa essa “dualidade de mando” criou uma situação esquizofrênica para o principal parceiro comercial brasileiro, a China: valem os ataques que Bolsonaro reitera nas redes ao regime chinês ou as súplicas dirigidas a Pequim por parte de ministros (como a da Agricultura) e governadores (como o de São Paulo) pela manutenção de laços para garantir exportações e suprimento de insumos para vacinas?

Os chineses se orientam pelo comportamento de duas instâncias políticas hábeis (até aqui) em lidar com Bolsonaro. Uma é o STF, que lhe impôs limites severos, pensa sempre uma jogada política adiante do presidente e deixou de responder às provocações feitas por ele nas redes sociais. A outra é a do Centrão, que congrega notórios especialistas em sobrevivência política e defesa dos próprios interesses. 

Os articuladores da base de sustentação de Bolsonaro no Legislativo chegaram ao acordo tácito de deixá-lo falando sozinho. Com eles não existe mais dualidade de mando, pelo menos no que se refere à distribuição de verbas entre parlamentares: tomaram conta disso, e deixaram o que tem de batata quente para ser decidido entre os ministros do Desenvolvimento Regional e o da Economia, por exemplo.

O resto é Bolsonaro falando para a internet.